A política do imperialismo e a renúncia de Fidel
O recente afastamento de Fidel Castro do poder em Cuba em favor da ascensão de seu irmão, Raúl Castro, outrora dirigente das FAR (Forças Armadas Revolucionárias) inaugurou uma discussão internacional sobre o futuro da ilha. Apesar do poder ter sido mantido na cúpula do PCC, e da ratificação de Raul Castro ao lado de José Ramón Machado Ventura, ambos parte da geração Fidel, o afastamento deste por motivos de saúde, reabre discussões sobre o caráter do estado a quase 50 anos da revolução que pela primeira vez resultou na expropriação da burguesia e expulsou o imperialismo de um país latino-americano.
O perigo da restauração capitalista, que seguramente é um dos maiores desafios que se coloca para as massas e a classe trabalhadora cubana na atualidade, é fruto de uma combinação das pressões do imperialismo, sobretudo norte-americano, e das próprias contradições internas da economia e política de Cuba resultantes do projeto de “socialismo numa só ilha” levado ã frente pela burocracia castrista, responsável pela erosão crescente das conquistas da revolução de 1959.
Nos dias atuais, se coloca em perspectiva uma mudança de tom da política do imperialismo norte-americano, fruto inclusive do fim do debilitado governo Bush, que durante seu mandato incluiu Cuba como parte dos “estados terroristas” tendo endurecido o embargo econômico inaugurado em 1962. Os dois pré-candidatos democratas, partido favorito como vencedor para as próximas eleições presidenciais norte-americanas, têm mantido até o momento uma postura mais propensa ã negociação, se aproximando mais da posição da União Européia de garantir uma restauração capitalista pacífica pela via “democrática”, embora ambos tenham acordo em manter o embargo econômico como medida de pressão. Isso inaugura uma possibilidade de que a burguesia imperialista tente acelerar o processo de restauração capitalista na ilha através de acordos com a burocracia. Vários analistas burgueses sustentam que a melhor política para acelerar a restauração capitalista seria o fim do embargo. Este elemento de grande importância traz novas interrogantes, na medida em que ainda segue aberto pelo menos até a escolha do novo presidente norte-americano. Como escrevemos em outro artigo: Na situação atual, é provável que um novo salto na abertura econômica ao capitalismo seja acompanhado com algumas reformas políticas, sejam algumas concessões ás camadas sociais que se beneficiaram das medidas dos últimos anos, - como por exemplo a demanda de facilidades para poder sair do país - o a abertura de válvulas de escape que canalizem controladamente o descontentamento que pode estar desenvolvendo-se nos setores populares, produto da crescente desigualdade social. E que por sua vez, tais reformas, sirvam como gesto ás reivindicações das potências imperialistas e dos governos “amigos” que demagogicamente reivindicam uma “transição ã democracia”.
Cuba: qual é o caráter do estado?
Para entender as contradições postas em Cuba hoje é preciso retomar alguns elementos fundamentais sobre seu processo revolucionário e seus resultados. A revolução que em 1959 varreu as ruas de Cuba foi a maior conquista dos trabalhadores e das massas latino-americanas. Entretanto, esteve marcada por uma série de profundas contradições cujas conseqüências marcam em grande medida sua dinâmica atual. Inicialmente, a direção pequeno-burguesa comandada por Fidel Castro composta pelos estudantes do Movimento 26 de Julho (M 26) não pretendia expropriar a burguesia, mas apenas derrubar a ditadura de Fulgêncio Batista. Mas graças ã pressão do imperialismo como força contra-revolucionária por um lado, e da força das massas e da classe trabalhadora, que se negaram a restringir sua luta ã derrubada de Batista, a direção castrista foi obrigada a ir mais além do que havia planejado, expropriando a burguesia e expulsando o imperialismo. Entretanto, o fato desta revolução ter se dado sob o comando de uma direção pequeno-burguesa, e não revolucionária consciente e dotada de uma estratégia clara de impor a ditadura do proletariado como o fora anteriormente o partido bolchevique na Rússia, trouxe uma série de contradições. O estado operário que se forjava, apesar de sua superioridade inquestionável sobre a economia capitalista semicolonial, apresenta desde o início grandes deformações, como a cristalização da burocracia castrista como centralizadora de todo poder, pela ausência de democracia operária e de seus organismos, que fez com que a burocracia castrista assumisse o papel de impulsionador de uma reação social e política dentro da própria revolução. Gera uma planificação deformada pelos interesses dessa burocracia e uma estratégia nacionalista que não via a extensão da revolução em nível internacional como condição para a construção de uma sociedade socialista. Como conseqüência disso a partir de 1965, que marca o fim do período de maior autonomia e de tentativa de desenvolvimento da indústria, Cuba passa a ser quase completamente dependente da URSS. Se restringe a produzir essencialmente açúcar e outros poucos produtos como parte de uma suposta “divisão socialista do trabalho”, que se combinava ã ajuda econômica e fornecimento de outros produtos da URSS. Essa política econômica fazia parte da “ilusão” reformista de que seria possível combinar uma “coexistência pacifica” com o imperialismo e a tentativa de fazer com que as economias dos estados operários degenerados “superassem” em desenvolvimento as economias capitalistas centrais. Isso levou ao efeito desastroso de que Cuba não desenvolvesse tecnologia própria e, portanto, quando houve a queda URSS tenha sofrido uma grande crise, e se visto obrigado a lançar um pacote conhecido como “período especial” durante a década de 90 em consonância com a ofensiva neoliberal nos paises capitalistas composto pela introdução de elementos capitalistas na economia. Do ponto de vista político, aprofundou-se junto ás massas o culto messiânico ao “líder” e ã burocracia do PC Cubano. Frente a estados operários deformados, os trotskistas levantamos a política de defesa crítica, ou seja, de defesa social do estado operário e luta por uma revolução política contra a burocracia e pela democracia operária pela retomada do processo revolucionário nacional e internacional.
