A questão do chavismo tem sido um verdadeiro divisor de águas na esquerda. Isso se mostrou nas posições frente ao referendo sobre a constituinte, que resultou na primeira derrota eleitoral de Chávez em quase nove anos, festejada pela burguesia opositora e pelo imperialismo, que impulsionaram uma grande campanha pelo Não.
A esquerda diretamente chavista e a “anti-neoliberal”, como o PSOL (com exceção da CST), LCR e SWP, levantaram a política já esperada de chamar voto irrestrito em Chávez. As últimas três organizações, que inclusive avançam determinadamente no abandono do marxismo revolucionário, realizaram atos de apoio a Chávez saudando a pretenso “avanço ao socialismo” que esta representaria. Foram condizentes com sua política nefasta de ficar por detrás dos setores não-monopólicos da burguesia contra os neoliberais.
E houve o chamado do PSTU a votar Não, mesma posição defendida pela burguesia opositora pró-imperialista. Surpreendente, ao contrário das correntes capituladoras a Chávez, cujas posições não trouxeram surpresas. O que se mostrou, lamentavelmente, foi que as posições outrora corretas deste partido contra Chávez não resistiram ã prova, quando a realidade exigiu dos revolucionários um posicionamento de classe firme, independente dos campos burgueses em disputa. Esta, apesar de ser uma questão tática mostra uma concepção estratégica que queremos debater com este artigo.
Nossa posição diante de Chávez...
Nós, da Liga Estratégia Revolucionária, nos colocamos entre os que defendem a segunda posição. Chávez tem um projeto nacionalista burguês e busca implementá-lo lançando mão de uma retórica anti norte-americana e “socialista”, dialogando com o desgaste junto ás massas do neoliberalismo da década passada e dos representantes tradicionais da burguesia, enquanto segue regateado com o primeiro e garantindo sua dominação, mais claramente expressa nas empresas mistas, enquanto protege a propriedade privada e a exploração capitalista em seu país, favorecendo inclusive o enriquecimento da “boliburguesia”, nome com o qual ficou conhecido o rico empresariado que o apóia graças aos imensos benefícios que vem tendo.
Discutimos em inúmeros artigos e chamados ás organizações de esquerda que no início de 2007 compartilhavam desta caracterização naquele momento (o PO argentino, PSTU no Brasil, e POR boliviano) a impulsionar conosco campanhas comuns orientadas pela luta por uma posição baseada na independência de classe e ás correntes que a ele capitulavam. Assim, frente ás nacionalizações chavistas que em grande medida não passavam da constituição de empresas mistas entre capital estatal e privada chamamos a lutar por nacionalizações sem pagamento de indenização sob controle dos trabalhadores. Contra o PSUV chamamos ã constituição de um partido operário independente para que a classe pudesse se expressar contra todas as variantes de chavismo e reformismo. E por fim, contra a falácia do “socialismo do século XXI” defendemos a perspectiva de um governo operário, camponês e do povo pobre, única via de dar uma resposta de fundo ás suas demandas mais profundas.
...e a questão do referendo
Foi como conseqüência destas posições que chamamos a votar nulo. Trata-se de levantar uma política oposta à lógica “campista”, segundo a qual haveria que escolher um dos “campos” em disputa. Isso porque caracterizamos que nenhum dos lados expressa os interesses da classe trabalhadora, nem a burguesia direitista e nem o chavismo.
A constituinte que Chávez buscava referendar era uma via para que este aprofundasse seus traços bonapartistas, isto é, aumentasse a concentração de poderes em sua figura para melhor se alçar como árbitro entre os interesses em pugna das distintas classes sociais, como era o item que garantia a reeleição indefinida. Apesar de conter algumas concessões como a redução da jornada para 36 horas, a constituinte chavista dava seguimento ã sua política de “socialismo” com empresários (!). Portanto, era inaceitável para todos aqueles que apostam numa saída independente e revolucionária dos trabalhadores e do povo oprimido apoiar Chávez.
Porém, os setores de direita, atualmente mais institucionalizados, fruto inclusive de uma mudança de política do imperialismo norte-americano que debilitado pelos reveses do Iraque não tem buscado patrocinar novos golpes na América Latina, levantou a bandeira do “Não” ao referendo chavista. Vale lembrar que estes setores burgueses são os que protagonizaram a tentativa de golpe em abril de 2002, demonstrando que não têm nenhum pudor em adotar suas próprias medidas de tipo bonapartista contra as massas quando vêem necessário. Sua campanha pelo Não partiu da defesa da propriedade privada, polarizando contra um suposto “castro-comunismo” que Chávez pretenderia implementar (ainda que a reforma de Chávez seja na verdade a regulamentação de um “socialismo com empresários” (sic) e das empresas mistas de exploração do petróleo em conjunto com o imperialismo). Contou como base social com o grosso do movimento estudantil marcado por forte influência dos setores direitistas, que no último período se enfrentou com os chavistas, contra um pretenso “ataque ã propriedade privada”.
