INTRODUÇÃO A PROPÓSITO DA ECONOMIA INTERNACIONAL*
No momento em que o artigo “A debacle no Iraque e a decadência da hegemonia norte-americana” foi redigido a crise financeira iniciada no mercado imobiliário norte-americano no mês de agosto de 2007 ainda não havia irrompido no cenário internacional. Sendo assim, estamos preparando uma reflexão mais profunda sobre a economia mundial, no esforço de aportar para uma análise marxista sobre o tema, que será um dos eixos centrais da próxima edição da revista Estratégia Internacional. A seguir adiantamos alguns apontamentos parciais sobre o tema.
O QUE ACONTECEU COM OS MERCADOS MUNDIAIS?
Vimos no mês de agosto deste ano o início de uma crise financeira internacional. Os primeiros sintomas foram as dificuldades no mercado de hipotecas norte-americanas, especialmente as de menor qualidade creditícia ou subprime (tomadores de empréstimo com histórico de pagamento deficitários), mediante as quais se tem financiado uma alta porcentagem do valor em imóveis. A diminuição da realização desses créditos se agudizou significativamente, ã medida que os devedores descobriram que suas dívidas são maiores que o valor de mercado de suas propriedades. Mas o mais significativo é que as dificuldades no mercado de créditos hipotecários se alastraram para os outros setores, primeiramente do sistema financeiro, provocando um racionamento e um encarecimento do crédito nesses outros setores além do imobiliário. À medida que os bancos se tornaram mais exigentes para a concessão de créditos, o custo dos mesmos aumentou. É preciso considerar que as condições de acesso fácil ao crédito deram até agora um forte impulso nas ações de empresas dos principais mercados acionários, através do financiamento de operações de compras alavancadas, fusões, aquisições e refinanciamentos de ações.
Com um aumento crescente do endividamento, as empresas e os agentes financeiros se viram forçados a reverem seus planos de investimento. Durante o mês de julho foi suspensa uma grande quantidade de importantes créditos destinados a financiar compras, fusões e aquisições, ou emissões de dívida e ações. Entre os prejudicados se encontram empresas de primeira linha, a nível mundial, de diversos setores da economia. Junto com as grandes empresas da construção dos EUA, os que se vêem mais afetados são os grandes bancos, como o JP Morgan Chase, o (anti-spam-(anti-spam-Bank)) of America e o Citigroup.
OS FUNDAMENTOS DO “CICLO VIRTUOSO” DA ECONOMIA MUNDIAL DOS ÚLTIMOS ANOS
Há um ponto de inflexão para o alto crescimento da economia mundial nos últimos anos. Está se encerrando o ciclo que começou em 2002 quando a Federal Reserve (Banco Central) norte-americana reduziu a taxa de juros e começou a emitir moeda massivamente. Essas medidas, junto ã transição do superávit ao déficit fiscal, tiveram o objetivo de evitar que aquela crise recessiva da economia norte-americana (e por essa via a da economia mundial) se expandisse. Essa oferta excessiva de dinheiro e de crédito fácil se espalhou por todos os lados, e se combinou com a abertura do mercado chinês. Isso deu lugar a uma “troca exitosa”: os EUA atuam como o consumidor em última instância, e a China se desenvolve como a grande oficina manufatureira mundial. Isso reinaugurou o conjunto da economia mundial. Assim, países imperialistas que vinham sofrendo anos de estancamento como o Japão, se beneficiaram do impulso do mercado chinês. Por sua vez, o crescimento da economia mundial pressiona para cima o preço das matérias-primas, o que impulsiona a economia da grande maioria dos países semicoloniais. A América Latina atravessa seu quarto ano de expansão graças aos preços das matérias-primas agrícolas, energéticas e mineiras. Durante 2006, o crescimento alcançou 5%. É uma cifra que há anos não se via. Este contexto extraordinariamente favorável é verdadeira razão da estabilidade relativa dos regimes da América do Sul. Uma mudança da situação econômica internacional poderia levar a uma alteração desta estabilidade da região.
UMA INFLEXÃO NO CONSUMO NORTE-AMERICANO
O panorama para o consumidor está mudando. Seu hiper-consumo se baseou no crescimento do valor das propriedades que fazia com que as pessoas ainda que tivessem salários mais baixos se sentissem mais ricas e assim se endividassem, pondo como garantia propriedades cada vez mais caras. Porém a história se inverteu e foi preciso baixar os gastos para pagar as dívidas. Essa realidade é a que aparentemente explica a forte redução de consumo. A isso se deve agregar a incidência do aumento dos preços do petróleo e da gasolina, e um mercado de trabalho mais debilitado que até agora não se vê claramente nas estatísticas de desemprego porque aparentemente quem está sentindo são os milhões de trabalhadores ilegais, ainda que algumas empresas já tenham começado a demitir contingentes importantes de trabalhadores. O investimento das empresas em software e equipamento vai permanecer débil, em contraste com o aumento no segundo trimestre deste indicador, ainda que em junho e julho observemos uma baixa em bens duráveis.
O FRACASSO DOS NOVOS INSTRUMENTOS FINANCEIROS
Na crise norte-americana de 2000-2001, a fortaleza dos grandes bancos era apresentada como uma mostra do amadurecimento do sistema financeiro. Para muitos, isso estava ligado ao fato de que estes haviam sido capazes de vender o risco a outros como as companhias de seguro ou fundos de investimento e de alto risco. A enorme quantidade de instrumentos de transferência do risco de crédito ou o espetacular desenvolvimento do mercado de derivativos (a compra de um seguro ou proteção do crédito por uma entidade financiadora que transfere o risco do default do empréstimo a um terceiro, seja um investidor ou um banco com nenhuma relação com o emprestador original) avalizam esta visão.
Mas como sustentamos em outras elaborações: “Para além destas transformações que afetam a distribuição do risco creditício, o risco e as perdas inevitáveis que surgem do mesmo não desaparecem. O caráter obscuro destes tipos de operações torna difícil e imprevisível saber sobre quem recairão as perdas e possivelmente as gravíssimas conseqüências” [1].
A crise atual é uma mostra disso. Até agora, a solidez dos novos instrumentos financeiros não havia sido testada pois, comparada com a última crise que afetou o sistema financeiro norte-americano (a crise do “hedge fund LTCM” como estilhaço da crise na Rússia de 1998), o crescimento destes instrumentos deu um salto e hoje não há segmento do sistema financeiro que não seja afetado por essas novas práticas. O medo de que esta crise se alastre graças ã multiplicação destes instrumentos percorre os mercados. Longe de ter diversificado o risco entre milhões de investidores, o atual sistema parece ter reconcentrado o risco nos livros de uma dezena de negociadores, que emprestaram a maioria do dinheiro aos operadores dos fundos de tal maneira que eles pudessem comprar todos aqueles instrumentos. E são muitas destas mesmas firmas - Goldman Sachs, Bear Stearns, Deutsche (anti-spam-(anti-spam-Bank)), Citicorp - as que assinaram contratos de centenas de milhões de dólares em empréstimos para fusões corporativas que, de repente, não puderam vender como planejavam. Não por casualidade, as ações de tais empresas são as mais golpeadas nos últimos meses.
AS CONSEQÌÊNCIAS DA FINANCEIRIZAÇÃO DA ECONOMIA
Essa crise não é somente uma conseqüência da fraude (que existe) ou de negociadores inescrupulosos (que também existem), mas também da estratégia da burguesia concentrada de maximizar seus lucros. A liberalização financeira implicou na desintegração das barreiras entre os bancos de investimento, bancos comerciais e as companhias de seguro estabelecidas pelo “New Deal” como resposta ao superendividamento e a superespeculação que na década de 1920 culminou no crack de 1929. Esta transformação foi acompanhada pela utilização de empréstimos [2] em grande escala, como mencionamos anteriormente, com o objetivo de não estarem ligados a ativos reais e possuírem um título de propriedade facilmente vendável por trás da busca do melhor rendimento. Junto ao desenvolvimento deste “modelo anglo-saxão” de capitalismo acionário [3], estas transformações ampliaram o terreno para a ofensiva do capital sobre o trabalho. Como resultado disso os capitalistas tiveram as mãos livres para cortar todas as concessões conquistadas pelos trabalhadores após a Segunda Guerra Mundial [4], e sancionar no mercado acionário as estratégias de “criação de valor” das companhias. Este elemento, junto ã extensão do capital a novas áreas geográficas e setoriais numa fenomenal internacionalização do processo de produção capitalista [5], permitiu ã ofensiva neoliberal uma recuperação da taxa de lucro que vinha caindo desde o final dos anos 1960 nos EUA e nas principais potências imperialistas.
Entretanto, esta liberdade recobrada do capital financeiro se deu ã custa de aumentar o potencial desestabilizador das finanças, aumentando sua interpenetração com o capital produtivo (ou o “capital em função”, nos termos de Marx) e sua tendência ã superprodução por um lado e com sua face especulativa por outro [6]. Como diz o mesmo artigo da Estratégia Internacional antes citado: “Poderíamos estar descobrindo, na realidade, que a nova ordem financeira não é tudo o que dizem ser. Apesar de que tenha provido novos e engenhosos mecanismos para financiar as necessidades legítimas dos negócios, e novas vias para os investidores de protegerem-se do risco, também tem criado oportunidades para uma especulação desestabilizadora”.
AUMENTAM AS PROBABILIDADES DE UM “POUSO FORÇADO” NA ECONOMIA REAL
O aumento do desemprego nos EUA seria o primeiro indício de que o mercado trabalhista entrou num ciclo baixo do crescimento. O setor imobiliário foi chave no crescimento econômico compondo mais de 25% do PIB e gerou um terço dos empregos criados e quase a metade do gasto em consumo, apesar de que as vendas de imóveis novos e os preços não param de cair. Os dados mostram uma realidade dura para as famílias que aproveitaram as baixas taxas de juros para investir em imóveis. Hoje se calcula que nos EUA existem dois milhões de proprietários a ponto de perderem suas propriedades porque não podem arcar com os compromissos assumidos com os bancos hipotecários.
Esta queda na construção afetou a atividade de muitos setores. Assim, por exemplo, a DuPont, terceira indústria química mais importante, disse por que a queda da demanda por banheiros e cozinha era o que causava seus menores resultados. Neste marco, um salto na crise financeira poderia ser destruidor para o já debilitado corpo econômico dos EUA. Porque se os bancos dificultam a concessão de créditos, a economia real se ressentirá, diminuirá a produção, o desemprego subirá, será congelado o aumento dos lucros, podendo produzir falências em cadeia.
O MITO DO “DESCOLAMENTO” ECONÔMICO DOS EUA
No último período, foi-se criando uma crença de que o crescimento europeu, asiático e latino-americano era o mais sustentável dos últimos vinte anos, e que ia assegurar a continuidade do crescimento mundial. Porém, no início da crise financeira internacional esta crença está se provando um mito. A zona do euro se desacelerou no segundo trimestre. A Itália se caminha para a recessão. O valor da moradia na França caiu 1.5% e a bolha da construção espanhola - o pais europeu que vinha apresentando maiores taxas de crescimento no último período - está prestes a estourar. Por sua vez, a China está aumentando a pressão deflacionária global, buscando escoar seus produtos para outros mercados, já que seu mercado interno é muito estreito para sustentar a economia global.
No último ciclo, as três principais fontes de estímulo ã economia mundial foram os EUA, o Estado Espanhol e a Grã-Bretanha, nesta ordem. Os três boom foram induzidos pelo superendividamento que hoje, no marco da escassez de crédito, está chegando ao fim. Já para o Japão, a principal nação credora do mundo, as coisas não caminham bem. O crescimento diminuiu para 0,1%. O iene deu um salto de 9% contra o euro e a libra esterlina, resultado de que os investidores japoneses se desfizeram das posições especulativas e investimentos na periferia, em especial na Ásia. O fantasma da deflação volta a rondar a economia japonesa, que passou 10 anos quase estagnado apos a crise asiática de 1997.
As obscuras perspectivas da economia mundial golpearam a América Latina. A região que acreditava estar resguardada dos tremores de uma nova crise tem sido golpeada pela retirada de fundos de investidores que lucravam nestas terras. Em especial, golpeou a Argentina e a Venezuela, submetidas a fortes pressões inflacionárias. A economia equatoriana também se encontra emmeio a riscos de um novo default. A fuga de capitais afetou particularmente o Brasil, refletindo-se na subida do dólar e conseqüentemente em novas pressões inflacionárias. Os preços das matérias-primas foram afetados, já que durante o atual boom seu alto preço refletia não só uma forte demanda da China, como também os movimentos especulativos dos mercados. A fuga de qualidade também afetou os demais ativos. Na medida em que o panorama da economia mundial aprofundar sua crise, a deterioração da economia latino-americana tende a se agravar.
A possibilidade de que a atual crise financeira prenuncie, num intervalo maior ou menor de tempo, uma crise geral do capitalismo, daria um aspecto muito mais explosivo ã decadência histórica do imperialismo norteamericano, tema do artigo a seguir.
A. UM PERÍODO DIFÍCIL PARA A DOMINAÇÃO NORTE-AMERICANA
O fim do apoio de massas ã política belicista no Iraque
As eleições legislativas significaram uma importante derrota do presidente Bush e do Partido Republicano. O Partido Democrata recuperou o controle da Câmara de Representantes após 12 anos, obtendo ao menos 28 assentos que estavam em poder de seus rivais, além do controle do Senado. As eleições para governadores também favoreceram os democratas, nas quais se impuseram por uma margem de dois a um.
Este resultado se explica pelo rechaço ã guerra do Iraque (para além da política a favor de sua continuidade por parte da direção e da grande maioria dos candidatos do Partido Democrata), pelos escândalos de corrupção econômica e pessoal que pululam no Capitólio [7], assim como pela insatisfação com o crescimento econômico dos últimos anos, que não se traduz numa melhora do nível de vida da população. Destas questões a determinante foi indubitavelmente a política norte-americana no Iraque. O que está claro é que o eleitorado deixou de brindar apoio ã conduta da administração Bush na guerra. O Financial Times, que em termos gerais faz uma boa análise da votação, sustenta:
Nas pesquisas realizadas na saída da urna, mais de 60% dos votantes declararam que os assuntos nacionais determinaram seu voto. Motivados principalmente por sua oposição ã guerra do Iraque, os votantes de todas as partes dos Estados Unidos respaldaram os candidatos democratas sem ter em conta se eram liberais ou conservadores perante os temas sociais. Fossemos distritos da tradicionalmente liberal zona noroeste dos Estados Unidos, os estados mais disputados do centro-oeste os que poderiammudar o resultado, ou os estados ideologicamente pragmáticos do oeste, ou inclusive os distritos conservadores ao sul da linha Mason-Dixon, é fato que os candidatos republicanos foram castigados por sua associação com a impopular guerra do Iraque do presidente GeorgeW. Bush.
Assinalando que o voto foi um castigo a Bush mais do que um apoio aos democratas, agrega: “A trama central das eleições da metade do mandato de 2006 é que os votantes foram guiados por sua oposição ã guerra do Iraque”, declarou Charlie Cook, cujos informes políticos são lidos por uma ampla maioria dos especialistas em Washington. “Não se tratou de um voto a favor dos democratas, mas antes de um voto contra o presidente Bush e a guerra do Iraque”.
Neste marco, não foi suficiente a Bush e ã maquinaria republicana apoiar-se na sua própria base direitista, a mesma que permitiu a reeleição em 2004. Pela primeira vez desde os atentados terroristas de 11.9.2001 tampouco foram úteis as campanhas sistemáticas de terror sobre a população, utilizadas por Bush como arma para obter uma base social reacionária e mantê-la leal a suas políticas, a despeito de seus resultados desastrosos. O discurso polarizador que considerava que “aquele que quer um cronograma de retirada do Iraque capitula ao terrorismo”, retórica que deu bons resultados no passado, demonstrou sua baixa eficácia nas últimas eleições.
A debilidade política e a paralisação da presidência norte-americana
A mudança de cenário político em Washington deixa a Casa Branca na defensiva. Ainda que os democratas tenham prometido financiar a guerra do Iraque e não chegar a um impeachment do presidente, e muito provável a perspectiva de investigações e audiências na Câmara sobre a condução da guerra, acerca do que realmente sabia a administração Bush a respeito da existência de armas de destruição massiva, em relação ã Halliburton - um gigante coorporativo no qual o vice-presidente Dick Cheney trabalhou no passado - que recebeu de forma injusta um tratamento vantajoso com importantes contratos no Iraque, entre outros temas, sobretudo tendo em conta a proximidade das eleições presidenciais de 2008 [8].
O ressentimento de ex-funcionários da administração, das Forças Armadas e da CIA, que vem se afastando das políticas do atual governo, pode contaminar ainda mais o panorama em um clima muito similar aos dias finais da guerra do Vietnã. A renúncia do secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, no dia seguinte ã eleição é uma mostra de boa vontade para com a fortalecida oposição democrata, ao mesmo tempo que uma tentativa da Casa Branca de evitar a onda de investigações. Nessas circunstâncias a presidência de Bush poderia ficar paralisada. Bush pode se transformar em um lame duck (“pato manco”), no pior sentido do termo. Não só não disporá de novas eleições nas quais influir, como a debilidade e os baixos níveis de aprovação dos dois últimos anos de sua presidência serão assombrosos. As conseqüências para a política exterior norte-americana e o papel dos EUA no mundo podem ser graves.
Um crescente vazio no cenário internacional
Uma presidência forte e um controle total de ambas as câmaras do Congresso, alémde uma Corte ultra-conservadora, foram os elementos chaves da ofensiva reacionária de Bush, tanto internamente - com a detestável “Ata Patriótica”, a aceitação da tortura como recurso e o controle eletrônico das comunicações - como emnível internacional. A forte deterioração dos pilares de seu poder político deixa a presidência dos EUA em posição vulnerável.
O resultado eleitoral provavelmente reforça a tendência ã indecisão e ao retrocesso na política exterior. A falta de iniciativa da política exterior norteamericana já se mostrava em um crescente número de frentes, começando pelo fracasso cada vez mais evidente no Iraque, onde no mês de outubro de 2006 morreram mais de 100 soldados norte-americanos (a terceira cifra mais alta desde que começou a guerra), chegando até o fortalecimento transitório do Irã como potência regional no Oriente Médio, ou as dificuldades de lidar com uma Coréia do Norte possuidora de armamento nuclear. Nestes dois últimos casos, os EUA se apoiavam cada vez mais na União Européia (UE) ou na China, respectivamente. A perda de autoridade da Casa Branca pode aprofundar esta tendência nos próximos anos. Entretanto, a UE encontra-se pouco disposta ou com escassa capacidade de assumir parcelas maiores de liderança internacional após o fracasso em aprovar a Constituição Européia em 2004, ã espera das cruciais eleições presidenciais na França e diante de uma eventual mudança de governo na Grã-Bretanha.
Nestas condições, perante a debilidade da hegemonia norte-americana crescem as possibilidades de que o cenário mundial se caracterize por um crescente vazio. Esta perspectiva abre uma janela de oportunidade no imediato para países semicoloniais como o Irã e grandes potências regionais (como a reemergente Rússia e a ascendente China) para aumentar sua influência na arena internacional. O ensaio nuclear norte-coreano ou o bloqueio aéreo, ferroviário, marítimo e do serviço postal por parte da Rússia contra a Geórgia (um aliado dos EUA), alegando questões de espionagem - ambos os acontecimentos ocorridos antes de 7 de novembro - assim o demonstram. O que está claro é que a debilidade norte-americana aumenta as margens de manobra destes ou de outros atores na política internacional. Por sua vez, a deterioração da potência hegemônica, responsável central pela manutenção da ordem política que permite a acumulação de capital e do reforço do sistema capitalista mundial, pôde ser utilizada pelo Hezbollah na recente guerra do Líbano. Recordemos ademais a instabilidade e crise que atravessa o quintal dos EUA, o México, com um novo governo deslegitimado que não terá sequer uma lua de mel com Washington (a qual os novos mandatários mexicanos sempre aspiram), como fica claro pela construção do muro na fronteira entre ambos os países, e submetido a processos inéditos de luta de classes nas últimas décadas como a Comuna de Oaxaca.
Em outras palavras, para a situação mundial de conjunto, a combinação de crescentes limites do poderio militar norte-americano, a debilidade espantosa da presidência de Bush, a perda de legitimidade e o crescente antinorte-americanismo nomudo, nomarco demovimentos diplomáticos que retiram a margem de manobra dos EUA, gera por um lado uma crescente tensão interestatal que abre brechas em nível regional e entre as grandes potências, com uma tendência a maiores crises políticas e inclusive militares, como estamos vendo no Iraque e no Afeganistão. Esta emergente realidade impede um manejo afiado da ordem capitalista internacional da qual os EUA são o principal garantidor, a despeito de que nos últimos anos se tenha transitado a uma situação de ciclo econômico ascendente que atua como amortizador das contradições sociais, econômicas e inclusive políticas acima colocadas, evitando por ora uma fratura ou deslocamento no terreno das relações inter-imperialistas (apesar de sua degradação) e do mercado mundial (apesar de seus crescentes desequilíbrios e tensões, como o próprio crescimento das correntes e do estado de ânimo protecionista nos EUA). Mas se o crescimento da economia internacional tematuado como uma contratendência a esta nova situação da potência hegemônica, a perda de fortaleza e influência no cenário internacional dos EUA debilita seus aliados governamentais mais próximos, como foi o caso dos anteriores governos da Espanha ou da Itália, ou o atualmente sobrevivente Tony Blair na Inglaterra, assim como os governos mais pró-imperialistas no “mundo” semicolonial, como o novo presidente do México, o que alenta em perspectiva o desenvolvimento da luta de classes e o surgimento de novos fenômenos políticos, ainda que por ora, apesar da crescente atividade do movimento de massas, não seja a luta de classes o que tenha primazia, mas sim a crise e as tensões nas alturas.