O capitalismo em Cuba já está completamente restaurado?
É inegável que a política do “período especial” dos anos 90 trouxe mais avanços restauracionistas a Cuba. Criaram-se uma série de empresas de capital misto, com grande presença do capital canadense e espanhol. O turismo passou a ser a principal atividade econômica do país. A desaceleração da atividade industrial e a grande dependência do fornecimento de matérias-primas do exterior agravadas pelo fim da URSS foi respondida pela burocracia castrista com a abertura do mercado ao capital estrangeiro, a ampla circulação do dólar, e o estímulo aos investimentos diretos do capital estrangeiro através dos joint ventures. Setores importantes da produção, como o de minério níquel, passaram a depender dos acordos com empresas estrangeiras, como a multinacional canadense Sherritt. Como conseqüência disso, o próprio monopólio do comércio exterior foi praticamente extinguido. Entretanto, em 2004 abre-se um momento de inflexão com a reeleição de Bush. As principais medidas do imperialismo contra Cuba foram a ampliação das restrições ao envio de remessas e de viagens ã ilha. Como resposta ã nova ofensiva do imperialismo, e ao próprio processo de surgimento de um setor cada vez mais privilegiado no interior de Cuba que ameaçava sua dominação, a burocracia viu-se obrigada a retroceder em algumas das medidas tomadas durante o “período especial” e retomar o controle de alguns ramos da economia. Se decretou a restrição ã circulação do dólar generalizando o uso do peso convertível (CUC) para o turismo e setores ligados a ele, bem como para transações entre empresas, sobretudo as cubanas. Houve renovação do controle de preços.
Como resultante deste processo, a União Européia, sobretudo o capital espanhol que durante os anos 90 tinha ampla penetração em Cuba, foi substituído pela Venezuela e China, que nesta ordem são hoje os principais investidores e parceiros comerciais. O petróleo venezuelano representa um subsídio anual de 1 bilhão para a economia cubana, o que ajudou a economia a manter níveis de crescimento altos, tendo atingido 7.5% em 2007 [1].
Isso esteve intimamente ligado ao aspecto político de se firmar um “eixo anti-Bush”, numa tentativa de Chávez de aproveitar o espaço aberto na América Latina se alçando como potência regional aproveitando-se do esgotamento do apoio de massas aos planos neoliberais dos anos 90, e do afrouxamento das cadeias de dominação imperialista sobre a região produto do enfraquecimento resultante da plataforma política neoconservadora do imperialismo.
Porém, os desequilíbrios gerados pela existência de um duplo sistema monetário - um de pesos convertíveis que valem mais que os pesos cubanos - tem levado ao aumento da desigualdade. E as próprias contradições econômicas abertas durante o “período especial” ainda se fazem sentir sobre as massas, como seu precário acesso aos produtos e serviços básicos (alimentos, transporte, eletricidade). Soma-se a isso as contradições da economia ter eixo no turismo, como bem assinala Le Monde Diplomatique: “O calcanhar de Aquiles do modelo é que o crescimento não inclui a indústria - que no “qüinqüênio dourado”, 1976-1980, era o paradigma do desenvolvimento - nem a agricultura, que segue em declive. “Nessa época, Cuba produzia inclusive bens de capital da agroindústria: 95% das peças da maquinaria para o açúcar e 100% das colheitadeiras de cana eram de fabricação nacional” [2].
Há ainda o elemento de o exército (FAR) ser um dos maiores fatores de poder, na medida em que controlam setores importantes da produção, controlando 322 empresas cubanas, que empregam 20% dos assalariados da ilha, sendo responsáveis por 89% das exportações. São empresas dos setores de turismo, agricultura, pecuária, tabaco, açúcar, telecomunicações, construção, além da indústria militar. O caráter contraditório deste fator reside em que se por um lado demonstra o domínio do PC Cubano sobre a economia, por outro é ao mesmo tempo a via para a ampliação de privilégios da burocracia castrista, processo que ainda que hoje não seja igual ã burocracia chinesa - cujo alto escalào acumulou milhões nos últimos anos passando a ser diretamente composto de burgueses, e não mais uma casta privilegiada - não está descartado que avance para isso na medida em que os trabalhadores estão completamente apartados da tomada de decisão e do controle sobre a produção e a circulação dos bens produzidos.