Disso deriva que lutar contra as medidas bonapartistas de Chávez junto a estes setores - na verdade reacionários neste momento travestidos com roupagem “democrática” - termina transformando-se em uma defesa dos aspectos mais degradados da democracia latino-americana pós-ofensiva neoliberal! Por isso, votar Não neste caso não pode ser uma posição que auxilie os trabalhadores a avançar em sua consciência.
Para os revolucionários só é possível fazer unidade tática com setores da burguesia em situações ultra-excepcionais, quando se trata de alguma medida concreta que significaria uma conquista para os trabalhadores e que um setor burguês nacionalista poderia eventualmente ser favorável. Seria o caso, por exemplo, do apoio ã nacionalização do petróleo impulsionado por Cárdenas no México. Os militantes do PSTU saberão discernir que chamar a votar Não na Venezuela não tem nada a ver com essa política. Basta refletir sobre qual é a conquista concreta que teve a classe operária com a vitória do Não. A manutenção da constituição burguesa reacionária de 99? Por acaso o atual regime venezuelano seria uma conquista a ser defendida pelos revolucionários? É a manutenção do atual regime e o triunfo do imperialismo que os companheiros estão chamando de “vitória democrática”?
A ausência de uma lógica de delimitação de classe
O PSTU no afã de se distanciar de Chávez e da esquerda que capitula a esta direção burguesa, recaiu numa posição perigosa, que só pode semear confusão entre os trabalhadores e as massas. Sobretudo nos setores que se negaram a dar “carta branca” a Chávez em seus intentos bonapartistas, mas que também viam claramente a impossibilidade de votar com a direita burguesa, tal como expressaram os 3 milhões de votos ausentes da base chavista. Intuitivamente, estes setores que se abstiveram na votação tiveram uma posição mais sábia que a do PSTU, retirando seu apoio político a Chávez sem, no entanto, oferecê-lo ao bloco da oposição de direita.
O que está por trás desta posição do PSTU? Em primeiro lugar, a ausência de uma lógica firmemente ancorada nas delimitações de classe, base fundamental que deve nortear os revolucionários em suas políticas. O raciocínio do PSTU parte de que para combater Chávez e a esquerda diretamente chavista, ou apoiadora como o PSOL, no referendo haveria de votar contra ele, não importando o fato de submeter-se a um bloco político cujos chefes já são conhecidos do povo venezuelano e representam as alas burguesas mais pró-imperialistas do país. Mostra que elege seus aliados (e adversários) não partindo das fronteiras de classe. Esquece as questões estratégicas para privilegiar as táticas e termina defendendo... péssimas táticas.
“Terceira posição” com o Não?
O PSTU coloca que frente o chavismo e a burguesia opositora haveria que forjar uma “terceira posição”. Temos acordo. Mas em quê a política de votar Não se constitui como uma “terceira posição”?
O PSTU diz: “Existiu uma luta democrática vitoriosa na Venezuela. Só existe uma explicação para que o imperialismo e a oposição de direita capitalizem internacionalmente a justa derrota de Chávez: a vergonhosa capitulação da esquerda latino-americana ao governo venezuelano.(...)”. Depois afirma: “A única alternativa para os trabalhadores venezuelanos é que se construa um terceiro campo, independente tanto da oposição de direita como do governo Chávez. Caso a polarização política na Venezuela siga se dando ao redor destas duas alternativas, inevitavelmente os trabalhadores acabarão derrotados junto com Chávez e seu declínio”.
Depois diz que é “centrista” quem se coloca a luta concreta, não de palavras, para construir o “terceiro campo”, isto é, uma política operária independente: “Existiram vários setores da esquerda que se recusaram a apoiar o Sim chavista. Mas por uma postura completamente centrista, tampouco defenderam o Não”. Discutindo contra o PCO, vão além: “Esta foi a posição do PCO, que defendeu ‘nem sim, nem não’, ou seja, perante tal polarização política de importância para toda América Latina, o PCO não sabe se está a favor ou contra a reforma de Chávez”. [grifo nosso].
Mas o próprio PSTU não tinha acabado de afirmar que “Caso a polarização política na Venezuela siga se dando ao redor destas duas alternativas, inevitavelmente os trabalhadores acabarão derrotados junto com Chávez e seu declínio”?