Estes elementos, somados ã desaceleração da economia norte-americana que se antecipa em 2007 ou uma eventual mudança da dinâmica da economia internacional, afetada pelas crescentes contradições políticas no coração do império, podem fazer com que a situação internacional mude de signo passando de indefinida, após o pântano em que se encontra o exército norte-americano no Iraque desde 2004, a uma nova situação abertamente favorável ao movimento de massas.
B. A ACELERAÇÃO DA DECADÊNCIA NORTE-AMERICANA
1) A PEDRA DE TOQUE: IRAQUE E O ORIENTE MÉDIO
O giro neoconservador e a tentativa de redesenhar o Oriente Médio
Com sua política ofensiva e beligerante em nível internacional e um regime crescentemente bonapartista os neoconservadores deixavam para trás a política de certa associação com a Europa Ocidental e o Japão, que dava alguma participação a estes nas políticas determinantes da ordem mundial [9].
Encaminhavam-se em direção a uma política de caráter unilateral que tentava mudar a relação de forças com seus competidores imperialistas, em favor dos Estados Unidos, por um longo período de tempo, enquanto que também se reformulava a relação com as burguesiais semicoloniais, assegurando as condições de “um novo século americano”. O ponto mais alto desta ofensiva foi a invasão do Iraque [10], que tinha o objetivo de dar uma dura lição ao chamado fundamentalismo islà¢mico, em particular e ás massas da região em geral mas, sobretudo, reafirmar a supremacia militar dos EUA ao ocupar um país “intermediário”. Desse modo, se provocava um efeito “em cadeia” nos países da região, modificando as bases e as alianças em que se sustentava a ordem regional dominada pelos Estados Unidos.
A nova política tocava nos dois pilares básicos do que havia sido a política norte-americana na região desde a “Guerra dos Seis Dias”, em 1967, quando o triunfo de Israel consolidou este estado como potência regional: a defesa do Estado sionista e do regime Saudita [11]. O primeiro, cumprindo funções de “polícia regional” perante o ascendente nacionalismo árabe. O segundo, garantindo a estabilidade dos fluxos mundiais de petróleo, em troca da defesa da Arábia Saudita diante a seus inimigos na região, como ocorreu na guerra do Golfo de 1991 ante a ocupação do Kuwait pelas tropas de SaddamHussein.
A política dos neocon (chamados alguns a “direita sionista”) priorizava a aliança com o Estado de Israel (considerado o único aliado fiel na região), em detrimento da Arábia Saudita, ã qual se buscava restringir no papel de produtor chave do mercado petroleiro mundial, enquanto auspiciava um processo de reformas que permitisse uma modernização da monarquia de Ryad, cujo território provinha a maioria dos participantes do 11 de setembro (e o próprio Bin Laden). Com respeito ao Iraque e ao Irã, os neocon buscavam transformar a política de “dupla contenção” destes dois países - que guiou Bush-pai na primeira Guerra do Golfo [12], e a equipe de política exterior de Clinton - pelo que um propagandista neocon chamava uma “Dual Rollback of Iran and Irak” ou a derrubada de ambos regimes.
Em relação ao conflito árabe-israelense se dava via livre ao governo sionista para impor uma solução unilateral ao problema palestino, deixando para trás a saída negociada que tanto a administração de Bush-pai, como mais decididamente o governo Bill Clinton haviambuscado [13]. Em síntese, instaurar uma ordem regional mais pró-norte-americana e abertamente sionista [14].
A concretização deste projeto, além da operação no Afeganistão e das alianças estratégicas com Israel e a Índia, teria implicado em pôr na defensiva os regimes muçulmanos num enorme arco geográfico (desde a Arábia Saudita, no Golfo Pérsico, passando pelo eixo Irã-Síria e até o Paquistão, no sul da Ásia, com projeções através do Egito e doMarrocos em direção ao norte da África, com enormes recursos para influir na Ásia Central). Como veremos, seus resultados têm sido o oposto do que seus impulsionadores esperavam.
Resultado I: o triunfo do Hamas e a crise do plano de “retirada unilateral”
Os Estados Unidos e o denominado “Quarteto” - que incluía a União Européia, a Rússia e as Nações Unidas - tinham imposto o primeiro-ministro dentro das instituições da Autoridade Nacional Palestina (ANP) para marginalizar o então presidente Yasser Arafat e permitir uma concertação de poder com os líderes palestinos dispostos a aceitar o plano imperialista. Mas seus cálculos resultaram errôneos. Por sua política conciliadora com o Estado de Israel, Mahmoud Abbas, presidente da ANP, perdeu as eleições legislativas de 25 de janeiro de 2006.
A vitória do Hamas explicitou a bancarrota militar, política e moral da direção palestina histórica, o Al Fatah, assim como o cansaço da população com um processo de paz que havia piorado as condições de vida e multiplicado os sofrimentos cotidianos das massas palestinas.
Desde então, em pincípio de 2006 os Estados Unidos, a União Européia, os governos árabes e o próprio presidente da ANP exerceram uma pressão insuportável sobre o governo palestino dirigido pelo Hamas buscando seu colapso.
A primeira chantagem foi suspender o financiamento internacional, do que em grande medida depende a subsistência do povo palestino, condenado por Israel a não dispor de seus próprios recursos e a ter que cumprir o papel de fonte de mão-de-obra barata nas cidades israelenses. O Estado de Israel também suspendeu o pagamento dos impostos que está obrigado a reintegrar ao governo palestino. Esta situação de sufocamento econômico levou praticamente ã paralisação a administração palestina.
Posteriormente trataram de que tanto o controle das forças de segurança como a conformação de um futuro exército estivesem sob a jurisdição do poder executivo da Autoridade Palestina (nasmãos do Al Fatah) retirando esta atribuição do governo do Hamas. Esta situação derivou em enfrentamentos entre o Al Fatah e o Hamas, que ameaçaram com a possibilidade de uma guerra civil, ao mesmo tempo em que se aprofundavam as divisões entre a ala política doHamas - mais inclinada a aceitar uma negociação - e a ala militar desta organização.
O presidente Abbas tentando tirar vantagem da situação caótica pressionou o Hamas para que assinasse um documento elaborado por dirigentes palestinos presos em Israel [15], no qual se aceitava a construção de um semi-estado palestino nos atuais territórios ocupados, reconhecendo implicitamente não só o Estado de Israel, como também suas conquistas territoriais até a “Guerra dos Seis Dias” de 1967. Limitava a resistência contra Israel só aos territórios ocupados, chamava a conformação de um “governo de unidade nacional” e autorizava unicamente a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e Abbas a negociar em nome do todo o povo palestino. O governo do Hamas terminou aceitando e firmando este documento ante a ameaça de Abbas de convocar um referendo sobre o mesmo. Isto constituiu uma importante concessão da ala política do Hamas, apertada pelas circunstâncias. Entretanto, as ambigüidades do mesmo demonstravam que esta direção ainda não havia chegado ao nível de capitulação da direção histórica da OLP, que sob a direção de Arafat terminou entregando nos acordos de Oslo a luta do povo palestino e seu legítimo direito ã autodeterminação nacional, aceitando a chamada “solução de dois Estados”.
Para o governo do primeiro-ministro israelense Olmert, a concessão do Hamas não foi suficiente. Em conjunto com os países imperialistas exigia o reconhecimento explícito de Israel, dos acordos firmados pela Autoridade Palestina com Israel no passado e a deposição das armas. Utilizando a desculpa do seqüestro de um soldado, o Estado de Israel lançou um brutal ataque militar com os bombardeios e mísseis contra a Faixa de Gaza e o povo palestino, a menos de dez meses de sua “retirada unilateral”. Com a escalada militar, Israel pretendia obter maiores concessões. Recorrendo uma vez mais ao método brutal dos exércitos de ocupação, o Estado sionista buscava quebrar a vontade de resistência da população palestina por meio da fome, da falta de água e de eletricidade, dos ataques contra as cidades e zonas densamente povoadas (como os campos de refugiados de Gaza), assassinando os dirigentes populares, mulheres e crianças, impedindo que os palestinos pudessem sequer trabalhar por um salário miserável em Israel. Enquanto isso, continuava construindo o muro da separação que rodeia as cidades palestinas, mostrando abertamente seu caráter racista e colonialista. Avançava com seu plano de anexar definitivamente Jerusalém. Este era o coração do plano de Olmert, como continuidade da “retirada unilateral” pregada por Sharon, que sem nenhum diálogo com os palestinos culminaria com o desalojamento das colônias menores, isoladas, e pouco interessantes para, em troca, anexar ao território israelense não só toda a Jerusalém, mas também grandes colônias ilegais de Modi’in Illit, Gush Etzion, Ariel, Ma’aleh Adumin, que somam mais de duzentos mil habitantes. Este plano reacionário contava com o aval do presidente Bush e era uma saída ainda mais de direita que o “mapa do caminho”, que até este momento era o marco diplomático internacional para a resolução do conflito, e que nem sequer faz alusão ás resoluções da ONU que exigem o retorno de Israel ás fronteiras de 1967 e a demolição do muro. Entretanto, esta política dura de Olmert caiu por terra após a debacle militar no Líbano [16]. Ainda que Israel nunca tenha abandonado sua ofensiva em Gaza, a política para “resolver ã sua maneira” a questão palestina se encontra hoje em um impasse estratégico: por um lado, a perspectiva de uma capitulação palestina significativa na mesa de negociações parece momentaneamente mais distante; por outro, o governo de Olmert não pôde impor a solução unilateral desenhada por Sharon e tampouco pôde recorrer a um tipo de “solução final” no sentido de uma “limpeza étnica” de proporções, como a que já realizou no passado [17].
A debilidade do Estado sionista pode ser constatada nas posições sustentadas por jornais como Haaretz chamando a conformação de uma força internacional para Gaza [18], como a que recentemente deu cobertura de urgência a Israel na guerra do Líbano.Mas isso está muito longe da histórica oposição de Tel Aviv a “internacionalizar o conflito”, baseado na presunção de que a entrada em cena de uma força externa limitaria a Força de Defesa israelense e tornaria difícil para os militares proteger Israel.
Muito recentemente, em fins de novembro de 2006, o governo de Olmert decretou um surpreendente cessar-fogo em Gaza e num discurso posterior ofereceu liberar um número importante de prisioneiros palestinos em troca da libertação do soldado israelense Gilad Shalit - cuja captura foi a desculpa utilizada por Israel para lançar a última invasão a este território -, assim como uma significativa redução dos controles do movimento de pessoas e mercadorias em Gaza e na Cisjordânia e a completa reabertura de negociações para criar um Estado palestino. Esta oferta de negociações de paz busca fortalecer Abbas para a formação de um novo governo palestino que, ã diferença da atual administração do Hamas, reconheça o Estado de Israel e renuncie ã violência. Mais importante que as considerações palestino-israelenses, a mudança no discurso do primeiro-ministro israelense é uma concessão (e um pedido) aos países árabes em troca de sua colaboração no Iraque e sua aliança contra o Irã. Entretanto, ninguém espera que Bush pressione a fundo Israel em busca de concessões territoriais significativas para os palestinos, apesar das conversações sobre a solução do conflito palestino.
Por sua vez, a decisão de Abbas de convocar eleições presidenciais e legislativas para superar o impasse na formação de um governo de unidade nacional é considerada pelo Hamas como uma tentativa de golpe de estado. Esta é a última chantagem da direção colaboracionista do Al Fatah, avalizada pelo imperialismo e o Estado sionista com a viagem a Teerã do primeiroministro do Hamas, IsmailHaniyeh, para demonstrar que sua administração dispõe de outras fontes de financiamento, apesar do boicote internacional, enquanto declarou na capital iraniana que seu governo nunca reconhecerá o Estado de Israel. A crescente tensão entre estes dois setores tem avançado a uma guerra civil de fato com uma semana de enfrentamentos armados, atentados, queima de escritórios e propriedades, mobilizações radicais nas ruas de Gaza, e em certa medida na Cisjordânia. O cessar-fogo alcançado é inteiramente frágil não só pela falta de consenso sobre o tema eleitoral, senão pelo nível de violência sem precedentes entre ambos os grupos que pode desembocar numa guerra civil de conseqüências imprevisíveis.
Uma guerra entre os palestinos fortaleceria o Estado sionista após seu fracasso militar na guerra do Líbano. Entretanto, no marco da enorme instabilidade na região não estão claras as conseqüências e repercussões que tal acontecimento poderia ter. O temor dos regimes árabes vizinhos do desencadeamento de tal cenário é palpável, como mostra o convite não oficial realizado pelo rei da Jordânia, Abdullah, a Ismail Haniyeh e Mahmoud Abbas para saldar suas diferenças. A última coisa que Abdullah quer é que o conflito entre o Hamas e o Al Fatah se estenda de Gaza e Cisjordânia ã capital de seu país, Amman, onde vivem milhões de palestinos. Outros países árabes também expressaram reservas: o Egito está descontente com Abbas porque este não os consultou antes de seu chamado ás eleições. Estes países árabes, como a Arábia Saudita, temem que o Fatah poderia perder tanto o controle do Parlamento como da presidência, o que segundo sua lógica negociadora criaria uma situação na qual não haveria nenhum dirigente palestino aceitável que pudesse representar a Autoridade Palestina perante a comunidade internacional no terreno diplomático. Este temor não é infundado, já que apesar de ser verdade que a situação nos territórios é insuportável devido ao boicote generalizado, isso não equivale necessariamente a que a população culpe o Hamas pela situação imposta por Israel, pelas potências imperialistas e pelos governos árabes da região. O Hamas, por sua vez, aposta num debilitamento das sanções. Segundo sua visão os países árabes não seriam capazes de conviver durante muito tempo com o padecimento que sofrem as massas palestinas sem romper o cerco, sobretudo no marco da vontade do Irã de ajudar o Hamas e da competição com os Estados árabes pela influência sobre os palestinos.
Resultado II: o primeiro fracasso militar de Israel em sua história
Longe do fortalecimento que visava a política dos neocons, o Estado de Israel sofreu o primeiro fracasso militar de sua história na recente guerra do Líbano. O resultado da guerra traz consigo a erosão do principal pilar da segurança nacional israelense: sua imagem beligerante, encarnada num vasto, poderoso e tecnicamente avançado exército, ao qual se reconhece a capacidade de dar golpes decisivos sobre seus inimigos. Isto pode constituir um acontecimento histórico de significado oposto ã Guerra dos Seis Dias de 1967 [19]. Esta enorme derrota contra-revolucionária dos povos árabes abriu uma nova etapa do conflito árabe-israelense que implicou num duro golpe para as massas e países da região e estabeleceu o status de Israel como potência regional. Pelo contrário, o resultado da recente guerra até o momento pode abrir no OrienteMédio uma mudança estratégica oposta aos interesses do Estado sionista e dos EUA. Como diz David Hirst, correspondente do jornal inglês The Guardian no Oriente Médio, de 1963 a 2001:
O novo desta campanha é o seu resultado. Os árabes prontamente a batizaram a Sexta Guerra Árabe-Israelense e, para alguns deles - e também para alguns israelenses - já se perfila por suas conseqüências estratégicas, psicológicas e políticas, quiçá como a mais significativa desde a ‘Guerra da Independência’ de Israel em 1948. Não é simplesmente o desempenho do Hezbollah que mudou o equilíbrio político ã custa de Israel; é o exemplo que estabelece para a região (...) a conquista do Hezbollah teve um impacto eletrizante nas massas árabes e muçulmanas que transcende em muito a outrora crescente divisão entre sunitas e xiitas; contribuiria para sua maior radicalização e, se não é apaziguada pelos regimes árabes, para transformar toda ordem regional [20].
O determinante é que o fracasso israelense levantou a moral das massas árabes, gerando forças tendentes ã unidade acima das divisões religiosas, o que pode alentar seu despertar político e a mobilização independente contra os governos árabes reacionários e contra o próprio Estado “terrorista” de Israel. Junto ã resistência do Hezbollah, as razões que explicam o fracasso militar israelense põem de manifesto uma considerável decomposição do Estado sionista. A mescla de arrogância e “prepotência militar”, confiança na superioridade da sua tecnologia e racismo de seus oficiais, educados na crença de que o soldado israelense é superior ao árabe, se voltaram contra eles mesmos. A confiança de seus generais em sua invencibilidade numa guerra convencional e a visão do Hezbollah como um grupo inoperante, que em poucos dias seria dizimado com ataques aéreos, levou a direção política a fixar objetivos ambiciosos, mas irrealizáveis.
Isto junto ás surpresas táticas do Hezbollah [21], os inumeráveis erros de inteligência [22], a falta de suprimentos que desmoralizou a sua tropa e a pouca preparação do exército, são as chaves de seu fracasso. Em outras palavras, com um exército habituado nos últimos anos a tarefas policiais nos territórios palestinos ocupados e cruzado pelo fantasma de uma nova guerra de desgaste de contra-insurgência, como foi a do Líbano de 1982 - considerado o “Vietnã” israelense -, que desgarrara a sua sociedade, e enfrentado ao crescente isolamento internacional, o Estado de Israel acabou cedendo.
Entretanto, a crise é mais estrutural. Não é só o fracasso dos objetivos do governo de Ehud Olmert, senão um conjunto de elementos negativos que demonstram uma importante decomposição do Estado sionista. Nele se mesclam indícios de corrupção, torpeza nas decisões e até o esquecimento criminoso de um segmento substancial de sua própria população, o caso de mais de um milhão de israelenses pobres que foram abandonados a sua sorte no norte de Israel sob os mísseis do Hezbollah. A isso se somam as críticas dos reservistas que regressam do front sobre o equipamento inadequado, a escassez de rações e as perguntas sobre como se usou um orçamento militar que aumentou desde 2001. Os sinais de decadência na camada dirigente são mais que evidentes. O “escândalo Halutz”, o chefe das Forças Armadas que vendeu suas ações na Bolsa no mesmo dia que começaram as operações militares, sacudiu a opinião pública. O primeiro-ministro Olmert e sua esposa se beneficiaram com aquisições imobiliárias, enquanto o ministro da Justiça foi acusado de abuso sexual. Tampouco se salvam os “generais”.
O ex-primeiro-ministro e “falcão” Sharon (depois em estado de coma) e seu filho foram subornados para a compra de uma ilha grega pelo hipercorrupto empresário de extrema-direita David Appel [23]. O general Ehud Barak, outro ex-primeiro-ministro, renunciou a sua cadeira legislativa para converter-se em “conselheiro” de seguradoras de riscos, em associação com multimilionários israelenses. Isto sem nomear os inumeráveis negócios do linha dura Netanyahu, líder do Partido Likud, com o mafioso Jack Abramoff, por sua vez ligado ao texano e “cristão sionista” Tom De Lay, ex-líder da bancada de deputados do Partido Republicano afastado por escândalos de corrupção. Parece que a avareza e o enriquecimento pessoal que caracterizam o capitalismo, exacerbados nos últimos anos de “neoliberalismo”, corrói a elite sionista, subtraindo-lhe toda autoridade moral, enquanto leva seus soldados a morrerem como “bucha de canhão”. Isto configura estrategicamente um handicap muito significativo e favorável para alcançar a derrota e a dissolução deste enclave do imperialismo, o Estado sionista. No imediato, o frágil governo de coalizão de Olmert foi fortemente ferido pelo resultado da guerra, o que o forçou a buscar um compromisso com o partido ultra-conservador Yisrael Beiteinu.
Este partido de extrema-direita acordou unir-se impondo um bom número de condicionantes - uma das quais a nomeação do seu chefe, Avgdor Lieberman, como ministro de Assuntos Estratégicos, encarregado da política israelense para o Irã. Em outras palavras, uma fonte de novos conflitos. Por sua vez, no Líbano o fortalecimento do Hezbollah, para além de suas implicações regionais, está pondo em questão o único avanço que até agora o imperialismo podia mostrar na região: a chamada “Revolução dos Cedros” e a constituição do governo pró-imperialista, encabeçado pelo primeiro ministro Fouad Siniora. A pressão do Hezbollah em aliança com os cristãos maronitas do ex-general Aoun para alterar a composição do gabinete em seu favor e ter poder de veto sobre as decisões tem levado o governo de Siniora a uma forte crise, com a renúncia dos cinco ministros xiitas (os representantes dos movimentos Hezbollah e Amal), que ameaça com a queda do governo. A mudança na relação de forças internas gerada pelo resultado da guerra está abrindo uma crise potencialmente explosiva no Líbano, deixando os aliados dos EUA na defensiva apesar de suas provocações.