Isso tudo faz com que o caráter da economia e a política em Cuba sejam profundamente contraditórias, embora possamos caracterizar que o capitalismo ainda não terminou de ser restaurado. E isso não é só pela questão econômica, na qual repetimos existem tendências ã restauração que apesar de seu recuo relativo após 2004 seguem atuantes, mas por um fator de extrema importância: o fato de que a revolução segue viva na consciência das massas. Para isso colabora o simples fato de que após quase 20 anos da queda da URSS e da restauração capitalista dos países do Leste se veja, ao contrário do triunfalismo capitalista reinante na década de 90, o aumento brutal da decadência das condições de vida para as massas e a classe trabalhadora que este processo engendrou. Que os índices de desemprego que em Cuba seguem mantendo-se em 1,9%, a taxa de analfabetismo praticamente nula e o sistema de saúde pública ainda seja um dos melhores existentes, índices melhores inclusive que os de países imperialistas, e que nada tem a ver com os países onde o capitalismo foi restaurado. Isso tudo colabora para que as massas cubanas não queiram se tornar parte de um país capitalista semicolonial. A própria política dos últimos anos de Bush fortaleceu o sentimento antiimperialista, e se o controle da economia tem sofrido desgastes pela política desastrosa da burocracia, por outro lado é suficientemente distinta do livre mercado total, razão pela qual a burguesia cubana, os gusanos, seguem em Miami incapazes de deter o poder político, e sem correlação de forças nem legalidade para levar ã frente seus negócios.
Assim, a posição do PSTU de que o capitalismo já estaria completamente restaurado torna impossível entender porque o próprio imperialismo e os gusanos criam associações que sob lemas “democráticos” visam restaurar o capitalismo em Cuba.
É necessário uma revolução que desenvolva as conquistas da revolução de 1959
Assim, as discussões sobre o futuro de Cuba, bem como sobre o caráter de seu estado, e a definição sobre que programa ter na atual situação assume uma importância vital, sobretudo para os revolucionários. Dentre a esquerda figuram duas posições fundamentais: uma mantida pelos stalinistas e reformistas que colocam um sinal de igual entre a revolução e a burocracia castrista, que defendem de conjunto incondicionalmente, e outros setores, como o PSTU, que afirmam que o capitalismo já estaria completamente restaurado. No caso do PSTU sua visão pouco capaz de apreender as enormes contradições existentes em Cuba na atualidade fazem com que esta organização fique completamente sem programa num momento crucial, em que novamente se abre a disjuntiva entre restauração capitalista e a luta pela defesa e aprofundamento das conquistas da revolução. Ao afirmar que hoje Cuba seria um estado capitalista sob um regime bonapartista, tomando como um fato consumado algo que em realidade ainda se dá como processo, acabam desarmados já que não podem levar ã frente sua lógica de “revoluções democráticas”, pois esta é a política do próprio imperialismo e seus gusanos de Miami. Negam dessa forma a necessidade de lutar por uma revolução que recoloque em marcha o processo iniciado pelas massas e a classe trabalhadora em 1959, que começando pelas tarefas antiimperialistas, combine um programa de revolução política contra a burocracia, mas também de revolução social, para reverter as medidas restauracionistas.
Assim, as tarefas postas hoje partem da necessidade de lutar contra o monopólio da burocracia castrista sobre a economia e a política, acabando com o controle que estas exercem sobre as organizações operárias, sindicais ou políticas. Há que acabar com o regime de partido único, que garante os privilégios da burocracia no poder, camada privilegiada, que com sua política são os restauradores de amanhã. É preciso legalizar todas as organizações, políticas e sindicais, operárias e populares que defendam as conquistas da revolução. E isso só se dará a partir de uma revolução política, em que os trabalhadores e camponeses armados derrubem a casta governante. E há que lembrar que o programa da revolução política não se resume a mais democracia, e sim a colocar de pé organismos de auto-determinação dos produtores e consumidores, para que sejam as massas os que controlem tudo o que é produzido, como dever ser produzido e distribuídas as riquezas e como meio para acabar com as margens da qual se utiliza a burocracia para seguir avançando como motor da restauração, e de sua transformação em uma nova burguesia.
Esta é a única via também de lutar conseqüentemente contra o assédio imperialista, seja o mais duro de caráter neoconservador, seja o mais “conciliador” expressado pelos pré-candidatos democratas, que no entanto, servem ao mesmo fim: varrer do mapa o que ainda vive da revolução cubana. Trata-se de voltar a colocar a conquista do estado operário cubano a serviço da revolução internacional, começando pelo apoio ás lutas dos trabalhadores e dos povos latino-americanos contra o imperialismo e todos os governos burgueses, tanto de direita, como aqueles que fazem um discurso populista e até socialista, mas representam os interesses dos empresários como Morales na Bolívia, e Chávez na Venezuela.
|