Quando as duas alternativas se põem na realidade (e vejamos bem que estamos falando de uma polarização que se mostra majoritariamente nas urnas, no marco da institucionalidade, e não de tendências ã guerra civil como na Bolívia), quando elas se colocam e se organizam como movimentos pelo Sim e pelo Não, então “perante tal polarização política de importância para toda América Latina” o PSTU termina... escolhendo um lado, e na prática, abandonando a luta para “que se construa um terceiro campo” (!). Há que fazer um chamado aos companheiros do PSTU para que reflitam: onde está a “terceira posição”?
Disputar a direção ou se colar na direção burguesa existente?
Mas como o PSTU justifica esta posição? Uma resposta provável é que haveria que “disputar a direção”, sobretudo do movimento estudantil. Mas há que perguntar: política de chamar “Não” colado com a direita é uma política de disputa da direção, ou que termina por levar ã adaptação frente ã direção hoje existente dos setores opositores a Chávez (novamente repetimos: não qualquer direção, mas a burguesia opositora)?
Disputar a direção significa intervir com uma política baseada na independência de classe para fazer com que os setores em questão mudem de posição e avancem em direções a posições revolucionárias. Temos acordo em que “Não se pode confundir as lutas com suas direções”. Mas para isso haveria que se enfrentar com as bandeiras de defesa reacionária da propriedade privada, levantadas pela direção. Ou seja, por mais progressiva que fosse a “base” deste movimento (questão extremamente duvidosa já que em sua maior parte era composta por filhos da classe média esquálida, que levantavam bandeiras da direita). Por isso era necessário efetivamente disputar estabelecendo um profundo diálogo com suas aspirações democráticas e mostrando como estrategicamente a classe trabalhadora é a única que pode oferecer uma verdadeira democracia de massas como a base para seu governo.
A teoria da revolução democrática e o Não
A segunda resposta ao questionamento acima remete ã concepção estratégica de “revolução democrática” do PSTU, segundo a qual se pode apoiar setores da burguesia “democrática” contra os intentos bonapartistas de determinados caudilhos, setores golpistas da burguesia e regimes autoritários, minando as posições de independência da classe trabalhadora. Assim, para fazer frente a estes setores o que estaria colocado para a classe trabalhadora seria lutar para conquistar a democracia burguesa [1].
Esta concepção foi formulada por Nahuel Moreno, dirigente trotskista argentino que fundou a LIT e afirmava em seu texto “Revoluções do Século XX” que estava a favor de “...uma revolução no regime político: destruir o fascismo para conquistar as liberdades da democracia burguesa, ainda que seja no terreno dos regimes políticos da burguesia, do estado burguês ”. Também se aplicaria como a estratégia para enfrentar as ditaduras na semicolônias, para as quais novamente se trataria de lutar pela democracia burguesa, como “primeira parte” da luta pela revolução socialista.
Mas a sua “aplicação” no caso do voto Não na Venezuela, apesar de manter a mesma lógica, é ainda mais chocante. Se a teoria da revolução democrática é profundamente equivocada, questão que vimos discutindo há tempos em outras elaborações, há que fazer notar que Moreno a formulou como uma tentativa de responder a ditaduras genocidas, como na Argentina da década de 70, ou mesmo do fascismo na década de 30 que assassinaram milhões de pessoas. Hoje, o PSTU ao votar Não na Venezuela o faz sem nenhuma pressão similar de uma situação aguda da luta de classes.
Mas quando o PSTU coloca que “Ao contrário do que dizem os chavistas, as mobilizações estudantis não eram de “direita”, mas democráticas. Como a esquerda venezuelana capitula diretamente a Chávez, foram majoritariamente as correntes de direita que dirigiram as lutas estudantis. Grupos como Bandera Roja, completamente corrompido pela direita. Mas não se pode confundir a base com a direção”. Assim, a própria formulação expressada pelo PSTU deixa entrever a armadilha presente em sua lógica de “revolução democrática”, quando dizem que “as mobilizações eram democráticas”, “mas dirigidas pela direita”: a de que não há necessariamente uma oposição entre uma coisa e outra.
É necessário uma política independente
No início de 2007, as organizações que integram a Fração Trotskista na Venezuela, Brasil, México, Chile, Argentina e Europa propusemos tanto ao PSTU como ao PO argentino uma campanha internacional unitária pela completa nacionalização do petróleo na Venezuela sob administração operária e o chamado ã constituir, com total independência do PSUV, um partido operário independente baseado nas organizações sindicais que mantenham sua autonomia do Estado. Cremos que se a tivéssemos concretizado, a esquerda classista e socialista estaria hoje em melhores condições para fazer frente ã atual situação na Venezuela.
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