Uma mostra disso é o aval unânime do gabinete ã decisão da ONU de criar um tribunal internacional que julgue o assassinato do ex-primeiro ministro Rafik Hariri [24], aproveitando o breve respiro que lhe deu o atentado em que morreu o ministro Pierre Gemayel [25], e aumentando a tensão entre o Conselho de Segurança da ONU e a Síria, e entre esta última e a Arábia Saudita, que disputam o controle do Líbano. Entretanto, isto não deteve as mobilizações massivas de partidários do Hezbollah, que vêm paralisando o centro de Beirute, afetando a economia (sobretudo, a indústria do turismo), numa mostra de quem está na ofensiva. No entanto, apesar desta demonstração de força, Siniora e os patrocinadores regionais e internacionais que o respaldam se negam a ceder, continuando o impasse. Se este não se resolve, não se pode descartar que o exército libanês assuma o governo com a intenção de restaurar a ordem.Ochefe do exército, general Michel Suleiman, alertou o governo e a oposição de que sua força está desgastada e não é imune ás tensões sectárias que cruzam o país. Numa velada ameaça de golpe de estado, disse que não permitiria que a crise política dividisse o exército segundo linhas sectárias.
Resultado III: a ocupação do Iraque, uma catástrofe de proporções históricas
Os Estados Unidos não obtiveram nenhum dos objetivos que buscavam com a ocupação militar do Iraque, especialmente seu objetivo central: demonstrar sua grande superioridade militar e sua capacidade para ocupar um país de médio porte como o Iraque, como mensagem atemorizadora a todo aquele que queira se enfrentar a seus desígnios. Pelo contrário, sua ocupação militar no Iraque se transformou em um pântano não só militar, como também político, com a continuidade da insurgência e o início de uma guerra civil que pode aumentar em intensidade. Esta situação tem um enorme custo para seu domínio regional e conseqüências graves para a percepção de seu poderio em escala mundial. Para alguns analistas se trata de uma derrota militar ou, mais duramente, de uma catástrofe de proporções históricas:
Agora o mundo inteiro diz que é um imbróglio.Talvez isto seja uma visão superficial, porque se trata de uma derrota militar de primeira ordem. Não importa quais erros se cometeram na planificação ou se não houve planificação. Não importa que o equipamento não tenha sido adequado ou que as táticas e estratégias não foram como deveriam ter sido. Houve guerras que começaram pior e foram ganhas. Mas foram ganhas realmente. No Iraque, os Estados Unidos foram derrotados militarmente porque não alcançaram nenhum dos objetivos mais elementares que se poderia ter dito que tinham. Não se tratava de objetivos tontos de lições de educação cívica nas escolas secundárias que teriam a ver com a ‘democracia’ ou ‘os corações e as mentes’ - poderia Stalin ter deixado de rir se alguém tivesse dito a ele que não se havia ganhado os corações e as mentes da Europa do Leste? Não, para obter qualquer tipo de objetivo militar os Estados Unidos tinham que controlar o Iraque. Isto significa, por exemplo, controlar a capital, as principais estradas, impor de maneira real a autoridade em todo o país, como os aliados fizeram na Alemanha e os Estados Unidos no Japão.
Os EUA não estabeleceramo controlemilitar sobre a capital iraquiana e muito menos em todo o país. Este era seu objetivo. O fim não era eliminar o exército iraquiano, que nunca foi considerado uma ameaça, mas ter o Iraque sob seu controle de maneira tal que, de acordo com a administração, não representasse nenhuma ameaça para os Estados Unidos no futuro - ou em minha opinião, de maneira tal que os Estados Unidos fossem capaz de ter algum país, em alguma parte do mundo, sob seu controle. Os Estados Unidos fracassaram em alcançar estes objetivos, mas isso não foi pela ação de uma mancha solar ou porque um asteróide se chocou contra a Terra. Fracassou em conseguir seus objetivos porque gente com armas nas mãos evitaram que os Estados Unidos conseguissem seus objetivos. Não sei se esta gente ganhou, mas o que é bastante claro é que os EUA perderam. Não obtiveram seus objetivos e por isso não ganharam. De modo que os EUA não podem conquistar um país que tem funcionado aos trancos e barrancos por anos: um país que, quando está emboa forma é apenas o suficientemente grande e sofisticado para considerá-lo um oponente sério. Retirar-se agora seria, sem nenhuma dúvida, um claro exemplo de como sair correndo. É mais que uma derrota militar, é mais que um desastre político, é uma catástrofe de proporções históricas [26].
O fracasso militar do imperialismo ianque em derrotar a insurgência sunita em Falujah, que em abril de 2004 se combinou com o primeiro levantamento da milícia xiita de Al Sadr, abrindo a perspectiva de uma verdadeira luta de libertação nacional que pudesse derrotar a invasão imperialista, o levou a utilizar a velha fórmula de “divide e reinarás”. Esta política reacionária exacerbou as tensões étnicas e religiosas do país, tensões que deram um salto em fevereiro de 2006 com o ataque á mesquita Askariya da cidade de Samarra, situada a 100 km ao norte de Bagdá, atentado atribuído ao chefe da Al Qaeda no Iraque, Al Zarqawi [27].
A ferocidade dos ataques sunitas, em particular os comandados pela Al Qaeda - que propugnavam uma guerra civil como o melhor meio para debilitar militarmente os EUA - levaram ã resposta crescente das milícias xiitas, que não puderam se conter como pediamos clérigos xiitas, em especial Al Sistani (que vem perdendo a influência moderadora que teve na história pós-invasão do Iraque). Destas, a que cobrou o maior preço foi a milícia de Al Sadr, que controla o sul do país, com exceção de Basra e seus arredores, além de Sadr City em Bagdá e se encontra presente em boa parte das forças de segurança e de polícia que se formaram nos últimos três anos. A milícia de Sadr é a única fração com uma base de massas real em todo o Iraque. Este movimento deu um giro em sua orientação: em abril de 2004 colocou uma frente-única baseada no nacionalismo hostil tanto ã influência árabe como iraniana no Iraque, que quase tomou corpo quando tornaram causa comum os insurgentes entrincheirados em Fallujah e as forças de Al Sadr na cidade de Najaf contra o exército norte-americano. Entretanto, esta perspectiva não se materializou e diante dos crescentes golpes anti xiitas da insurgência sunita, as forças de Al Sadr ou uma multidão de milícias que atuam em seu nome, emergiram como uma das principais forças que exerce a violência inter-religiosa - ainda que Al Sadr tentemoderar a reação de seus partidários, sendo em grande parte superado por eles -, responsáveis ao menos em Bagdá e áreas adjacentes, da maioria das matanças sectárias. O deslizamento para uma guerra civil ameaçava criar uma desestabilização maior, que impedisse os EUA de ter uma saída decorosa. Ante esta realidade, a ocupação norte-americana alentou a formação do governo de “unidade nacional” de Al Maliki. Tal governo, baseado na maioria xiita, mas com uma forte incorporação sunita, além dos curdos, buscava por sua vez conter a insurgência e frear os enfrentamentos inter-religiosos alentados também pelas milícias xiitas. Pese o seu êxito inicial com o assassinato de Al Zarqawi, a situação, longe de se apaziguar, se agravou. Por exemplo, em julho quando a atenção mundial estava no Líbano, a violência no Iraque deu um novo salto: o provam as 3.438 mortes neste mês, que se aumentavam ainda mais nos meses seguintes. As razões se assentam na continuidade da resistência contra a ocupação, no salto na luta sectária e, cada vez mais, nas crescentes pugnas entre os EUA e o Irã, país no qual foram se infiltrando no sul do território iraquiano, sobretudo no movimento de Al Sadr que, ironicamente, é a mais anti iraniana de todas as organizações xiitas. Junto a este elemento externo, que deu ao Irã uma maior (ainda que não predominante) influência no Iraque, o país se encontra totalmente dividido sobre o futuro, fundamentalmente sobre a estrutura política que deve ser adotada (estado centralizado ou federalismo) e, ligado a isso, sobre a repartição da renda petroleira não só entre as distintas etnias e religiões, como também dentro de cada uma delas, como o demonstra a crescente tensão e os enfrentamentos dentro do xiismo, ou entre os setores sunitas e os grupos fundamentalistas islà¢micos, que foram aliados na resistência ã ocupação norte-americana. Anthony H. Cordesman, do CSIS, dá uma mostra patética de até onde chegou a situação:
Segundo os cálculos do Departamento de Defesa, o nível de violência sectária é entre 10 e 12 vezes maior do que era em janeiro, e não há sinais que indiquem que vá diminuir. Estes níveis de violência, ademais, ignoram fatos da realidade que estão excluídos dos informes que nós como governo, e a coalizão, fazemos das lutas civis. Os britânicos têm sido essencialmente derrotados em Basora, que está sob o controle dos grupos islà¢micos extremistas xiitas, debilmente coordenados, cujas afiliações com Sadr ou SCIRI [28] são incertas. O sudeste do Iraque caiu sob o controle de vários elementos que estão relacionados, mas só de maneira débil, ao governo central. Há um processo de limpeza sectária e étnica que se estende para além das fronteiras de Bagdá.
Há uma contínua formação de milícias, de violência potencial na área ao redor de Kirkuk. Se o conflito entre sunitas e xiitas escapa do controle, se apresenta como um problema de muita gravidade, os curdos terão que tomar decisões muito difíceis; por exemplo, se aliam-se aos xiitas, se buscam algum tipo de independência, se tratam de fazer um bom negócio nas zonas petroleiras do norte de Kirkuk, ou se buscam controlar isso pela força. Estamos falando em termos de território, por certo. E se lemos alguns dos informes, se concentram em Bagdá, mas a verdade é que se alguém observa as últimas seis semanas o que vemos é uma constante e contínua expansão geográfica da violência. [29]
Ainda que a operação iraquiana esteja se convertendo num desastre para o imperialismo, isto não significa que o estalar de uma guerra civil seja uma variante positiva para o movimento de massas. Pelo contrário, desde o ponto de vista da mobilização revolucionária das massas, a guerra civil no Iraque é um forte obstáculo, já que impede sua unidade para terminar coma ocupação e a dominação imperialista. É uma tendência contraposta ã aberta com o fracasso militar israelense no Líbano, já que apesar de que poderia debilitar o imperialismo norte-americano nesta estratégica região, desgastaria por sua vez as forças das massas, as únicas que com sua unidade de classe, expulsando o imperialismo e derrotando o conjunto dos setores burgueses reacionários que buscam dominar o país e se enfrentam por partes da renda petroleira - sejam árabes sunitas, xiitas ou curdos -, podem dar uma saída progressiva ã atual debacle provocada pela invasão imperialista.
Resultado IV: o fortalecimento transitório do Irã como potência regional
O Irã tem se beneficiado de uma série de acontecimentos que melhoraram seu posicionamento na região. Entre estes, o fracasso do exército israelense no Líbano e o fortalecimento do Hezbollah, aliado de Teerã, e fundamentalmente os resultados negativos da ocupação norte-americana no Iraque, que terminaram favorecendo a maioria xiita em detrimento de seu inimigo histórico na região - o Iraque dirigido pelos árabes sunitas.
Até o momento, Washington jamais aproveitou as aberturas que Teerã lhe ofereceu para modificar estrategicamente as relações entre estes dois países que se distanciaram após a revolução iraniana de 1979. Isto foi claro no Afeganistão, onde o enviado de Bush abriu conversações com o regime dos aiatolás para coordenar esforços para derrubar os talebãs. Mas as intenções de Bush eram meramente táticas, sem permitir que a cooperação levasse a uma mudança de atitude em relação ao Irã. Uma vez que a ajuda iraniana no Afeganistão não foi mais necessária, as relações se esfriaram significativamente, em grande parte graças ã influência de Rumsfeld. Apenas semanas após a Conferência de Bonn em dezembro de 2001, na qual a comitiva de Teerã foi crucial para alcançar um compromisso entre os senhores da guerra do Afeganistão, Bush pôs o Irã no “eixo do mal” junto com o Iraque e a Coréia do Norte. Isto foi endurecendo as posições do regine iraniano.
No princípio, o Irã tolerou a invasão norte-americana, apostando que esta debilitasse e enfraquecesse os sunitas. Quando os ianques modificaram relativamente suas alianças e começaram a apoiar-se mais nos sunitas, que dominavam o país sob Saddan Hussein, para compensar a hegemonia absoluta dos xiitas, o Irã passou a uma política de maior desestabilização, aparentemente treinando milícias em seu território e alentando golpes contra os sunitas. No último período, vendo a debilidade interna de Bush e das forças norte-americanas no território, buscou rediscutir seus avanços obtidos até este momento no Iraque, recordando-lhe e fazendo ver aos EUA quem era o novo jogador forte no país, mantendo um alto nível de violência. A isso há que somar seus avanços no terreno do enriquecimento de urânio e em seu direito inalienável ao desenvolvimento de um programa nuclear [30], questão que vem empurrando até o limite, apesar da votação por unanimidade da ONU exigindo deter o desenvolvimento de seu programa nuclear, sendo queWashington foi incapaz sequer de impor restrições para os encarregados iranianos do programa nuclear de viajarem.
O fortalecimento transitório do Irã ameaça desestabilizar a relação de forças no Golfo Pérsico. Contando com o principal exército na região e somado ã presença de populações xiitas (majoritárias em algumas das monarquias do Golfo ou em regiões petrolíferas do reino saudita), se verá que as combinações esperadas representam um perigo potencial tanto para a monarquia saudita, como com respeito ao domínio do mercado petroleiro mundial em geral.
Uma consolidação do Irã como potência regional seria um duro golpe não só para a monarquia saudita (o Irã compete pela liderança do mundo muçulmano), senão para a principal potência regional, Israel. Tel Aviv, que teme que o avanço do programa nuclear iraniano, e os movimentos que Teerã impulsiona, não só façam crescer a frente anti-sionista como, fundamentalmente, quebrem o monopólio nuclear israelense na região e a enorme força de dissuasão que esta exclusividade lhe outorga entre os países da zona.
Resultado V: todas as opções de saída do Iraque são ruins
Como explicamos mais acima, a última política de Washington no Iraque tem sido criar um ambiente militar adequado para sustentar um governo centralizado. Esta foi a aposta quando Maliki assumiu. Entretanto, o crescimento das disputas internas e a interferência externa, em particular do Irã, lançaram por terra aquelas expectativas. Os mais de cem soldados norte-americanos mortos em fevereiro de 2007 assim o demonstram.
Com este horizonte, manter o curso, como sustentou o presidente em sua campanha eleitoral, é cada vez mais difícil. Por um lado, pela mudança da situação nos EUA e, por outro, devido ã mesma ineficácia da atual política, que multiplica as baixas das forças norte-americanas sem conseguir uma modificação qualitativa da situação política ou militar no Iraque. Além disso, o esquema ao qual tem conduzido a política atual deixa presa uma alta porcentagem das Forças Armadas norte-americanas no Iraque, debilitando a posição geral dos EUA no mundo, e tornando-o vulnerável em outras partes do planeta. Esta consideração é em última instância determinante para uma mudança de rumo.
Por outro lado, a variante de retirar unilateralmente as tropas sem um acordo político prévio (com a humilhação que isso significa para o poderio militar dos EUA, e o perigo que implicaria para o equilíbrio de forças no Golfo Pérsico, em especial para a Arábia Saudita), conduziria ao fortalecimento político e militar do Irã. Com efeito, Teerã aproveitaria o vazio deixado pelos EUA para avançar sobre o Iraque, estender seu poder sobre a fronteira norte da Arábia, o Kuwait e sobre a fronteira leste da Jordânia, convertendo-se na potência dominante da região. Isto sem contar outros efeitos possíveis no conjunto do Oriente Médio e no “mundo” muçulmano em geral [31], o que torna evidente que a retirada unilateral não é uma alternativa aceitável para o conjunto do establishment político e militar de Washington, seja do Partido Republicano ou do Democrata. Neste contexto, vêm se embaralhando distintas variantes, em meio a uma luta cada vez mais aberta nos corredores do poder entre as distintas alas do establishment e da administração em Washington:
Uma das alternativas cogitadas seria uma mudança de alianças dentro do bloco governante, apontando o SCIRI como eixo da nova coalizão, conjuntamente com as correntes moderadas, excluindo a corrente de Al Sadr. Esta variante deixaria de lado não só este setor xiita como também importantes setores da insurgência, com os quais fracassaram as conversações que vinham sendo levadas adiante secretamente, pondo um limite ã incorporação mais decidida de sunitas, incluindo a reabilitação de muitos membros do Partido Baath. Esta última questão é colocada enfaticamente pelo Grupo de Estudos sobre o Iraque, liderado pelo ex-secretário de Estado James Baker e o exdeputado democrata Lee Hamilton [32]. Emoposição frontal a esta última opção, se especula sobre a denominada “solução 80%”, que incorporaria aos xiitas (60%) e os curdos (20%), deixando fora da partilha do poder os 20%sunitas.
Apesar das importantes diferenças táticas com respeito ao Iraque, a maioria das frações em Washington concorda em diminuir o peso da corrente de Al Sadr e em destruir seu movimento. Ainda que tenha colaborado com a ocupação norte-americana, a insistência verbal de Al Sadr sobre um cronograma de retirada de todas as forças de ocupação norteamericanas e o direito do Iraque a determinar como são explorados seus recursos petroleiros, combinado com a manutenção de sua milícia - que algumas fontes calculam entre 40.000 e 60.000 homens -, é visto como um crescente obstáculo para qualquer dos planos deWashington. Além disso, Al Sadr se opôs ã guerra israelense contra o Líbano. Neste contexto, vem crescemdo nos últimos meses os enfrentamentos e as escaramuças do exército norte-americano e do exército Mehdi. No caso de que Mailiki - submetido por um lado a grandes pressões por parte dos EUA [33], e por outro, do próprio Al Sadr, que suspendeu sua participação no governo retirando seus cinco ministros do gabinete e seus trinta parlamentares depois da entrevista de Maliki com Bush em 30/11 na Jordânia -, não consiga restaurar a ordem, não se descarta a sua substituição [34]. A decisão de ir contra o movimento de Al Sadr pode implicar um banho de sangue envolvendo os setores xiitas mais pobres e da classe operária, como os que vivem amontoados em Sadr City.
A visita de Al Hakim aWashington é outro indício de preparações para um confronto armado com a milícia sadrista, e uma tentativa dos EUA de remodelar seu regime fantoche em Bagdá. As declarações de Al Hakim na capital norte-americana são eloqüentes: “Num discurso diante do Instituto Norte-americano da Paz, Hakim disse que haveria de ter uma resposta militar mais dura perante a violência da milícia. Os ataques de parte das forças multinacionais não estão ã altura de suas atividades criminosas” [35]. O SCIRI, que foi um dos mais firmes partidários da invasão norte-americana, em vista de assegurar o poder e os privilégios do clero xiita e sua elite proprietária, já colaborou fortemente com a ocupação norte-americana contra os sadristas, com quem compete pela influência da população xiita. Em abril de 2004 se opôs ao levantamento de Al Sadr e, posteriormente, como parte do governo de linha dura de Iyad Allawi, seus ministros aprovaram o brutal ataque norte-americano a Karbala e Najaf, onde foram massacrados centenas de lutadores xiitas.
Os riscos desta variante são enormes, já que poderia desatar um levantamento de grande parte dos xiitas, provavelmente mais difícil de conter que a rebelião xiita contra Saddam Hussein após a Primeira Guerra do Golfo. Ademais, está para se ver se a capacidade de Al Hakim de obter tal resultado, por outro lado não deixaria o menor vestígio da já frágil situação que o Iraque vive, piorando o caos.
Por sua vez, o Grupo de Estudo sobre o Iraque (ISG, sigla em inglês) tem como eixo a reconciliação nacional, “essencial para que se reduza a violência futura e que se mantenha a unidade do Iraque”. Toda a ênfase está posta em como incorporar os sunitas:
O governo iraquiano deve enviar umsinal claro aos sunitas e dizer-lhes que há um lugar para eles na vida nacional. O governo deve atuar agora mesmo, enviar um sinal de esperança. A menos que os sunitas creiam que podem obter um trato justo no Iraque através do processo político não haverá perspectiva de que a insurgência termine.
Para isso recomenda:
A reconciliação política requer a reintegração dos baathistas e dos nacionalistas árabes na vida nacional, na qual estejam excluídas as figuras líderes do regime de Saddam Hussein. Os Estados Unidos devem incentivar o retorno dos profissionais graduados iraquianos - sunitas ou xiitas, nacionalistas ou ex-baathistas, curdos ou do Turkmenistão, cristãos ou árabes - dentro do governo.
Mais ainda, sobre a repartição da renda petroleira, o ponto que mais tem dividido os diferentes setores no Iraque, o ISG toma claramente partido: “A renda petroleira deve corresponder ao governo central e ser compartilhada sobre a base da população. Nenhuma fórmula que dê o controle dos lucros de futuras zonas petroleiras ás regiões, ou que dê o controle das zonas petroleiras ás regiões, é compatível com uma reconciliação nacional”. Como se pode apreciar, os velhos “realistas” da administração Bush-pai fizeram um “manifesto” em favor de seus aliados árabes.Tanto é assim que alguns setores chamam o ISG de Saudi Protection League (Liga de Proteção da Arábia Saudita). O ponto mais conflituoso do informe, o chamado ã diplomacia internacional, em especial com o regime iraniano, não deve fazer-nos perder de vista que faz parte dos recursos utilizados para aproximar-se a uma reconciliação nacional, ainda que esta reivindicação e a alusão a uma condicionada retirada das tropas para 2008 - proposta que surgiu do caráter consensual da Comissão - deixaram os sauditas nervosos. Devido a que o objetivo é limitar as ambições xiitas e curdas em relação ã população sunita, o chamado a uma conferência internacional, incluído em recomendações, tem sido rechaçado por dirigentes destas comunidades, como Al Hakim ou o presidente do Iraque, o curdo Jalal Talabani. Este último, referindo-se ao informe do ISG - que entre outras coisas se intromete nas aspirações dos curdos ao controle de Kirkuk (onde se encontra 40% das reservas petroleiras do Iraque) - declarou que “podemos perceber a atitude de James Baker em 1991 quando libertou o Kuwait, mas deixou Saddam no poder”, em referência ao comportamento norte-americano após a Primeira Guerra do Golfo, quando os levantamentos xiitas e curdos foram abandonados a sua sorte pelo governo norte-americano [36].
Por sua vez, os apontamentos do ISG foram atacados desde diversos ângulos e setores, aumentando e tornandomais públicas as disputas na própria Washington, e em alguns de seus aliados como a Arábia Saudita e Israel.
Um dos mais fortes críticos tem sido o candidato republicano a presidente, JohnMcCain. Ao contrário do ISG que recomenda uma redução condicionada (não deixar de notar a referência a esta palavra) das tropas para 2008, McCain defende seu incremento. Com respeito ã proposta do ISG argumentou que: “(...) fazer isso poderia exacerbar a situação no território (...) ‘Há só uma coisa pior que um corpo do Exército e da Marinha desgastado pelo cansaço; uma derrota dos efetivos do Exército e da Marinha”. McCain disse aos líderes do grupo de estudo: “(...) em 1973 vimos isso. E creio que isto é uma receita que, cedo ou tarde, levará a nossa derrota no Iraque”. Criticou o chamado a uma conferência internacional com a Síria e o Irã nos seguintes termos: “Não creio que uma conferência de paz com gente que está dedicada a sua extinção tenha um objetivo a curto prazo” [37].
A revista The Economist deu um grito de alerta sobre este mesmo ponto:
o grupo Baker-Hamilton está seguramente equivocado ao crer que o anúncio da partida do exército irá fortalecer a influência norte-americana na política interna do Iraque. O oposto é mais provável. Bush, um presidente condenado ao fracasso seria um presidente condenado ao fracasso numa ocupação destinada ao fracasso (...) Apoiar-se com firmeza nos políticos iraquianos é uma idéia excelente. Mas estabelecer uma data arbitrária a princípios de 2008 para que se retire a maioria dos soldados tem o risco de debilitar o poder de negociação dos Estados Unidos, de gerar a intensificação ao invés da mitigação da luta e projetar uma imagem de debilidade; isso encorajaria nossos inimigos em todas as partes [38].
Por sua vez, a Arábia Saudita tem ameaçado ajudar o setor sunita no Iraque se os EUA começarem uma retirada escalonada de suas tropas, considerando que diante desta circunstância a inação seria pior que uma guerra civil aberta. Isto foi deixado bem claro por um alto assessor da monarquia saudita antes da apresentação oficial do plano ao ISG. Numa coluna de opinião publicada no Washington Post sustentou:
Se alguém espera que Bush não cometa o mesmo erro outra vez ao ignorar o conselho do embaixador da Arábia Saudita diante dos Estados Unidos, o príncipe Turku al-Faisal, que pronunciou um discurso no mês passado dizendo que: ‘já que os EUA foram ao Iraque sem ser convidado, deveriam deixar o Iraque quando for convidado a fazê-lo’. Se o faz, uma das primeiras conseqüências será uma intervenção massiva saudita para impedir que as milícias xiitas apoiadas pelo Irã massacrem os sunitas iraquianos (...) Há uma razão para crer que a administração Bush, apesar das pressões internas, leve em conta o conselho da Arábia Saudita na região e sua importância para a estratégia dos EUA no Iraque. Mas se começa uma retirada das tropas de forma escalonada, a violência aumentará de maneira dramática. [39]
Outro dos pontos de vista sustentados pelo ISG que tem gerado importantes controvérsias tem sido a sugestão de iniciar negociações com o Irã sobre o futuro do Iraque, não ligada aparentemente ao tema nuclear - como é o requerimento da atual administração. Esta sugestão de entabular negociações com o “eixo do mal” iraniano tinha um gosto amargo para Bush, que a rechaçou logo de entrada. O próprio caráter do presidente, mas, sobretudo, a traição a sua base social direitista e conservadora, pelo que implicaria este passo diplomático [40] são fortes obstáculos para semelhante giro. Por sua vez, Israel se opõe a qualquer aproximação com o regime de Teerã: teme que a dependência de Washington com respeito ao Irã na questão do Iraque permita ao Irã avançar com seu programa nuclear, o que ameaçaria o monopólio nuclear do Estado sionista no Oriente Médio, perdendo a enorme vantagem que este posicionamento lhe outorga sobre os Estados árabes e muçulmanos vizinhos. [41]
Em 12 de novembro o primeiro-ministro israelense Olmert, viajou a Washington para discutir as políticas para oOrienteMédio durante os últimos anos do governo de Bush. Mostrando seu nervosismo frente a situação, antes de sair de seu país comparou em declarações feitas ã revista Newsweek o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad com Adolf Hitler, e disse:
tem que detê-lo (...)Minha postura é clara (...) Se há um compromisso que freie o Irã de ter capacidade nuclear, que seja aceitável, o apoiaremos. Mas não creio que o Irã aceite tal compromisso; deve-se que contar que não aceitará a menos que sinta medo pelas conseqüências de não aceitá-lo (...) Emoutras palavras, o Irã temque sentir medo.
Quando se perguntou qual era sua opinião sobre o que acreditava que haveria de ser feito no Irã, Olmert disse “Há várias opções a respeito. A linha condutora é que o governo e o povo iraniano devem entender que se não aceitam o pedido da comunidade internacional pagarão muito caro” [42].
A incerteza do governo israelense e da situação regional avançou com a notória debilidade em que está imerso o governo de Bush. O medo de não ser levado em conta pelo patrão norte-americano consome o governo israelense nesto momentos dramáticos. Nisso aposta precisamente o Irã, tendo em conta a debilidade de Bush. Mas esta mesma debilidade também amplia em outro sentido as margens de manobra de Israel e pode levá-lo a resolver o problema de forma desesperada. Como assinala o jornal Haaretz:
Não é um dilema fácil - particularmente quando se afastam as possibilidades de que os EUA encarem de maneira efetiva o programa nuclear do Irã. Se Israel chega ã conclusão de que deve negociar com o Irã por sua conta, suas considerações mudarão como conseqüência. Este momento ainda não chegou, mas está se aproximando. Até o momento, os Estados Unidos têm se mostrado incapaz de obter uma resolução através do Conselho de Segurança das Nações Unidas e agora, a obstrução por parte da Rússia e da China enfrenta uma administração debilitada. [43]
Neste marco de total intranqüilidade, ainda que pareça delirante e pouco provável, não se pode descartar um ataque dos EUA ao Irã, ou dando sinais de se mostrar indulgente no caso de que Israel o faça, o que levaria a situação regional a um nível de gravidade inimaginável.
Recentemente Washington tem se converteu num cenário de luta fracional encarniçada, no qual a proposta do ISG é abertamente rejeitada pelos neocons [44], que transformaram Baker no principal bode expiatório de suas desgraças e retrocesso na administração [45].Mas, fundamentalmente, tem se aberto uma pugna entre os próprios conservadores que, com o pano de fundo da disputa regional existente entre a Arábia Saudita e o Irã no terreno iraquiano, se dividiram entre duas opções: uma, a que representada pelo vicepresidente Cheney, dura com o Irã; e outra, a do ex-secretário de Estado, James Baker (e possivelmente de Bush-pai e B. Scowcroft), que coloca uma política de distensão entre a Arábia Saudita e o Irã. O motivo dessa diferença estaria aparentemente emconsiderações estratégicas opostas comrespeito não aos atores da região, mas com sua relação com a Rússia. Cheney é um falcão que vê o Irã (e o Iraque) como parte de um esquema determinado pela rivalidade norte-americana com a Rússia e inclusive também com a China. Baker, em contrapartida, está de acordo em cooperar com a Rússia. O que preocupa Cheney não é tanto a hostilidade do Irã com Israel, mas a aliança estratégica deste com a Rússia, buscando que esta não consiga levantar a cabeça e facilitar sua penetração e das repúblicas da ex-URSS pelo capital imperialista, em particular norte-americano. Não esqueçamos que um dos motivos que o levou a apoiar a invasão ao Iraque foramas relações de Hussein com a Rússia e também com a França durante o governo de Clinton.
Entretanto, apesar destas discussões sobre as relações com o Irã nos círculos de poder e da diplomacia, nem Bush nem Baker estariam de acordo por ora em dar importantes concessões, como as que pretende Teerã para brindar seus “serviços” (reconhecimento legítimo como potência regional, incluída provavelmente a questão nuclear e sua incorporação plena nos circuitos da economia mundial, além de certas vantagens econômicas em Basora e garantias de que a autonomia curda não se converta em independência etc). Não por casualidade, o regime iraniano rechaçou também o plano do ISG, enquanto espera que a situação siga se decompondo ã espera de melhores ofertas.
Em síntese, a ênfase do ISG na “reconciliação nacional” com as enormes divisões internas e externas que sacodem o conflito iraquiano, pareceria se conformar, apesar de todas as falsas expectativas que havia criado em relação a dar uma saída ã crise do Iraque, com “reclamar que nossa fracassada estratégia comece a funcionar melhor e mais rápido”. [46] Seu informe, por outro lado, não encontrou consenso sequer no establishment político e militar de Washington, que era um dos seus principais objetivos. Era esperado que com uma nova Comissão do 11 de setembro e suas conclusões (antes de ter explicitado) estavam imbuídas de uma aura de autoridade bipartidária. Pelo contrário, como temos mostrado, as divisões na cúpula do poder em Washington têm se manifestado nitidamente. Tampouco tem sido útil, por último, para aliviar um pouco a pressão sobre os democratas e republicanos. A idéia era apresentar certa aparência de mudança em relação a uma retirada genuína das tropas norte-americanas, uma nova imagem pública neste ponto, antes das eleições presidenciais de 2008 (esta era uma de suas principais funções políticas). Contrariamente, as pesquisas mostram que a maioria dos norte-americanos crê que os EUA estão perdendo a guerra, e apóia as principais recomendações da comissão bipartidária de uma mudança em curso, enquanto que o plano a poucos dias de ser conhecido é um “órfão político” em Washington, com pouquíssimo apoio nos dois partidos do poder, o que aprofunda a dicotomia entre o desejo de mudança por parte da população e a ambivalência do establishment.
Com o aumento das deliberações na administração norte-americana e em meio ao que fontes próximas ã mesma descrevem como “fadiga, frustração e um crescente desejo de se despreocupar sobre o Iraque” [47], coloca-se entre os possíveis cursos a seguir ã chamada “solução de 80%”. Assim assinalaram os correspondentes do Washington Post:
Na frente política, a administração está se concentrando cada vez mais em uma ‘inclinação para os xiitas’, ás vezes denominada ‘solução de 80%’, que poderia reforçar o centro político no Iraque e deixar a cargo dos partidos xiitas e curdos, que dão conta de 80% dos 26 milhões de pessoas que compõem a população iraquiana e que ganharam as eleições há um ano.
Em uma nota anterior, um dos autores dá mais elementos sobre esta variante:
A administração Bush está deliberando se abandona ou não os esforços de reconciliação dos EUA com os sunitas insurgentes e em seu lugar dá prioridade aos xiitas e curdos, que ganharam as eleições e agora dominam o governo, de acordo com as autoridades dos EUA. A esta proposta apresentada pelo Departamento de Estado como parte de uma revisão de urgência da política da Casa Branca no Iraque segue-se uma avaliação de que a ambição dos EUA de ganhar os dissidentes sunitas havia fracassado. As autoridades norte-americanas estão cada vez mais preocupadas pelo fato de que seus esforços de reconciliação podem se voltar contra si mesmos, alienando a maioria xiita e deixando os EUA vulneráveis e sem aliados no Iraque, de acordo com fontes a par da proposta do Departamento de Estado. [48]
As conseqüências de tal giro seriam também significativas:
Sem reconciliação, os comandos militares temem que as tropas dos EUA lutem contra os sintomas de uma insurgência sunita sem nenhuma perspectiva de chegar ás causas que estão detrás dela - notavelmente a marginalização da outrora poderosa minoria. Se deixaria as tropas norte-americanas lutando num vazio político, uma fórmula que não permitiria nem uma estabilização no longo prazo nem a redução dos ataques aos alvos norte-americanos. Um segundo perigo é que os EUA poderiam aparecer como tomando partido perante os cada vez maiores conflitos sectários. Uma decisão de dar um passo atrás nos esforços de reconciliação poderia também ser altamente controversa entre os aliados mais próximos na região, que são todos governos sunitas. Os líderes da Jordânia, Arábia Saudita e os xeques dos reinados do Golfo Pérsico têm pressionado os EUA para assegurar que seus irmãos estejam incluídos na estrutura de poder e da economia do Iraque. [49]
Entretanto, esta variante extrema aparentemente teria o objetivo político de pressionar os líderes sunitas moderados, em especial os chefes tribais das províncias - uma política apoiada pela Arábia Saudita -, para retirar seu apoio aos insurgentes e acomodar-se, antes que seja demasiado tarde, com a maioria xiita e formar um novo bloco de governo de “unidade nacional”, que junto com o Exército norte-americano combata os mais recalcitrantes opositores ã presença dos EUA: as forças de Al Sadr no xiismo, e por outro lado a grande parte da insurgência sunita. Esta nova coalizão incluiria aparentemente um compromisso de maior repartição da renda petroleira aos sunitas segundo um critério populacional, ainda que num esquema de maior federalismo, como o que propõem os curdos e o SCIRI de Al Hakim. O adiantamento da viagem do vice-presidente iraquiano, Tariq al-Hashemi, um sunita moderado presidente do Partido Islà¢mico Iraquiano (a única fração sunita que apóia a atual constituição federalista), para encontrar-se em 13 de dezembro com Bush em Washington alenta esta variante [50]. Entretanto, ainda não está fechada, como demonstra a decisão da Casa Branca de postergar seu anúncio de uma nova estratégia para o Iraque no início do ano que vem, decisão criticada por vários líderes democratas.
Esta decisão de postergar a resolução de problemas importantes responde ao grau de fracionalismo e de divisões na cúpula norte-americana, incluída a administração [51], com os crescentes sintomas de confusão no “estado-maior imperialista”, em que todas as opções que têm se postulado para sair do atoleiro iraquiano são ruins e apresentam riscos muito grandes [52].
Enquanto isso, a situação no terreno ameaça transformar-se de má em calamitosa. Um editorial do jornal The Independent da Inglaterra, intitulado “A história de terror revelada ante nós”, coloca em relevo como
a sorte do Iraque está escapando inexoravelmente de nossas mãos. Alguns colocam uma terceira opção. O ex-secretário de Estado, James Baker, insinuou que seu informe talvez recomende fazer uma petição ao vizinho Irã para que ajude a estabilizar o sul xiita do país. Também sugeriu que se peça ã Síria que influencie a população sunita do Iraque. Este parece ser o caminho mais pragmático em oferta. De nenhuma maneira está garantido que esta solução tenha êxito. Os xiitas estão lutando entre eles, com a Brigada Badr patrocinada pelo Irã, que rivaliza com os seguidores do clérigo Muqtada al-Sadr. O Irã quem sabe que sua influência no sul é limitada. Por outro lado, a Síria e o Irã talvez decidam que lhes gostaria ficar com parte da riqueza petroleira do Iraque, o que poderia levar a uma luta regional sangrenta. Ante tal cenário é muito pouco o que os EUA ou a Grã-Bretanha podem fazer. A terrível verdade é que, não importa qual estratégia acordem nossos líderes, o destino do Iraque está escapando inexoravelmente de suas mãos. [53]
Os próprios membros do ISG estão atemorizados sobre o que viram em sua visita à quele país: “A situação no Iraque é pior do que pensávamos. Os líderes iraquianos principais não mostram nenhum desejo de chegar a um compromisso com o fim de evitar um aumento da violência”, disse Leon Panetta, um membro do importante grupo assessor que recomendará as novas opções para a guerra. “Algumas avaliações privadas de funcionários do governo são muito mais desalentadoras do que se diz em público. Saímos de algumas dessas sessões de tão má qué a situação no Iraque”, agregou Panetta. “As forças norte-americanas não podem controlar a violência sectária e as poderosas milícias. Uma das conclusões mais terríveis”, disse Panetta, “é que muitos líderes religiosos xiitas, que formam a maioria do governo têm interesses em fazer tratos ou compromissos com os sunitas ou outros grupos”, e “estão tratando de ganhar tempo, porque segundo eles se trata de sua função”. [54]
Diante desta situação, o único plano realista parece ser conter a guerra civil, evitar que se expanda e que se transforme numa guerra regional. Este “plano B” implicaria uma nova ofensiva do exército norte-americano, das tarefas contra-insurgentes cotidianas nas áreas sunitas [55] à quela que passaria a ser a missão central das tropas de ocupação: limitar a influência do Irã (e em segundo lugar da Síria) no Iraque, e seu impacto em nível regional. Esta variante pressuporia o domínio xiita do sul do país, a entrega do triângulo sunita ás forças sunitas, que pode se converter numa base de operação das distintas forças fundamentalistas islà¢micas e dos insurgentes. A diminuição da influência norte-americana em Bagdá poderia fazer com que a guerra civil entre sunitas e xiitas se aprofunde nesta área. Em outras palavras, a missão norte-americana teria como objetivo central proteger a fronteira saudita, preservar a autonomia curda no contexto das relações entre os EUA e a Turquia, e usar sinistramente o conflito sunita-xiita para manter o equilíbrio no Iraque. Para o Irã esta alternativa significaria que os EUA se mostrariam pouco vigilantes sobre boa parte de suas ações, uma vez que fixariam uma linha vermelha que o governo iraniano não deixaria ultrapassar, como por exemplo, anexar territórios, lançar mão de fortes formações militares no Iraque, ou atacar os curdos etc. Neste marco, a chave de uma eventual solução diplomática para que os EUA evitem que suas tropas estejam por anos expostas no Iraque passa em primeiro lugar por criar uma realidade que obrigue o Irã a negociar. Em outras palavras, a criação de uma zona “buffer” ou “tampão” sunita no oeste do Iraque, que limite as opções iranianas mais ofensivas, sem que se converta em um bastião antiiraniano e que ponha um freio ás operações dos fundamentalistas islà¢micos, para o que se necessita da colaboração da Arábia Saudita e da Jordânia. Como se vê, é um plano altamente complexo mas que na atual situação pode ser mais “viável” que os planos políticos colocados mais acima, alguns demasiado delirantes e outros que poderíamos qualificar de “demasiado pouco, demasiado tarde”.
Provavelmente, a situação tenha que piorar qualitativamente antes que os norte-americanos se disponham a chegar a um compromisso ou a uma opção tão dura como a anterior, com o risco de que neste momento seja demasiado tarde. Se tomamos o Vietnã como antecedente, a perspectiva não é nada animadora: a ofensiva do Tet, que marcou o ponto de inflexão naquele conflito - em que a guerra perdeu o respaldo da opinião pública norte-americana e fez surgir setores do establishment que opinavam que esta já não seria mais sustentável (como o ex-secretário de Estado Dean Acheson que recordava sua agonia na guerra da Coréia) - foi seguida por mais sete anos de guerra. Provavelmente morreram tantos norte-americanos e ainda mais vietnamitas depois da ofensiva doTet que antes dela. Tendo isto na memória, ganham um novo sentido todos os debates de Washington sobre se os EUA devemenviar novas tropas, e no caso de o fazê-lo, quantas e por quanto tempo, e o chamado do democrata Charles Rangel, futuro presidente da Comissão da Câmara de Representantes de Ways and Means Comittee a reintroduzir o serviço militar obrigatório. Mas para além destas variantes de aumentar substancialmente as tropas no cenário de operações, que pelo momento parecem pouco prováveis pela sobre-extensão do exército norte-americano ã qual nos referimos, o que está claro é que os EUA - acima de toda discussão de anúncios ou inícios de retirada como a imprensa tenta apresentar como alguns dos planos emvoga (tal é o caso do encabeçado por Baker) para enganar novamente a população - não poderiam sair do Iraque por anos, porque o fracasso de sua operação deixaria uma região profundamente desestabilizada, com a balança inclinada a favor do Irã, que apenas a presença de suas tropas pode equilibrar de alguma maneira.
Resultado Final: “a era norte-americana no Oriente Médio terminou”
Além destas questões imediatas, a debacle iraquiana provocou uma discussão nos círculos de política exterior norte-americanos sobre a posição de longo prazo dos Estados Unidos. O que melhor resume o enorme “erro estratégico” da operação iraquiana e suas conseqüências para os interesses imperialistas na região é o antigo funcionário do Departamento de Estado e atual presidente do Council on Foreign Relations, Ricard Haas. Num artigo publicado no último número do Foreign Affairs intitulado “The New Middle East” (adiantado com um nome mais sugestivo no Financial Times: “A troubling Middle East era dawns” (“Nasce uma era conflituosa no Oriente Médio”), Haas começa dizendo:
Justamente dois séculos depois da chegada de Napoleão ao Egito ter anunciado o surgimento do moderno Oriente Médio - uns 80 anos depois da desaparição do Império Otomano, 50 anos depois do fim do Oriente Médio, a quarta na história moderna da região chegou ao fim. As visões de uma região nova, parecida ã Europa - pacífica, próspera e democrática - não serão realidade. O que é muito mais provável é que emerja um novo Oriente Médio que cause grande dano a si mesmo, aos Estados Unidos e ao mundo.
De acordo com Hass o fim da guerra fria e a debacle da ex-URSS abriram uma situação que outorgou aos EUA uma enorme influência e liberdade para atuar. Entretanto, esta era terminou:
Uma série de fatores facilitam que ao fim de duas décadas esta era tenha chegado ao fim, alguns são de ordem estrutural, outros têm sido criados por si mesmos. O mais importante foi a decisão da administração Bush de atacar o Iraque em 2003, a forma com que se conduziu a operação e o resultado da ocupação. Uma das vítimas da guerra foi o Iraque dominado pelos sunitas, que tinha a suficiente fortaleza e motivação para se contrapor ao Irã dominado pelos xiitas. As tensões entre sunitas e xiitas que estiveram latentes por um tempo saíram ã superfície no Iraque e em toda região. Os terroristas conquistaram uma base no Iraque, e ali desenvolvem um conjunto de técnicas novas para exportar (a outras partes do mundo, N. A.). Numa grande parte da região, a democracia se associou ã perda da ordem pública e ao fim da supremacia sunita. O sentimento anti norte-americano, que já era considerável, se fortaleceu. Ao comprometer uma grande parte das forças militares, a guerra reduziu a influência norte-americana em escala mundial. É uma das ironias da história que, a primeira guerra do Iraque, uma guerra por necessidade, tenha marcado o princípio da era norte-americana no Oriente Médio, e que a segunda guerra, uma guerra por escolha, tenha precipitado seu final.
Fazendo uma definição sobre a abertura de uma nova era, sustenta:
Todas as eras se definiram pela interação de forças rivais, tanto internas como externas ã região. O que variou é a relação entre estas influências. A próxima era no Oriente Médio promete ser uma era na qual atores externos terão um impacto relativamente modesto e as forças locais controlarão a situação - os atores locais que se fortalecerão são as forças radicais que buscam mudar o status quo. Desenhar o novo Oriente Médio de fora será extremamente difícil, mas se trata de uma tarefa que junto ao manejo de uma Ásia dinâmica será o desafio principal da política exterior norte-americana nas próximas décadas (...) Como será o novo Oriente Médio? Os EUA continuarão tendo mais influência que qualquer outra potência externa,mas esta se verá reduzida.Washington será desafiado cada vezmais por forças externas, incluindo a União Européia, China e Rússia. (...) Mais importantes, inclusive, serão os desafios que emanem dos Estados locais e dos grupos radicais. O Irã será um dos dois Estados mais poderosos na região. É um poder imperial clássico, com ambições para refazer a região ã sua imagem, e que conta com capacidade para fazer com que estes objetivos se tornem realidade. Israel será outro estado poderoso na região, ainda que na atualidade se encontre numa posição muito mais debilitada que o que estava antes da crise do Líbano. Não é provável que num futuro previsível se consiga um processo de paz viável.Ogoverno israelense está muito débil, a retirada unilateral foi desacreditada, não há um sócio palestino que possa e queira um compromisso e os EUA já não podematuar como umagente honesto. No melhor dos casos, o Iraque permanecerá em estado turbulento nos anos que estão por vir, terá um governo central débil, uma sociedade dividida e violência sectária. No pior dos casos, se transformará num país fracassado e arruinado por uma guerra civil de todos contra todos que se expandirá aos países vizinhos. (...) Não existem soluções rápidas ou fáceis que resolvam os problemas desta crítica região. O Oriente Médio continuará sendo uma região problemática do mundo nos próximos anos. O desafio é conter os efeitos e apressar a chegada de algo melhor. [56]
Que tudo isso seja dito por Haass [57], que além de seus cargos atuais foi diretor da Política de Planejamento no Departamento de Estado dirigido nada menos que por James Baker III, íntimo assessor do general Colin Powell e de Bush-pai, e que esteve a cargo da “mesa do OrienteMédio” no poderoso Conselho de Segurança Nacional durante a primeira guerra do Golfo, mostra que a perspectiva regional é comprometedora para os EUA, além do impacto que seguramente isto terá para a relação de forças em nível internacional. Entretanto, o objetivo de Haas, que como todos os conservadores arabistas teme um domínio regional do Irã, é reforçar uma política diplomática de contenção do regime iraniano, já que “há uma diferença fundamental entre um Oriente Médio que abriga um Irã poderoso, e um dominado pelo Irã”.
2) OS LIMITES DO PODERIO MILITAR NORTE-AMERICANO
Aproveitando a base social reacionária criada pelos atentados de 11 de setembro, os neoconservadores trataram de dar uma mostra da inigualável superioridade militar norte-americana, invadindo o Iraque e destituindo Saddam Hussein, um alvo fácil e vistoso que permitisse recompor a autoridade militar norte-americana e reverter as seqüelas da guerra do Vietnã. Mas contrário a suas expectativas, as dificuldades do exército norteamericano para ocupar e manter um território deixaram exposto o desempenho do aparato militar mais poderoso daTerra. Como sustentamos na Estratégia Internacional n° 22:
Em termos estritamente militares, os insurgentes iraquianos ã diferença dos vietnamitas não têm armamento pesado nem uma larga experiência de luta guerrilheira num combate natural favorável, nem contam com o apoio (ainda que limitado) que uma superpotência como a ex-URSS lhes brindava. Em outras palavras, como força beligerante são adversários muito menos ameaçadores que a resistência vietnamita (...) Por sua vez, desde a trágica derrota no Vietnã as forças norte-americanas vêm sofrendo uma reestruturação importante com o objetivo de superar as seqüelas deste conflito. Esta vai desde a “profissionalização” das Forças Armadas buscando uma tropa mais preparada para o combate, superando os limites que tanto na ação militar como na disciplina implicava um exército dependente de recrutas. Estas mudanças no aspecto humano foram acompanhadas por um melhoramento extraordinário do equipamento militar, convertendo o exército norteamericano numa força mais letal do que havia sido na guerra do Vietnã. Em outras palavras, a disparidade de forças entre a insurgência iraquiana e o exército norteamericano atual é enormemente mais favorável aos EUA se comparamos ã existente na guerra civil vietnamita. Por isso os neoconservadores buscaram atacar aí, mas seu fracasso militar em derrotar a insurgência deixou mais expostas as vulnerabilidades e os limites do poderio militar dos Estados Unidos. [58]
Em última instância são estes limites das suas Forças Armadas, sustentação primordial do imperialismo norte-americano no mundo, o que explica a tensão de sua diplomacia, assim como de outros parâmetros de sua capacidade de liderança, dando como resultado a debilidade da presidência e da autoridade e influência norte-americana no atual cenário internacional.
Enquanto os estrategistas militares do Pentágono faziam planos para que os EUA mantivessem uma vantagem inigualável em relação a qualquer outra potência neste terreno, não prepararam o exército para um período longo de combate como o que hoje estamos vendo no Iraque e no Afeganistão [59]. Seduzidos pela estabilidade relativa dos anos 90, numa mescla de triunfalismo, fetichismo tecnológico e lógica de mercado que entrava por todos os poros da sociedade até fazer-se evidente na própria planificação e nos planos operacionais das Forças Armadas, idealizaram uma estrutura de força que não estava preparada para o combate prolongado de vários anos, e além disso multidividido, uma situação oposta pelo vértice ás intervenções militares da década passada. Em sua lógica, que supunha situações de combate breves, tinha sentido reduzir em tamanho a força e recorrer, em caso de necessidade de combatentes adicionais, ás reservas e ã Guarda Nacional, empregando contratados para muitos dos serviços que anteriormente o exército era auto-suficiente. Os atores militares não estavam preparados para sustentar uma força regular estabelecida por anos no território hostil, e os contratados não esperavam trabalhar num ambiente de extremo risco. Por isso as Forças Armadas norte-americanas se encontram hoje numa grande tensão e, pelo pântano no Iraque (e crescentemente se torna no Afeganistão), os cronogramas de rotação são agora tão estreitos que as unidades estão mais tempo no Iraque que em suas casas, com a conseguinte baixa da moral e dos níveis de recrutamento. Esta é a primeira vez em um século que os EUA estão lutando numa guerra terrestre, estendida, sem aumentar de forma dramática o tamanho do exército. As duas guerras mundiais, assim como as da Coréia e Vietnã, levaram a incrementos massivos no tamanho do exército, principalmente através do recrutamento. Mas depois da experiência do Vietnã esta alternativa é praticamente inviável em termos políticos, muito mais quando se está dissipando o fantasma do 11 de setembro, que não foi utilizado - devido ás expectativas de fácil resolução que os EUA tinham com respeito ao Iraque - para impulsionar uma grande mobilização nacional que engrossasse as Forças Armadas. Atualmente, devido ã mudança do estado de ânimo da população sobre a guerra do Iraque, já é demasiado tarde para fazê-lo, e todo passo neste sentido que a administração Bush ou seu substituto em 2009 queiram dar para recompor as opções militares do país pode reativar um grande movimento antiguerra nas ruas, sobretudo se a proposta fosse retomar o sistema de recrutamento. A catástrofe da guerra atual, planificada pelos neocon como uma operação militar capaz de reafirmar ofensivamente a superioridade militar norteamericana e deixar para trás a famosa “síndrome do Vietnã”, pode terminar paradoxalmente criando a “síndrome do Iraque”, já que é evidente que o povo norte-americano não estava preparado para sustentar uma guerra difícil, prolongada e cada vez mais custosa em dinheiro e vidas humanas.
3) O AGRAVAMENTO DAS RELAÇÕES COM AS DEMAIS POTÊNCIAS E A PERDA DE LEGITIMIDADE E INFLUÊNCIA EM NÍVEL INTERNACIONAL
À difícil realidade dos EUA nos “cenários de batalha” se soma o fato de que sua perda de influência e legitimidade no terreno internacional se acelerou. Por sua vez, se acrescentou em termos geopolíticos o que o professor de relações internacionais Stephen Walt chama “soft ballancing”, isto é, “(...) ainda que tenha havido poucas alianças formais para conter os EUA, outros países recorreram ao ‘soft balancing’, entendido como a ‘coordenação consciente da ação diplomática para obter umresultado oposto ás preferências dos EUA’”. [60] Para demonstrá-lo enumeramos uma série de elementos.
Uma enorme perda de “soft power”
Tratamos da deterioração do poderio militar do imperialismo norteamericano. O que é surpreendente é que esta deterioração se produz emforma correlativa com a perda do que os especialistas em relações internacionais chamam “soft power”, ou o magnetismo do êxito material e cultural americano, as normas a imitar, ou emtermos gramscianos, a internalização por parte das potências subalternas de valores e atributos seletos do estado supremo, que constituiu umelemento central da hegemonia norte-americana quando esta se afiançou no segundo pós-guerra e que perdurou até o presente. Em outras palavras, o aspecto consensual de seu domínio, que era e continua sendo um fator chave na sustentabilidade de seu poder hegemônico. [61] Neste terreno é significativo o seguinte comentário de Stanley Hoffman, referindo-se ao último livro de Stephen M.Walt, Taming American Power; The Global Response to U.S Primacy, especialmente - segundo suas próprias palavras - ao impressionante capítulo sobre “As raízes do ressentimento” no qual coloca que
Não é só o poder norte-americano e as políticas oficiais as que são ressentidas como também - em importantes partes do mundo - os valores políticos norte-americanos, os produtos culturais e as atividades das corporações norte-americanas, fundações, organizações jornalísticas e várias organizações não-governamentais. [62]
Apontamos que esta perda de influência no cenário internacional não é conseqüência só do Iraque e do giro unilateralista, como assinalam as visões mais superficiais a respeito da situação do imperialismo norte-americano, mas em grande medida do esgotamento da ofensiva neoliberal, que é o que está detrás do crescente anti norte-americanismo.
Uma maior debilidade para deter a proliferação nuclear
Hoje os Estados Unidos se encontram numa posição mais débil para deter a proliferação nuclear depois do fracasso da invasão do Iraque, como demonstra a persistência do programa nuclear iraniano de enriquecimento de urânio e os recentes ensaios nucleares da Coréia do Norte. A invasão iraquiana demonstrou ao Irã que a carência de armas nucleares é o que levou ã invasão. Incrivelmente, isso foi o que disse o novo Secretario de Defesa, Robert Gates, num trabalho conjunto com o ex-Conselheiro de Segurança Nacional do governo Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski:
Dada sua história e seus turbulentos vizinhos, as ambições nucleares do Irã não refletem umconjunto de cálculos estratégicos que seja totalmente racional (...) A eliminação do regime de Saddam Hussein, sem lugar a dúvidas, mitigou uma das preocupações de segurança mais sérias que o Irã tinha. Assim, a mudança de regime no Iraque deixou o Irã com um caos latente em sua vulnerável fronteira oeste; e também com uma capacidade cada vez mais próxima de projetar poder na região. Ao contribuir para o aumento das tensões entre a administração de Bush e o Irã, a eliminação do domínio de Saddam Hussein não gerou até o momento dividendos estratégicos importantes para Teerã. De fato, junto ás declarações dos EUA sobre a mudança de regime, os estados e as ações preventivas, dasmudanças recentes no equilíbrio de forças na região só restou o valor dissuasivo potencial de uma “arma estratégica. [63]
Mais vergonhoso ainda para a administração Bush tem sido o ascenso da Coréia do Norte ao seleto clube nuclear, antes das eleições legislativas. Frente ás ameaças permanentes a sua segurança e no marco do contexto hostil após a desaparição do bloco soviético, o desenvolvimento de seu programa nuclear permitiu ao regime de Pyongyang manter certa independência e negociar em melhores condições com as enormes potências que a rodeiam, e em particular com a principal potência mundial, os Estados Unidos. A impossibilidade de dar uma resposta militar a este desafio, [64] o têm levado a descansar numa diplomacia multilateral e essencialmente nos bons auspícios da China, que apesar de certas tensões devido ao último ensaio nuclear, utiliza sua influência sobre a Coréia do Norte em sua pugna com os Estados Unidos. A volta ás negociações depois da aprovação das sanções da ONU é uma mostra da debilidade dos EUA para impor uma política dura nesse terreno. [65] A conseqüência estratégica disso - e da quebra do regime de não proliferação nuclear - terá um efeito inibidor para a ação militar dos EUA e de outros países imperialistas em distintas regiões do globo, e fará com que esta ação - no caso de se realizar - tenha maiores custos.
Um profundo giro na política da Europa Ocidental para os EUA
Ainda que sem a notoriedade, a crise aberta nas relações transatlà¢nticas durante os dias prévios ã guerra do Iraque, que levou ã oposição frontal da França e da Alemanha ã guerra unilateral norte-americana, e ã abertura posterior ã Rússia, que conduziu por sua vez ã configuração inicial de um eixo Paris-Berlim-Moscou (contraposto por Washington e seu aliado britânico, alinhado ã maioria da Europa do Leste e Central sob sua política), evidencia um profundo giro na política da Europa Ocidental para os EUA.
Isto não significa como desejava o gaulista Chirac, acompanhado por um emergente Shröeder, a constituição de um pólo contra-hegemônico aos EUA, projeto que ficou ameaçado ou pelo menos congelado por muito tempo depois do fracasso em aprovar a Constituição Européia no plebiscito francês de 2005.
Mas para alguns comentaristas a relação já não voltará a ser como antes do Iraque. François Heisbourg, do Centro de Investigação Estratégica de Paris, sustenta que “os Estados Unidos e a Europa já não estão predestinados a atuar junto em assuntos de maior importância”, e agrega:
Cameron (o líder do partido conservador britânico, N. A.) e Sarkozy estão recorrendo ao mesmo manual, mas vêm de distintas direções. Ainda não sabemos se seus caminhos convergirão ou não (...) mas estamos numa era pós-Suez: a guerra fria e a guerra dos Bálcãs que sustentavam as velhas estruturas já não existem mais e os Estados Unidos encontraram seu próprio Suez no Iraque.
Uma manifestação disso são as atuais diferenças no interior da Organização do Tratado do Atlà¢ntico Norte (Otan), que vão desde a negativa de países como a Alemanha a expor suas tropas no Afeganistão, no arriscado sul, até questõesmais estratégicas referentes ao próprio caráter da Otan. Neste campo chocam com a política norte-americana, que quer transformar a aliança transatlà¢ntica numa aliança militar global, incorporando países como Ucrânia, Geórgia, Austrália, Japão, Coréia do Sul, Israel e África do Sul, no que o jornal alemão Die Zeit qualificou ironicamente “como uma reserva permanente de coalizões da vontade sob a liderança norte-americana”. E a política francesa, expressada por Chirac antes da recente reunião em Riga: “Durante um período muito extenso, os europeus temos confiado em nossos aliados norte-americanos. Devemos fortalecer nossas contribuições nacionais e impulsionar o papel da União Européia.”
Manobras, contra os EUA, de grandes potências como Rússia e China
Os Estados Unidos seguem sendo a potência dominante do sistema mundial capitalista. Mas seu enfraquecimento está permitindo uma nova margem de manobra não só aos países semicoloniais, como o Irã (numa região fundamental como o OrienteMédio), mas, o que é estrategicamente mais importante, para grandes potências regionais como a reemergente Rússia e a ascendente China, ainda que isto não tenha levado ao estabelecimento de alianças entre elas, questão que não se pode descartar, ainda que por ora siga havendo muita desconfiança entre estes países, para além da idéia comum de se opor ã hegemonia deWashington.
A maior confiança russa se sustenta em que a política norte-americana de “revoluções coloridas” tenha estancado ou esteja em retrocesso, como demonstra a Ucrânia na área de influência da ex-URSS. Depois das eleições parlamentares de 26 de março, o novo primeiro-ministro, o pró-russo Viktor Yanukovich, assinalou recentemente que a Ucrânia não estava pronta para se unir ã Otan, o que põe um enorme parêntese na ofensiva norte-americana contra a Rússia através da Ucrânia, ao menos enquanto continuar sendo seu primeiro-ministro. Pórem a coisa é mais profunda. Para alguns analistas
A nova Rússia está ganhando influência através de uma série de movimentos estratégicos ao redor de seus ativos geopolíticos no setor energético - principalmente petróleo e gás natural. Faz isso tirando vantagem, de maneira astuta, dos principais erros e torpezas cometidos por Washington. A nova Rússia também se dá conta que se não atua de maneira decisiva rapidamente será cercada e superada por um rival militar, os EUA. A batalha, que é em grande medida tática, é a batalha na qual está em jogo a aposta mais forte da política mundial atual. Os estrategistas de Washington vêem que o Irã e a Síria são meros passos para esta fase final da Rússia. [66]
Por sua vez, a China ganha tempo para se reequipar militarmente enquanto os EUA estão preocupados no Golfo. O grande Estado asiático tira vantagens de sua relação clientelar com a Coréia do Norte, cujo desafio nuclear serve para obter concessões de Washington em troca de conter este aliado indócil, ao mesmo tempo que amplia suas relações políticas e comerciais coma América Latina, a África e, emoutro nível, com as potências européias como a França [67] e, sobretudo, Alemanha, que se converteu não só no principal sócio comercial de Pequim na Europa, como também no principal sócio político da China na UE. A nova debilidade norte-americana se expressa no giro acomodatício em relação ã China e ã nova política de “diálogo econômico estratégico” do novo secretário do Tesouro, Paulson, contra a política de confrontação que propugnavam os falcões econômicos e do Departamento de Defesa no início do ano. Entretanto, sua recente viagem a Pequim, acompanhado pelo chefe da Federal Reserve (Banco Central), Ben Bernanke, tentando convencer as autoridades chinesas para que seguissem comprando dólares diante das quedas deste, uma vez que lhes exigia uma revalorização de sua moeda, o remnibi, para favorecer as exportações norteamericanas, parece não ter tido os resultados esperados. Pelo contrário, o Banco Central chinês, como os principais bancos centrais da Rússia, Índia e dos países da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) - grandes possuidores de divisa norte-americana devido aos altos preços do petróleo - começam a se desprender de suas reservas em dólares para substituí-las por outras divisas menos débeis (como o euro) e o ouro.
Tensão na relação especial entre os EUA e a Inglaterra
Se faltava um parâmetro para julgar a total falência da experiência iraquiana e da vida política exterior norte-americana sob o mandato de Bush, este é o grau de tensão que existe na “relação especial” entre os Estados Unidos e a Inglaterra, um elemento de ordem internacional que mantém continuidade, apesar de alguns atritos desde a crise do Suez em 1956 que assinalou o fim da hegemonia britânica e sua localização como sócia menor de Washington. [68] Para alguns analistas do principal jornal de finanças londrino, o Financial Times, o Iraque poderia constituir um 1956 ao contrário:
(...) neste momento a guerra no Iraque parece uma imagem do Suez no espelho. É um desastre em termos de política exterior, e de qual classe dominante britânica provavelmente tire a conclusão oposta ã que chegaram após o Suez. Desta vez a lição será: ‘Nunca mais devemos permitir que nossa política exterior seja decidida em Washington - nunca.’ Uma pesquisa de opinião levada adiante pela German Marshall Fund descobriu que neste ano só 48% dos britânicos apóiam a idéia de que ‘é desejável que os Estados Unidos exerçam uma liderança mais forte nos assuntos mundiais’ - comparado com 72% que concordavam com esta posição em 2002. Os políticos estão refletindo a mudança do estado de ânimo. David Cameron, o líder dos conservadores - o partido de Thatcher e de Churchill - fez um discurso no aniversário do 11 de setembro no qual argumentou contra uma relação de ‘escravidão’ da Grã-Bretanha com os EUA. [69]
E agrega:
A guerra no Iraque, em particular, está causando uma reavaliação da idéia de que os interesses de segurança britânicos e norte-americanos são totalmente idênticos. A aliança estreita com os EUA atuou, sem nenhuma dúvida, a favor dos interesses britânicos ao longo das guerras no século XX. Mas ã medida em que a ‘guerra ao terror’ foi se desenvolvendo, há um crescente sentimento na Grã-Bretanha de que uma aliança muito estreita com os Estados Unidos, que andam aos trancos e barrancos, na realidade, põe o país numa situação de maior perigo em vez de torná-lo mais seguro. A confiança britânica no critério e na idoneidade dos Estados Unidos também foi prejudicada.
O “afrouxamento das cadeias” da dominação imperialista no “mundo” semicolonial
Na América do Sul esta nova realidade do poder norte-americano se expressa - depois dos levantamentos de massas dos últimos anos - em um novo realinhamento político, com a emergência de governos “pósneoliberais” com uma retórica ou gestos mais independentes diante do amo do Norte. Este realinhamento tem se ampliado recentemente com o triunfo de Correa no Equador e de Ortega na Nicarágua, sem falar da contundente reeleição de Chávez, ainda que também haja sintomas nos últimos meses de que este giro parece ter alcançado um pico. [70] Mais preocupante, no México, o quintal dos EUA, se abriu no ano pasado uma etapa pré revolucionária nacional, na qual convivem um novo presidente e um regime deslegitimado e, sobretudo a experiência que significou o surgimento da Assembléia Nacional dos Povos de Oaxaca (APPO) e seu poder comunal no Estado de Oaxaca, um fato inédito na subjetividade revolucionária das massas das últimas décadas, muito além de seu atual retrocesso. Estrategicamente, a instabilidade do México e o novo ressurgir da luta de classes neste país poderia impactar no próprio terreno norte-americano, onde vivem milhões de imigrantes mexicanos que ao longo de 2006 protagonizaram mobilizações de massas, mesmo que que agora tenham refluído.
Por sua vez, a debilidade dos EUA afeta fundamentalmente os governos mais pró-norte-americanos, tanto em questões de segurança como de comércio. Já colocado no início deste artigo o caso do novo presidente do México, Calderón. No plano comercial o triunfo democrata em ambas as Câmaras e seu discurso protecionista deixaram mal localizados Uribe e Alan Garcia, presidentes da Colômbia e do Peru respectivamente, que esperam a aprovação de seus tratados de livre comércio com os Estados Unidos.
4) DETERIORAÇÃO ECONÔMICA E SOCIAL ESTRUTURAL
A raiz de fundo da aceleração da decadência norte-americana reside nas bases estruturais da sua economia. Estes fatores têm se deteriorado a olhos vistos, por mais que seus ideólogos neoliberais, os garotos de Wall Street ou os managers das corporações o neguem, numa espiral de enriquecimento dos setores mais altos do capital financeiro e corporativo, sem comparação na história, realidade estrutural que leva em última instância a um empobrecimento dos Estados Unidos. Como já vimos explicando desde o inicio do giro neoconservador, esta realidade é um dos fatores fundamentais que explica o giro de Bush para o uso do poderio político e militar dos EUA para sustentar sua posição econômica no mundo. [71]
A grande perda da base manufatureira ou erosão da base industrial
Não vamos nos deter aqui nos desequilíbrios financeiros e comerciais (déficit fiscal, déficit de conta corrente, a transformação dos EUA, nas últimas décadas, no principal devedor em nível internacional) assim como o que isto implica para a sustentabilidade do dólar [72] como moeda de reserva mundial. [73] Tampouco sobre a perspectiva de desaceleração da economia no primeiro semestre de 2007 e os temores de um possível acidente nos mercados financeiros que este cenário gera.
Propomos desenvolver uma situação menos conhecida: a grande perda da base manufatureira ou erosão de sua base industrial. Para muitos, este é um fenômeno que só afeta aos produtos de consumo massivo ou as indústrias de força de trabalho intensivas, que têm se relocalizado nos países da periferia capitalista, em particular China, mas que é compensado enormemente pela manutenção da liderança tecnológica dos EUA, sua competitividade nos setores de ponta. Entretanto, a imagem deste último poderia não ser tão assim. Vejamos.
A maioria dos norte-americanos são conscientes da deterioração do déficit comercial dos Estados Unidos, que aumentou para mais de 7% do PIB, ou cerca de US$ 80 bilhões em 2005. O que talvez não se dêem conta, entretanto, é que o tsunami de tinta vermelha no balanço comercial não está confinado a bens com grande intensidade de mão-de-obra, como têxteis, sapatos etc. Nos últimos seis anos houve também um incrível aumento no déficit comercial norte-americano nos produtos de alta tecnologia e serviços, áreas que uma vez foram dominadas pelos produtores norte-americanos e que os economistas e líderes políticos disseram por muito tempo que seria o futuro da economia do país.
A deterioração no balanço comercial do setor de alta tecnologia tem sido muito pronunciada nos produtores de informação e comunicação e nos serviços. Por exemplo, só no ano 2000 cerca de 40% do equipamento das telecomunicações mundial era produzido nos Estados Unidos (...) Entretanto, na atualidade, esta proporção reduziu para 21% e está decaindo ã medida que a produção tem se transferido rapidamente ã Ásia. Como resultado, a balança comercial dos EUA nos equipamentos de telecomunicações temse deteriorado de umsuperávit de US$ 5 bilhões em1997 a um déficit deUS$ 26,6 bilhões em2004. Este colapso temsido ocasionado pelo dramático aumento nas importações da China, Coréia do Sul e Malásia, que agora representam 90% do total do déficit dos EUA em equipamento de telecomunicações.
A China tem sido particularmente importante não só na área de telecomunicações, mas em todo o comércio, e hoje em dia é o maior exportador de bens de alta tecnologia no mundo. Seu superávit comercial no setor de alta tecnologia com os Estados Unidos aumentou de US$ 10 bilhões em 2001 para a quantidade estimada de US$ 50 bilhões em 2005. [74]
Mas por trás deste declínio da posição comercial, há uma realidade ainda mais profunda que é a perda ou o atraso tecnológico. Por exemplo, a vanguarda da “nova economia” e a informática constituíram a revolução das telecomunicações (Wireless, cable, VoIP - Voice over Internet Protocol -, Direct Satellite) que estaria substituindo o tradicional negócio telefônico, que foi o foco de grande parte das liberalizações dos anos 90, na busca de estimular sua competitividade, ameaçando deixar para trás o valor das linhas tradicionais de telefone. Vejamos o contraste comos anos 90: “Por exemplo, se estima que a indústria dava conta dametade do aumento nas patentes emitidas na década de 1990, e a direção do Federal Reserve tem mostrado que 2/3 dos lucros da produtividade dos Estados Unidos, desde 1995, devem-se ao impacto das comunicações e da tecnologia em computação.
Na atualidade, entretanto, os EUA estão num caminho firme de entregar a dianteira em produtos de telecomunicações e serviços. Seu déficit comercial de US$ 700 bilhões está composto de US$ 55 bilhões de déficit em produtos de tecnologia avançada, dos quais os artigos de telecomunicações dão conta de US$ 27 bilhões. Enquanto que em 2000 os EUA lideravamomundo no nível de penetração de banda larga na Internet, na atualidade caiu ã décima-sexta posição, apenas acima da França. Enquanto um norte-americano gera uma média de um gigabyte mensal de navegação na Internet, um sul-coreano gera 5,5 gigabytes. Quanto ao nível de penetração no setor de telefones celulares, os Estados Unidos ocupamo 42° lugar na escalamundial. Em 2000, a Coréia do Sul foi o primeiro país a utilizar o sistema de dados sem fio 3G de alta velocidade, Japão e outros países na Ásia e na Europa lhe seguiram rapidamente, enquanto os EUA ficaram atrasados. Hoje em dia há menos de um milhão de consumidores norte-americanos para tal serviço, enquanto no Japão há 40 milhões, 36 milhões na Coréia do Sul e 10 milhões na União Européia. A falta de redes de alta velocidade nos Estados Unidos torna impossível para as empresas localizadas emtal país entrar emsetores chave dos novos negócios. De fato, capitais de especulação estão pressionando as firmas iniciais que eles financiam para que mudem seu setor de Investigação e Desenvolvimento (I e D) para a Ásia.
O declínio das ações do mercado e da renda tem feito com que muitas companhias de telecomunicações e tecnologia cortem entre 10% e 40% dos gastos no vital setor I e D. Ao mesmo tempo, os gastos governamentais em I e D também têm caído em30%. As companhias estrangeiras formam a maioria dos dez primeiros beneficiários das patentes nos Estados Unidos a cada ano, e os EUA ficaramatrás da União Européia e temperdido terreno emrelação aos países asiáticos em publicações de artigos científicos. Os EUA outorgarão menos licenciaturas emciências do que em1985, emuitomenos que o Japão, a União Européia, a China, a Índia, e inclusive a Coréia. Em suma, e segundo palavras de Susan Hockfiel, presidente do Massachussets Institute of Technology (MIT), “Estamos ficando para trás”.
Mas esta perda de posições da economia norte-americana nos setores de ponta não é uma realidade só neste ramo, abarcando vários setores da economia nos quais antes os EUA eram indiscutivelmente dominantes. Se havia um lugar onde isso foi assim era na indústria de fabricação de aviões comerciais. Vejamos qual é a realidade atual:
A indústria de aeronaves comerciais durante muito tempo tem sido o símbolo das exportações norte-americanas em produtos e mercados que requerem um alto nível de desenho e inovação de engenharia. Esta indústria tem sido o setor líder de exportação norte-americana durante 50 anos (Departamento de Comércio dos EUA, 2004), e muito da produção de ponta e dos procedimentos de engenharia desenvolvidos por este setor foram transferidos com êxito a outras indústrias norteamericanas (ex.: montadora, eletrônicos, produtos de metal elaborado). Em anos recentes, entretanto, a indústria norte-americana de aeronaves comerciais experimentou uma grande queda de emprego, redução das exportações e um aumento da competição externa. No setor do emprego, por exemplo, a indústria passou de ter 522 mil postos de trabalho em 1994 para 432 mil em 2004 (uma perda de 120 mil postos). Comparando com 1990, quando a indústria representava mais de 840 mil postos, se observa que num período de apenas 15 anos a base do emprego deste setor se reduziu pela metade. O que é significativo é que a Oficina de Estatísticas do Trabalho dos Estados Unidos em 1994 previa que para 2012 o nivel de emprego se reduzirá mais 17%. [75]
O caso da Boeing sintetizamuito o que estamos tentando demonstrar: nos últimos anos, por exemplo, a Boeing, a única fabricante norte-americana de aviões de transporte de passageiros, optou por um modo de produção de integração de sistemas. Sob este sistema os componentes chaves e as peças de montagemsão fabricadas por fornecedores externos. Enquanto isso representa uma lógica estratégica desde umponto de vista financeiro, um ponto negativo potencial é que as terceirizadas japonesas e/ou os sócios que compartilham o risco devemreceber investimentos de conhecimento científico e técnico tácito por parte da Boeing (de outro modo não seria efetivo).
Os resultados desta política, coerente com uma busca de lucros rápidos, tem sido calamitosos para a indústria aerocomercial norte-americana, corroendo o sistema de relações e autoridade desenvolvido em décadas dentro da comunidade tecnológica manufatureira, e levando esta a transformar-se em “uma mera oficina de montagem”, com a conseqüente transferência de “conhecimentos técnicos” a potenciais competidores, sem falar da distância que já a separa de seu rival europeu, a Airbus. Assim, em 1960 as importações de aeronaves e peças representavam só 5% da exportação de aeronaves, tendo em conta o preço. Na atualidade é cerca de 45%. Os componentes estrangeiros do modelo 787 podem chegar a 70%. O componente estrangeiro do Boeing 727 na década de 1960 era só de 2%. Para o 777, na década de 1990, o componente estrangeiro chegava a quase 30%.
O lançamento do 787 pode representar um salto mortal. Como parte do processo de lançamento do 787, se espera que três companhias japonesas desenvolvam o processo de manufatura para a montagem final das asas. A Boeing nunca antes havia considerado subcontratar a produção das asas aos provedores externos. [76] Dado que o Japão adquiriu cada vez mais capacidade produtiva para uma ampla gama de componentes da montagem de um avião, via anos de compensações pela Boeing, a transferência da fabricação das asas e os peritos de montagem para companhias japonesas deixa efetivamente toda a competição produtiva ao Japão para montagem dos aviões comerciais.
E este trabalho conclui: a indústria comercial de aeronavegação era vibrante na década de 60, havia três fábricas de aeronaves comerciais (Boeing, Douglas e Lockheed) e milhares de fornecedores em cadeia em todo o país, que empregavam centenas de milhares de trabalhadores. Agora, com a Boeing nos últimos momentos do desmantelamento desta indústria, só se pode prognosticar que na fábrica de Everett restarão apenas alguns milhares de trabalhadores que em três dias levarão adiante o processo de montagem final para substituir os modelos 787 e 737, e a reconfiguração da linha de produção para o 777, que estará apoiada pelo estabelecimento em cadeia controlada pelas empresas estrangeiras. Pela primeira vez na história da aviação comercial norte-americana, o lançamento de uma nova nave foi estruturado de maneira tal que dá aos sócios estrangeiros o controle do desenho, manufatura, seleção dos provedores em cadeia e, em última instância, o músculo financeiro para destruir o pouco que fica da indústria de aeronavegação comercial estadunidense. [77]
Comparada com outros países industrializados o retrocesso daquela que fora a economiamais dinâmica desde o começo do século XX, o que permitiu ascender como potência hegemônica em nível mundial e estabelecer a organização do trabalho desenvolvida na fábrica Ford - conhecida por isso como “fordismo” - (sinônimo por sua vez do americanismo, ou do “american way of life”), como o modelo industrial a seguir em todo o mundo, a questão tampouco deixa de ser em grande medida desvantajosa para os EUA. Kevin Phillips, em seu último livro American Theocracy: The Peril and Politics of Radical Religion, Oil and Borrowed Money in 21st Century assinala que o pós-industrialismo, então, se trataria mais da busca de uma retirada tranqüila do que de um verdadeiro futuro econômico para uma grande potência. As cansadas potências econômicas globais parecem especialmente vulneráveis. Quem insiste emque o imperativo manufatureiro ainda se aplica aos EUA de nossos dias recorrem a três exemplos poderosos: Alemanha, Suíça e Japão. Os três países têm salários ou custos de produção que são, em geral, mais altos que os EUA. Todos têm setores razoavelmente exitosos desde o ponto de vista financeiro e logros pós-industriais (turismo, consciência ecológica e ênfase em energia de fontes renováveis - eólica na Alemanha e solar no Japão). Entretanto, estas se equilibram com uma indústria manufatureira altamente desenvolvida. Para a Alemanha as maquinarias, automóveis, químicos e os produtos metalúrgicos são os principais produtos de exportação; para a Suíça, são os químicos, os produtos metalúrgicos, as maquinarias e os produtos de engenharia mecânica (especialmente relógios de mão e de parede); e para o Japão, são os automóveis, os eletrônicos e os computadores. Os produtos de cada uma destas três nações gozam de respeito global por sua qualidade. De fato, a habilidade exportadora alemã, japonesa e suíça deixa envergonhado o outrora poderoso Estados Unidos. Em 2003 e 2004 o déficit comercial dos EUA nos bens manufaturados cresceu de US$ 470 bilhões para US$ 552 bilhões. As três economias melhor equilibradas, em contraste, desfrutam de enormes lucros no comércio de produtos manufaturados e grandes lucros em suas contas correntes em geral. Uma série de estatísticas demonstraram este ponto. As estimativas para 2004 previstas pela CIA, em meados de 2005, puseram a Alemanha em primeiro lugar do mundo com exportações de US$ 893 bilhões (principalmente bens manufaturados) - isto é, para uma população de 82 milhões de pessoas. Os EUA se localizaram em segundo, com exportações de US$ 795 bilhões, o que não se trata exatamente de um triunfo porque: 1) os EUA têmuma população de 296milhões de pessoas, 2) estas exportações foram eclipsadas por US$ 1,3 bilhão em importações. Os japoneses, que ficaram em terceiro lugar com um total de exportações mundiais de US$ 583 bilhões, obtiveram isso com uma população de 127 milhões de pessoas. A Suíça, um país “de bolso”, se assemelhou mais a um gerador inesgotável de ingresso per capita: com uma população de apenas 7,5 milhões, no ano de 2004 exportou bens no valor de US$ 13,1 bilhões. Devemos recordar a equação inteira: os alemães, japoneses e os suíços fazem isso com os salários e benefícios de sua força de trabalho e com custos de produção industrial que são iguais oumais altos que nos Estados Unidos. Não é necessário dizer que estes três países são credores natos, que gozamde grandes lucros em suas contas correntes e que têm cidadãos que alcançam índices de poupança altos. [78]
A deterioração do corpo econômico e produtivo de conjunto é totalmente evidente e leva em médio prazo a um empobrecimento dos Estados Unidos:
Clyde Prestowitz, ex-assessor no Departamento Comercial de Ronald Reagan, e quem fundou e presidiu o Washington’s Economic Strategy Institute durante duas décadas, assim resumiu: ‘Os EUA têmque reconhecer quemuitas das posições orientadoras de sua política econômica estão em contradição com a realidade da economia global do mundo de hoje. Seu rendimento, emuma ampla gama de áreas - incluindo poupança, educação, conservação da energia e da água, infra-estrutura Estratégia crítica e a capacitação especializada de sua força de trabalho - está muito abaixo dos níveis de outros países. Os EUA necessitam entender que sua negativa a ter uma política competitiva ampla é, de fato, uma política. E não deixa aos gerentes norte-americanos líderes outra alternativa a não ser atuar dentro das estretégias de outros países. Esta política, de acordo com aqueles que a propõem, deixa as decisões na mão invisível do mercado.
Entretanto, o que realmente ocorre é que os deixa nas mãos muito visíveis dos grupos de pressão e dos responsáveis da política econômica no estrangeiro. Trata-se de uma política que em última instância leva ao empobrecimento. [79]
Ainda que não compartilhemos das opiniões políticas funcionais ã defesa da indústria do imperialismo norte-americano e, portanto, protecionista, sua descrição da queda do rendimento dos EUA em “uma ampla gama de áreas” é correto.
Uma drástica redistribuição da renda nacional a favor do setor mais elevado da oligarquia financeira
Enquanto a saúde da economia se deteriora, o enriquecimento dos setores mais elevados do grande capital tem se aprofundado em detrimento da porção da renda nacional da classe operária e setores da classe média, como nunca se viu antes na história.
Para tomar o período da chamada “nova economia”, de aparente prosperidade universal para toda a população, um recente estudo mostra que entre 1996 e 2001 só os 10% mais ricos desfrutaram de uma taxa de aumento em seus ingressos que foi igual ou acima do crescimento da produtividade. O estudo mostra que o crescimento do salário médio real e da renda aumentou insignificanmtemente, enquanto que o salário médio e o aumento da renda se mantiveram no ritmo do crescimento da produtividade, devido a que a metade do aumento na renda correspondeu aos 10% mais altos na escala de distribuição de renda, sobrando apenas uma pequena quantidade para os outros 90%.
O estudo diz que “quase toda a variação na distribuição da renda foi dos 90% mais pobres para os 5% mais ricos, e especialmente, ao 1% mais rico”.
Se estes setores têm se beneficiado do incremento da produtividade, não pode ser o resultado de suas novas habilidades, argumenta o autor, senão o resultado de “um aumento dos ingressos em forma de prêmios pagos aos superstars”. [80] Com esta denominação, o trabalho assinala dois grupos: o primeiro, um limitado número de estrelas de particulares como o cinema, a música, a televisão, os esportes e os escritores de ficção; o segundo grupo, que ganha uma porção maior dos ingressos acima são os Chiefs Executive Officer - CEOs (principal executivo da empresa) e os altos executivos das corporações. Sobre este segundo setor, o estudo indica que a porporção entre o salário dos gerentes gerais e o salário médio de um trabalhador cresceu de 27 em 1973 a 300 no ano 2000, caindo logo a 237 em 2001 como resultado do crash no mercado de ações. Incluindo-se o efetivo e a compensação em ações, entre 1989 e 2000 a compensação para os gerentes gerais cresceu 342% comparado com 5,8% para o salário médio por hora. Uma dificuldade básica sobre este salto nos prêmios dos gerentes que a qualquer teoria do equilíbrio custa explicar, é que, em primeiro lugar, se trata de um fenômeno exclusivo dos EUA e que não passou no resto do mundo. A relação entre o salário dos gerentes gerais e os trabalhadores do setor industrial era 44,0 em 2004 nos EUA, mais do que o dobro da proporção de 19,9 em outros 13 países ricos. [81]
Como se vê, um salto brutal na desigualdade social. O outro pólo tem sido uma concentração semprecedentes da riqueza: a riqueza total combinada dos 400 norte-americanos mais ricos ascende na atualidade a 1,25 bilhão de dólares. Este gráfico se expandiu em um só ano. A rede composta pelos 400 norte-americanos mais ricos atualmente supera de longe o valor de toda a economia canadense, medida em termos de PIB, e dá conta de quase o dobro do PIB da Austrália.Talvez omais surpreendente seja que a riqueza pessoal dos 400 homens mais ricos, segundo a revista Forbes, agora represente 10% do total do PIB norte-americano.
A famosa lista Forbes 400 não só mostra o anterior, como também assinala a mudança dos setores econômicos que encabeçam os lucros, em consonância com o desenvolvimento anteriormente: só 19 membros desta lista se encontram na categoria “manufatura”. O mais rico deles - Eli Broad, que com uma riqueza de US$ 5,8 bilhões é o número 42 na lista - de fato acumulou sua fortuna no setor dos bens imóveis e seguros de vida. Oito dos integrantes desta categoria são herdeiros de fortunas que foram acumuladas algumas décadas atrás ou inclusive no século XIX.Umdeles se especializou em fabricar produtos “lúdicos”.Outros, como H.T. e Warner - que com US$ 4,5 bilhões estão no número 52 na lista - fabricava o jogo “Beani Baby”. Outros dois,Mitchel e Steven Rales - comuma riqueza de US$ 2,6 bilhões e US$ 2,5 bilhões respectivamente - são em realidade piratas industriais responsáveis pela compra e fechamento de fábricas. Sua fortuna original, herdada de seu pai, era uma agência imobiliária. Sete multimilionários estão localizados na categoria “agricultura” pela Forbes,mas seis destes sete são membros da família MacMillan - herdeiros do império de processamento industrial Cargill, que data do século XIX. Tão só as fortunas de dois multimilionários derivam de categorias do ‘transporte” e “distribuição”, e somente uma está no setor “mineração/indústriamadeireira” - e esta pessoa fez sua fortuna na exploração de minerais no estrangeiro. Enquanto isso, 52 multimilionários entram na categoria “finanças” e outros 46 devem seus impérios financeiros a seus “investimentos”. Entre este último grupo se encontra o segundo homem mais rico dos Estados Unidos, Warren Buffet, cuja riqueza se estima em US$ 46 bilhões.Trinta e três oligarcas adquiriramsuas riquezas embens imóveis, setor que segundo a Forbes é um dos de crescimento mais rápido. O setor de ‘entretenimento’ criou 33 multimilionários norte-americanos. O setor do ‘comércio varejista’ responde por 19,8% do total, os quais têm ganhado coletivamente mais de US$ 80 bilhões desde Wal-Mart - incluindo cinco membros que se beneficiaram de empresas de risco, com nomes muito duvidosos, tais como empresas de “montagens no estrangeiro” e “juízos”. Cinco se encontram na categoria “jogo/entretenimento”, entre eles o terceiro homemmais rico dos EUA, Stephen Adelson, cuja riqueza provémdo cassino e está avaliada em US$ 20,5 bilhões. Só quatro pessoas formam a lista “Software” - um grupo que inclui, não obstante, quatro dos 15 homens mais ricos. São eles, Bill Gates, com uma riqueza de US$ 53 bilhões, Larry Ellison da Oracle, com US$ 19,5 bilhões , Paull Allen da Microsoft, com US$ 16 bilhões, e Steven Ballmer com US$ 13,6 bilhões, também da Microsoft. Segundo a Forbes, trinta em quatro indivíduos devem sua riqueza ao setor de tecnologia. Segey Brin e Larry Page, cada um com mais de US$ 14 bilhões, são os criadores do Google. A riqueza do dono da E-Bay, Pierre Omidyar, está avaliada em US$ 7,7 bilhões. Mais abaixo está Dabid Filo, da Yahoo! - com US$ 2,5 bilhões.
Estes magnatas do mundo dos computadores acumularam suas fortunas ou nos anos Clinton durante a hipercapitalização selvagemda bolha do “ponto com” ou através da monopolização da tecnologia e dos serviços de computação, ou ambos. Trinta e seis multimilionários adquiriram sua riqueza do setor “petróleo/gás”. Estes oligarcas, 16 dos quais residentes noTexas, têm um papel poderoso na administração de Bush. Nos primeiros anos da administração de Bush, os representantes das principais companhias petroleiras foramos autores essenciais da política energética dos EUA, através do chamado Grupo Especial de Energia de Dick Cheney. Em suma, a lista da Forbes dos 400 homens mais ricos nos pinta a imagem não só de uma assombrosa riqueza, como de uma riqueza derivada de operações ilegais e de negócios financeiros, uma crescente especulação e empresas de computação e petróleo altamente hipercapitalizadas e de risco. Isso mostra o contraste evidente com o período ascendente do capitalismo norte-americano, no qual apesar de sua brutalidade os ‘barões do roubo’ e os industriais das velhas empresas - como Vanderblit, Carnegie, Rockfeller, Edison, Wagoner, Ford e outros - estavam associados com a construção de uma verdadeira capacidade produtiva da nação de conjunto, através da construção de impérios industriais. [82]
E fazendo uma comparação com 1982, quando se publicou pela primeira vez a lista Forbes 400, a “orgia de acumulação de riqueza” - como este autor a chama - é assombrosa: a lista Forbes dos 400 homensmais ricos foi publicada pela primeira vez em 1982, durante o segundo ano da administração Reagan, e ao princípio do que foram duas décadas e meia de uma longa orgia de acumulação de riqueza. Portanto, vale a pena considerar as diferenças entre as listas de 1982 e de 2006. O homem mais rico em 1982 era o magnata dos estaleiros, Daniel Ludwig, cuja riqueza pessoal estava avaliada em 2 bilhões de dólares, o que ajustado de acordo com a inflação equivaleria na atualidade a algo mais que US$ 4 bilhões. Esta riqueza não colocaria Ludwig hoje em dia entre os 60 homens mais ricos dos EUA. Enquanto que em 2006 possuir mais de dois milhões de dólares era um requisito para aparecer na lista dos 400, em 1982 “só” havia 12 que alcançaram este nível de riqueza. Enquanto 10 destes 12 apenas poderiam qualificar para estar na lista atual - com uma riqueza avaliada em US$ 1 bilhão ou um pouco mais -, a lista de 1982 incluía na realidade vários membros com 100 milhões ou menos. Alguns indivíduos que aparecem nas duas listas têm visto suas riquezas subir ás nuvens. Kirk Kerkorian tinha em 1982 uma riqueza avaliada em US$ 133 milhões. Na atualidade, sua riqueza alcança os US$ 9 bilhões - umaumento de quase 70% derivados de “investimentos/cassinos”. Entre seus novos investimentos podemos citar a GeneralMotors, que está tratando de destruir.Warren Buffet viu sua riqueza aumentar 200 vezes desde 1982, quando se estimava que tinha US$ 250 milhões. Algumas famílias que eram proeminentes em 1982, mas que desapareceram da lista atual, estavam associadas ao período nascente do capitalismo norte-americano: Ford, Du Pont, Whitney, Duke e Harriman, para nomear somente algumas. Também desapareceram as fortunas associadas com a produção de um produto em particular, como “padarias”, “laranjas”, “licor”, “cereais”, “vinhos”, “Ford Motor Co” e “madeira”.
Uma crescente desigualdade social
A enorme desigualdade social provocada por esta drástica redistribuição da renda nacional em favor dos setores mais altos da oligarquia financeira levou alguns analistas que não se pode caracterizar como socialistas a dar um grito de alerta. O colunista do Financial Times, Samuel Brittan, um dos primeiros economistas monetaristas da Grã-Bretanha, disse estar preocupado porque os EUA não podem permitir que a brecha no pagamento dos executivos top e do resto da sociedade siga crescendo na escala atual. Para reordenar a situação defende um imposto redistributivo.
Os republicanos [alerta] não serão capazes de desviar a atenção para temas religiosos e ‘morais’ para sempre. Deveriam ser sábios e não tentar a sorte insistindo em transformar emalgo permanente a redução dos impostos sobre os setoresmais ricos. [83]
Assim, expressa seu temor de que a alternativa de alguns impostos modestos sobre os mais ricos seja uma campanha mais agressiva para “castigar os ricos”.
O resultado desta brutal redistribuição negativa da renda tem sido uma crescente pauperização das classes médias e o empobrecimento da classe operária. Isto é o que defende Gabor Steingart em seu recente livro Guerra pela riqueza: a captura global do poder e da prosperidade, resumido num artigo publicado emSpeigel On Line intitulado “Declinação da superpotência: a classe média dos EUA perdedora da globalização”. Aí se sustenta que “as classes médias e baixa” vivem sem reservas financeiras e se parecem mais “As famílias do terceiro mundo golpeadas pela pobreza”.
Mas é melhor que o coloquemos em termos de classes. Em seu interessante livro The Working Class Majority: America’s Best Kept Secret, Michel Zweig sustenta que (...) a classe operária, (...) representa 62% da força de trabalho dos EUA - uma importante maioria do povo norteamericano - e a elite das coorporações (ou classe capitalista), (...) só 2%. Entre estas classes está a classe média, que representa 36% da força de trabalho dos EUA. Em relação ao salário a classe operária não viu crescer seu poder de compra desde meados dos anos 70: entre 1970 e 2003, o Produto Interno Bruto ajustado de acordo coma inflação quase triplicou de 3,7 bilhões a 10,8 bilhões de dólares. Como a população também cresceu 35% durante estemesmo período, o ingresso per capita subiumais que o dobro. Entretanto, este ingresso não cresceu para todos. Não há nenhuma dúvida de que os trabalhadores que são pagos por hora não se beneficiaram do crescimento econômico. Segundo estatísticas governamentais, os salários por hora ajustados de acordo coma inflação tiveram seu pontomáximo em1972 em8,99 dólares - medido no valor do dólar de 1982. Em 2003, o salário mínimo por hora se reduziu a 8,29 dólares, ainda que tenham subido um pouco, se for usada uma medida diferente da inflação.
Esta realidade tem dado lugar a um empobrecimento da classe operária que não só atinge os negros e hispânicos, mas também a importantes setores da classe operária branca: na imaginação popular e nos discursos das campanhas políticas, “os pobres” geralmente significamos ‘negros e hispânicos’ ou a ‘minoria’. De fato, nos Estados Unidos 2/3 de toda população pobre são brancos e 3/4 de toda população negra é pobre. O racismo continua atuante e dá conta do fato de que a pobreza se experimenta de maneira desproporcional entre negros e hispânicos (e entre as mulheres, devido ao sexismo). Mas não devemos permitir que seu comparativamente alto peso nos cegue sobre a pobreza dos EUA. A maioria das pessoas nos Estados Unidos pertence a famílias nas quais os adultos experimentam períodos de desemprego, trabalhos demeia jornada ou saláriosmuito baixos. Uma família com dois trabalhadores assalariados, com um que trabalhe em tempo integral ao longo de todo ano, e outro que faça meio período também durante um ano, cada um deles com um salário mínimo, não ganha o suficiente para tirar uma família de três integrantes da pobreza.
Esta situação da classe operária é acompanhada de uma crescente polarização da classe média e da pauperização de um setor dela: se olhamos a experiência, nos últimos 30 anos dos profissionais cujas vidas estão intimamente interconectadas com a classe trabalhadora - professores de centros populares, advogados nas repartições públicas ou com escritórios pequenos, médicos que trabalham em bairros operários e os professores das escolas públicas - notamos que sua posição econômica e social se deteriorou. Mas se observamos os profissionais que têmse dedicado a prestar seus serviços ã classe capitalista - advogados das grandes corporações, profissionais dos serviços financeiros, as quatro maiores empresas de contadores públicos e os médicos que atendem além do alcance do seguro médico global e das companhias seguradoras-fiscalizadoras - notamos que estes profissionais aumentaram sua fortuna igual ã classe a qual servem, e ainda que só até certo ponto, isto tem sido de maneira absoluta e proporcional.
Neste contexto, o que supreende é ainda o pouco que esta brutal exploração e polarização social têmse expressado emluta de classe. Isto é conseqüência de que a classe operária ainda não pôde superar a fragmentação que lhe impôs a ofensiva neoliberal que teve os EUA como seu epicentro, o caráter impiedoso da patronal norte-americana e de seu Estado diante das lutas operárias - como se explicitou em importantes greves nas quais o Estado não hesita em intervir abertamente contra os grevistas -, o papel pró-patronal da burocracia sindical que se converte cada vez mais descaradamente num instrumento dos patrões para arrancar as conquistas dos trabalhadores, além de sua ideologia protecionista contra a chamada globalização, que separa os trabalhadores norteamericanos de seus irmãos de classe em todo o mundo, além de igualar os interesses da patronal norte-americana com os de seus trabalhadores.
Todos estes elementos de controle social que podiamcomeçar a se debilitar com os escândalos financeiros e acionários da crise econômica de 2001, como a bancarrota e fraudes coorporativas da World Come Enron, foram reforçados brutalmente depois do 11.9.2001 com uma campanha de terror brutal sobre a população, mediante a “guerra contra o terrorismo” e as medidas de retirada de direitos democráticos internos, como a Ata Patriótica, que criaram uma unidade nacional reacionária que teve seu ápice na reeleição de Bush em 2004, mas que foi se dissipando desde então até o atual giro no estado de ânimo da população contra a guerra do Iraque, refletido nas recentes eleições legislativas. Foi nos primórdios desta nova atmosfera social que os trabalhadores imigrantes saíram ás ruas, em particular os trabalhadores latinos, em um movimento de massas multitudinário que não se via há anos.
Ainda que sua ação tenha sido cooptada pelos representantes do Partido Democrata, evitando posteriormente sua radicalização, o despertar do setor mais explorado do proletariado norte-americano pode ser uma antecipação de um novo ânimo do conjunto dos trabalhadores norte-americanos. Para aventar algumas hipóteses, isto poderia despertar pelasmaiores cargas que os trabalhadores deverão sofrer ante a iminente desaceleração econômica e o crescente impacto de suas dívidas, emrelação aos seus ingressos, devido ã alta que as taxas de juros vêm tendo ou perante um ataque ás condições de aposentadoria e de saúde dos trabalhadores, por exemplo das montadoras (uma pesada carga na “perda” de competitividade das companhias norte-americanas). Mais significativa ainda é a comunicação que poderia se estabelecer entre a luta de classes dos hispânicos, mexicanos em sua maioria, em território norte-americano, que estão muito descontentes com o governo Bush (como ratificaram as últimas eleições), e a instabilidade crescente do quintal dos EUA, comas tensões que chegamde lutas como a de Oaxaca, de forte impacto nos EUA, para onde imigraramuma grande quantidade de seus habitantes. Assim como não podemos separar os acontecimentos no México do que ocorre nos Estados Unidos, cada vezmais os acontecimentos que ocorrem ao sul do rio Bravo impactarão o norte.
C. ONDE VÃO OS EUA?
A principal questão dos próximos anos é evitar uma derrota humilhante no Iraque, uma derrota que para colocar em termos gráficos culmine com a evacuação em helicópteros dos norte-americanos desde a zona verde de Bagdá até o Kuwait. A ofensiva “neo-imperialista” [84] passou a olhos vistos ã defensiva. A exemplar ação norte-americana no Iraque, que buscava mostrar o poder dos EUA, não obteve seus objetivos estratégicos, nem tampouco conseguiu dar uma lição ás massas da região, como pretendia. Pelo contrário, está projetando uma imagem de debilidade. Um homem com muita experiência no campo das relações exteriores, protagonista direto da derrota norte-americana no Vietnã, e que foi assessor do presidente Bush sobre o Iraque, como Henry Kissinger, disse com todas as letras:
a vitória militar no Iraque já não é possível: se você, com “vitória militar” se refere a um governo iraquiano que possa estabelecer-se e cuja autoridade judicial se estenda ao longo de todo o país, que ponha sob controle a guerra civil e a violência sectária num período de tempo que os processos políticos das democracias apóiem, se referese a isso, não creio que seja possível [85],
ao mesmo tempo que advertiu sobre os perigos de uma retirada rápida das tropas comandadas pelos EUA, e disse que se isso ocorresse poderia desestabilizar os vizinhos do Iraque e provocar um conflito de longa duração.
Entretanto, para além de qual seja o desenlace da atual situação no Iraque que ameaça transformar-se de má em desastrosa, para muitos este fiasco fará com que os EUA “se volte para dentro”, com pouca inclinação a novas intervenções. É provável que da mesma maneira que no período pós-Vietnã, os EUA temporariamente restrinja seu intervencionismo ou o torne mais velado, como foi no Afeganistão ou na América Central. Inclusive não descartamos eleições presidenciais “carterizadas”, em referência ao período presidencial de Jimmy Carter, que terminou humilhado com a tomada de reféns na embaixada norte-americana no Teerã, após o triunfo da revolução iraniana de 1979. Mas a variante de que os EUA se orientemao isolacionismo depois da traumática experiência do Iraque não pode ser uma alternativa duradoura para sua classe dominante, que cederia sua posição na cúpula do sistema capitalista mundial sem resistência. Já assinalamos ao longo deste artigo que em comparação com a situação pós-Vietnã, os EUA se encontram em piores condições que nos anos 70, tanto no plano econômico e social como diante da realidade econômica e política mundial emergente. Portanto, assim como é possível esperar que os EUA entrem num forte período de debilidade para sua dominação, é impossível pensar a decadência norteamericana sem novas ofensivas ou sem a emergência de movimentos ainda mais duros e bonapartistas dos neocon nos próximos anos ou décadas. Qualquer outra perspectiva seria puro pacifismo, que é o que está por trás de muitas posições centro-esquerdistas e inclusive pseudo-esquerdistas que vêem que o problema é “Bush”, apostando na sua substituição emdois anos por um governo democrata que retome o “multilateralismo soft” prévio a 2001. Estas visões reformistas não preparam para os golpes bruscos e convulsões das próximas décadas.
Contra tais posições é importante remarcar que, ainda que tenham diferentes táticas e inclusive hajam fortes frações no interior de ambos - como se vê nas diversas variantes que discutem com respeito ao Iraque -, a luta pela “primazia” é um objetivo dos dois partidos imperialistas, Republicano e Democrata. Isto se vê tanto no governo de Bush, com um acento mais unilateralista e, portanto, mais aventureiro, como nos anos 90 sob o governo de Clinton, ainda que este encobrisse o objetivo comum com um discurso e uma diplomacia mais multilateral e, portanto, mais sensível ás considerações das outras potências, em especial da UE, mesmo que sempre primasse a posição norte-americana. [86]
Assim demonstram as experiências dos principais porta-vozes democratas durante a década passada:
O assessor de segurança nacional de Clinton, Anthony Lake, disse isso de maneira muito clara em seu primeiro discurso sobre a grande estratégia dos EUA (US grand strategy). Lake ressaltou que ‘a característica fundamental desta Era é que somos o poder dominante. Quem não diz isso enganam os Estados Unidos (...) Em todo o mundo, o poder, a autoridade, e o exemplo dos EUA brindam oportunidades sem precedentes para liderar (...) nossos interesses e ideais, nos levam não só a participar e estar comprometidos, mas liderar’. A palavra ‘liderar’ é o código do exercício do protetorado. [87]
Lake continuou:
O sucessor de uma doutrina de contenção deve ser uma política de ampliação - ampliação das democracias dos mercados livres do mundo -, (Anthony Lake, “From Containment to Enlargmenet”, discurso dado na School of Advanced, International Studies, Johns Hopskins Universtity, Washington DC, 21 de setembro de 1993). O secretário de Estado, Warren Christopher, também deixou pouco lugar a dúvidas sobre sua postura neste tema. Como declarou antes de se aposentar, “para finais do [primeiro] mandato de Clinton, a pergunta ‘Os EUA devem liderar?’ já não será uma pergunta séria”.Warren Christopher, In the Stream of History: Shaping Foreign Policy for a new era (Stanford: Stanford University Press, 1998). [88]
Isto é assim não por uma opção política, mas porque a luta pela “primazia” deriva da necessidade dos EUA, como potência hegemônica, de controlar ou fixar as pautas dos principais centros de acumulação capitalista mundial. Como colocava Ernest Mandel em relação ás causas que levaram ã Segunda Guerra Mundial:
(...) o motor da Segunda Guerra Mundial foi a maior necessidade de dominar a economia de todos os continentes mediante investimentos de capital, acordos preferenciais de comércio, regulamentações monetárias e hegemonia política. O objetivo da guerra era não só a subordinação do mundo menos desenvolvido, como também de outros estados industrializados, fossem inimigos ou aliados, ás prioridades da acumulação de capital da potência hegemônica. [89]
Uma vez estabelecida sua supremacia na contenda bélica, os Estados Unidos criaram uma “ordem mundial” a imagem e semelhança de suas necessidades de acumulação. As novas características políticas e geopolíticas do mesmo são corretamente assinaladas por Peter Gowan:
A construção da nova ordem mundial tem se centrado na construção de um sistema de alianças regionais.
As características positivas e distintivas destas alianças residem no fato de que dão aos EUA o comando direto das orientações geopolíticas dos demais centros capitalistas e, de fato, de suas políticas de segurança nacional. Este é um fato sem precedentes históricos. Unificou a geopolítica de todo o mundo capitalista sob a direção dos EUA. Os meios para o estabelecimento desta ordem positiva foram a confrontação militar com a União Soviética. (...) A divisão da guerra fria operava não só no terreno da geopolítica, mas no terreno sócio-político dentro de cada estado da aliança - através da dimensão da ‘liberdade’ versus o ‘comunismo’. Esta dimensão da divisão da guerra fria foi oficialmente posta sob a temática de ‘democracia’ versus ‘comunismo’, mas na realidade se tratava de uma divisão entre a ‘liberdade do capitalismo’ e os desafios socialistas ao capitalismo (...) O resultado foi que todo líder político nacional que queria se opor ã aliança de princípios dos EUA, ou que desejava ir mais além do capitalismo, enfrentaria poderosas forças internas de resistência, inclusive sem a intervenção ativa por parte dos EUA.
Esta homogeneização da política de massas em nível nacional de todo o centro (de maneira tal que servia de apoio aos líderes norte-americanos) foi uma mudança política muito importante em comparação com o período mais inicial de dominação européia. [90]
Estas características da gênese e estrutura da hegemonia norte-americana são as que - ainda num período de aceleração de sua decadência como a que se encaminha estrategicamente nos EUA pós-Iraque - tornam impensável a abdicação política pacífica da América do Norte de sua atual posição dominante no sistema internacional e a formação de uma nova forma colegiada de administração capitalista internacional por cima desta potência, assim como a via para “uma ordem multipolar”, como propugnam a Rússia; China, França e outros atores opostos ã “hiper-potência” norteamericana, já que os EUA não podem se “retirar do mundo” - como foi o caso da Inglaterra e seu “esplêndido isolamento” na Europa do século XIX [91] - nem tampouco dominá-lo.
Em nível interno isso se manifesta na ausêcia de uma significativa fração antiguerra em ambos os partidos. Uma mostra disso foi a primeira decisão tomada pelo Partido Democrata depois das eleições de 7 de setembro de 2006, de eleger Steny Hoyer (Democrata de Maryland) como o líder da Câmara de Representantes da maioria, dando um duro golpe em John Murtha (Democrata da Pensilvânia), a face da fração antiguerra do partido. Inclusive, diferentemente de outras guerras como as da Coréia e do Vietnã, onde setores do capital corporativo cumpriam um papel crítico denunciando as implicâncias financeiras e políticas de longo prazo da guerra, nesta oportunidade seguiram todas as linhas do Executivo. Esta realidade cria uma enorme brecha entre a posição e a localização do establishment político, empresarial e militar norte-americano e o movimento de massas. Taticamente, isso cria uma maior margem de manobra ã presidência para suas políticas belicistas, como ficou evidente desde 11.9.2001, e inclusive diante do novo cenário político e da mudança no estado de ânimo das massas, de oposição ã guerra do Iraque, que está sendo dissolvido nas distintas propostas que se discutem nos corredores do poder.
Entretanto, estrategicamente esta separação entre as massas e a elite é enormemente perigosa para os interesses do capitalismo norte-americano de conjunto: não só a continuidade da guerra abre uma brecha cada vez maior entre ambos os pólos, como potencialmente ao se desenvolver um movimento antiguerra ativo diminuiria a capacidade de cooptação da classe dominante, diferentemente do que foi possível ao Partido Democrata perante o movimento contra a guerra do Vietnã. Esta é uma questão presente para os membros do Grupo de Estudo sobre o Iraque, que está preocupado de se por fora de um giro importante - ou ao menos a aparência de mudança - na política norte-americana para o Iraque, a oposição latente contra a guerra possa emergir de forma explosiva e politicamente radicalizada, como já fez durante a guerra do Vietnã. Mas repetimos: tal movimento seria hoje potencialmente muito mais perigoso, não só pelos sintomas iniciais de escisão entre as massas e o regime político, recém colocados, como fundamentalmente porque as tensões sociais e econômicas dentro dos Estados Unidos são mais pronunciadas, e sua posição no mundo é muito mais precária que em 1960, como temos definido ao longo deste artigo.
Os elementos apresentados implicam que longe de toda perspectiva evolucionista, a aceleração da decadência norte-americana, considerada a longo prazo trará novas convulsões, novas guerras, novas catástrofes, ainda maiores que a do Iraque. Nos EUA se prevê um incremento pós-Iraque do revanchismo interno e externo da direita, o que dará lugar a uma maior polarização. Estrategicamente, esta perspectiva implica novos golpes reacionários, e novos incentivos à luta de classes nos EUA. Em síntese, os EUA entram num período de instabilidade difícil de evitar, como conseqüência da aceleração de sua decadência.
Este grande fato histórico, ao que talvez estejamos nos aproximando, está determinado a se converter em um cataclisma. Uma ameaça de enormes destruições para o conjunto da humanidade. Neste marco, e diante daquelas posições “declinacionistas” - como as do importante intelectual norteamericano Immanuel Wallerstein, um dos mentores da escola de Sociologia Histórica do sistema-mundo, que desvaloriza a importância da luta de classes -, enfatizamos que só a perspectiva da revolução socialista internacional pode nos preparar para afrontar tal acontecimento de maneira progressiva, se não queremos que as únicas alternativas ã decadencia norte-americana sejam o caos ou a barbárie. Só a revolução proletária internacional pode evitar que a humanidade passe por tais sofrimentos, que podem empalidecer as páginas mais obscuras do século passado, inclusive com regimes abomináveis como o da Alemanha nazista. Ante esta perspectiva odiosa, a revolução socialista internacional é hoje mais urgente e necessária do que nunca.
* Esta introdução foi produzida pelo Comitê Editorial da revista Estratégia Internacional - Brasil.
[1] Ver revista Estrategia Internacional n° 20 em www.ft-ci.org.
[2] Ao lado das ações bursáteis são os dois principais mecanismos de financiamento direto, com a diferença da intermediação bancária, ainda que já tenhamos visto como num sentido os bancos se transformaram nos principais sustentadores deste tipo de financiamento.
[3] Ver Estratégia Internacional n° 20.
[4] O que a escola da Regulamentação chamou de “modelo fordista”, no qual aumentavam o lucro e a produtividade junto com o salário real, o que criava uma relação de cooperação entre o management das empresas e os trabalhadores, representados nos sindicatos.
[5] Geograficamente, este processo começou ás custas da desaparição ou de retrocessos das antigas formas de produção da maioria dos países da periferia, o chamado “modelo de substituição de importações” e a liquidação das economias planificadas burocraticamente dos países chamados “socialistas”, que frente ao acirramento da competição ficaram prejudicados em sua produtividade. Mas esta ampliação geográfica foi acompanhada por uma extensão a novos âmbitos de valorização do capital como o prova a onda de privatizações em quase todos os países do mundo, como parte de um processo de mercantilização geral que abarca também a educação, a cultura, as aposentadorias e a medicina, para nomear somente algumas das áreas significativas.
[6] Não nos referimos aqui a dizer como a maior internacionalização do processo de produção acelera a difusão da crise recessiva ou depressiva aumentando a profundidade das mesmas, como o colocou a crise dos mercados emergentes da década passada, em especial a crise asiática.
[7] O Congresso atual é considerado como um dos mais corruptos em décadas, com vários legisladores já na cadeia e outros que iriam para um destino similar. Uma pesquisa prévia ás eleições, realizada pela CBS News, demonstrava que 58% da população opinam que a corrupção é ampla no Congresso. De fato, em grande medida por estes escândalos, o nível de aprovação deste Congresso é baixíssimo, apenas 16%, segundo indica pesquisa da NBC News/Wall Street Journal do final de outubro. Por sua vez, a hipocrisia provocou danos fatais para alguns candidatos republicanos, desanimando a suas bases mais fiéis. Numa semana antes das eleições, renunciou o reverendo Ted Haggard como presidente da Associação Nacional de Evangélica - organização da direita cristã chave para os republicanos - após ser acusado de empregar um gay durante anos enquanto em público promovia uma agenda homofóbica e de defesa dos “valores familiares”. A isto se soma o caso do representante republicano Mark Foley, que também abandonou sua tentativa de reeleição quando foram reveladas suas conversas sexuais cibernéticas no Congresso com jovens menores de idade. Outras mostras de insatisfação acumuladas nos últimos anos se devem ã resposta federal ao furacão Katrina, ao vazamento da identidade secreta de uma agente da Agência Central de Inteligência (CIA) por parte da Casa Branca, ã manipulação de informação científica oficial para fins políticos, ás violações ás Convenções de Genebra e o uso da tortura.
[8] Também poderiam abrir ou intensificar investigações formais sobre a corrupção e outras manobras potencialmente ilegais realizadas sob o controle republicano, bem como sobre temas tão controversos como a resposta ao desastre do furacão Katrina, ainda que com menor probabilidade de afetar a política exterior da administração.
[9] Este giro foi implementado pelos EUA desde 1970 para administrar seu declínio e impedir uma política autônoma de seus rivais econômicos e se expressou numa série de novas instituições: a Comissão Trilateral, as reuniões do G7, o Fórum de Davos, entre outras.
[10] Para os neoconservadores a permanência de Saddam Hussein no poder após a guerra de 1991 constituía uma humilhação para os Estados Unidos.
[11] O terceiro pilar do dispositivo de segurança era o Irã , sob domínio do sha Reza Pahlevi, que foi destronado em 1979 pelo triunfo da revolução. A importância da relação com a Arábia Saudita para os Estados Unidos pode se ver no seguinte fato histórico: no início de 1945, após a Conferência de Yalta com Churchill e Stalin, Roosevelt se reuniu secretamente como rei saudita, Ibn Saud, no cruzeiro Quincy ancorado no canal de Suez. A reunião durou cinco horas. Roosevelt propôs ao rei três temas intimamente entrelaçados e vitais para o futuro de seu país: encontrar na Palestina umlugar para os judeus, o petróleo e a configuração do OrienteMédio no pós-guerra. O presidente norte-americano procurava deslocar o colonialismo britânico, que ainda era hegemônico na região. É interessante notar que quando se produziu este transcendente encontro, os Estados Unidos produziam 2/3 do petróleo mundial. Hoje esse país é o primeiro importador de petróleo, consome 26% do petróleo mundial, produz apenas 10% do petróleo que se produz no mundo e suas reservas representam apenas 2,9% das reservas mundiais.
[12] Quando tiveram o levantamento xiita contra Saddam Hussein em 1991, os “realistas” (chamados por alguns como “direita arabista” para diferenciá-los do outro setor do establishment conservador, os neocon ou “direita sionista”) optaram por deixar Saddam no poder. Os motivos não tinham a ver com seu amor ao ex-ditador e sim com o temor de que o fim do controle árabe sunita no Iraque e a ascensão dos xiitas mudasse a correlação de forças no Golfo Pérsico, em detrimento de um aliado chave dos EUA: a Arábia Saudita. Assim, nas memórias de Bush-pai e Scowcroft (assessor de Segurança Nacional de seu governo) escritas em 1998, A World Transformed, insistiam de que atuaram para preservar “o equilíbrio de poder a longo prazo no cabo do Golfo” (p.489).
[13] Em setembro de 2000 o presidente norte-americano Clinton e o premiê israelense Ehud Barak fracassaram em conseguir uma total capitulação de Arafat nas negociações de Camp David. Isto foi utilizado pelo “falcão” Sharon para montar sua infame provocação na mesquita Al Aqsa em Jerusalém, que desatou a Segunda Intifada. Esta ação, deste que depois seria premiê de Israel - sucedido por E. Olmert após de ter sofrido uma paralisia cerebral no final do ano passado - assinalou um decisivo giro de Israel: da busca de um acordo negociado com os palestinos (Acordos de Oslo) a uma política que foi debilitando a Autoridade Nacional Palestina, primeiro nos últimos anos de vida de Arafat e já mais decisivamente diante de inesperada vitória do Hamas nas eleições legislativas de janeiro deste ano.
[14] Para muitos o plano dos neocon em relação ã guerra do Iraque representava uma tentativa audaz de reverter a inclinação pró-saudita da política norte-americana na região, desenvolvido após a revolução iraniana de 1979 e aprofundado com a presença de forças norte-americanas no solo saudita como resposta ã ocupação do Kuwait.
[15] Este documento, orquestrado pelo mais prestigioso dos 8.500 presos palestinos, Marwan Barghouti, foi acordado no cárcere de Hadarim, por membros do Fatah, Hamás, Jihad Islà¢mica e a Frente Popular de Libertação.
[16] Ainda que todo o eixo da atenção pública mundial durante esta guerra se dirigiu ã incapacidade das Forças de Defesa Israelenses para deter os ataques com mísseis do Hezbollah sobre o território israelense, é interessante notar que também foi incapaz de deter os mísseis de menor alcance a Qassam, lançados pelos palestinos que penetravam sobre seu território.
[17] Politicamente, tal genocídio geraria um ressentimento e uma resposta hostil para o Estado sionista de proporções históricas não só no mundo árabe e islà¢mico como também em nível internacional. Além disso, geopoliticamente, tal operação político-militar seria intolerável paraWashington (do qual Israel depende em sua base industrial, e que também tem interesses no mundo árabe), e unificaria os países árabes contra Israel, quando a estratégia de sobrevivência do Estado sionista sempre se baseou em manipular um equilíbrio de poderes entre estes de forma tal a evitar uma guerra de conjunto de seus vizinhos.
[18] “International force for Gaza”, Editorial de Haaretz, 13.11.2006.
[19] A “Guerra dos Seis Dias”, que durou do dia 5 ao dia 10 de junho de 1967, foi uma avassaladora vitória militar para o Estado sionista. Israel acabou a guerra estendendo consideravelmente seu território, com a incorporação das “Colinas do Golán”, Cisjordânia (incluindo Jerusalém), da Faixa de Gaza e da península do Sinai. A derrota do Egito, da Síria e da Jordânia foi considerada humilhante nesses países.
[20] The Guardian, 17.8.2006.
[21] Segundo diferentes analistas, a captura dos soldados na fronteira, o lançamento de mísseis sobre cidades como Haifa e a guerra convencional desde posições fortificadas com bastante preparação para uma força de características guerrilheiras surpreenderam as Forças de Defesa Israelense.
[22] Entre estes se incluem a eficácia de mísseis terra-mar, antitanques contra os célebresMerkawa e gastos milionários em sistemas de defesa antimísseis, como os norte-americanos Patriot, totalmente ineficazes diante dos Katyusha.
[23] Diário Haaretz, 21.1.2004.
[24] Rafik a o-Hariri foi assassinado no dia 14 de fevereiro de 2005. Tinha sido duas vezes premiê e era o homem forte do Líbano. Foi líder da vida política e de negócios do Líbano depois dos 15 anos de guerra civil entre 1975-1990. Utilizou as relações que tinha para incentivar o investimento estrangeiro, além de coordenar pessoalmente as concessões a companhias para a remodelação do centro financeiro de Beirute. Durante este processo, Hariri endividou em milhões o país ao mesmo tempo em que gerou um forte déficit do orçamento, se convertendo num pesado ônus para as massas trabalhadoras que são quem pagam os custos da reconstrução. Político milionário (era considerado um dos 100 homens mais ricos do mundo), no final de seu segundo governo se tornou contra a ocupação Síria e o presidente pró-sírio do país, Emile Lahoud. Por sua morte se desataram gigantescas mobilizações. A chamada “Revolução dos Cedros” junto com a “pressão internacional” impulsionada pelos EUA e a França forçaram a retirada das tropas sírias do Líbano.
[25] Ministro de Indústria assassinado na periferia de Beirute. Era filho do ex-presidente Amine Gemayel e sobrinho de Bachir Gemayel (presidente também), assassinado em 1982, ambos fundadores das Forças Libanesas, partido cristão maronita de ultradireita cujos milicianos foram os autores dos massacres de Sabra e Chatila nos campos de refugiados palestinos (com a cobertura do Tsahal, logo depois da intervenção das tropas sionistas em 1982 no comando do então general Sharon).
[26] Michael Neumann, “Sooner RatherThan Later: Cut and Run from Irak”, Counterpounch, 8.11.2006. Neumann é professor de filosofia na Trent University de Ontario, Canadá.
[27] Esta mesquita de mil anos abriga o mausoléu do líder religioso al-Hadi e é por isso um dos santuários mais importantes do Islà xiita no Iraque e na região. A resposta a esta provocação foi o assalto e a destruição de quase duas centenas de mesquitas sunitas e o assassinato em Bagdá, Basra e Baquba de pelo menos 130 pessoas.
[28] SCIRI (Conselho Supremo da Revolução Islà¢mica) é o grupo xiita mais pró-iraniano do país. Foi fundado no Teerã em 1982 e sua ala militar é treinada pelas unidades de elite do Irã, os Corpos de Guardiães Revolucionários.
[29] Center For Strategic And International Studies, “Briefing on Irak”, 29.11.06.
[30] Sobre a questão nuclear existe um consenso entre o Guia da Revolução, o ayatolá Ali Jamenei, o presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad, o establishment de segurança e militar (desde os Pasdaran - Guardiões da Revolução - até as milícias paramilitares dos Basijis), um importante setor dos conservadores, assim também como uma fração da classe média laica, oposta no entanto a Ahmadinejad. Os setores unidos ao presidente utilizam a fundo a política exterior, onde a política agressiva dos EUA não faz mais do que fortalecer sua posição no seio da sociedade, utilizando a necessidade da unidade nacional diante do inimigo externo para debilitar os reformistas e voltar ã ideologia do mártir e a abnegação dos gloriosos dias da Revolução Islà¢mica. No entanto, seu controle não é hegemônico. As recentes eleições do todo poderoso Conselho de Especialistas, que designa entre seus membros o líder supremo iraniano e supervisiona sua atividade, foram ganhas pelos conservadores pragmáticos, como o ex-presidente Rafsanjani, que melhoraram sua posição em aliança com setores reformistas, e pondo um limite nos setores populistas de direita encabeçados pelo presidente, fortalecendo em última instância o papel de árbitro e de contenção destes últimos, do líder supremo, Jamenei.
[31] Assim vê Cordesman: “Quaisquer que fossem as opções escolhidas, temos que ter um grau de realismo e de honestidade conosco, do que carecemos. O problema é que se não elegemos estas opções os custos e os riscos aumentam; não se reduzem se nos expulsam do Iraque, ou se vemos que este processo fracassa de maneira catastrófica, o custo, não só no Iraque, e sim em toda a região será bem mais alto. Precisamos entender quão longe chega tudo isto. Não vai ter impacto só no Golfo, que tem 60% das reservas petroleiras do mundo; vai afetar o conflito árabe-israelense, e as percepções no Líbano. Impacta na capacidade de recrutamento da Al-Qaeda e dos movimentos terroristas que precisamos derrotar. Enfraquece nossa posição no Afeganistão e no Paquistão, e obviamente, no mundo islà¢mico.” Center For Strategic And International Studies, “Briefing on Irak”, 29.11.06.
[32] O painel está integrado por pessoas que têm uma experiência importante em política exterior: os membros são o ex-presidente do Comitê Nacional de Relações Estrangeiras, Lee Hamilton, do Partido Democrata, que preside o grupo junto com Baker; Lawrence Eagleburger (que acaba de substituir Robert Gates); o ex-prefeito de Nova York, Rudy Giuliano, do Partido Republicano; o ex-assessor de Clinton, Vernon Jordan; Leon Panetta, que prestou serviços como Chefe do Departamento Pessoal da Casa Branca durante a administração de Clinton; o ex-secretário de Defesa de Clinton, William Perry; o ex-senador Chuck Robb, do Partido Democrata; Alan Simpson, um ex-senador republicano deWyoming e Edwin Meese, que foi Procurador Geral sob a administração de Reagan.
[33] Após seu apoio inicial aMaliki contra o ex-premiê do Iraque, Ibrahim Al-Jaafari, cresceram as tensões contra o atual premiê, que ao carecer de base própria se apóia nas milícias, em particular na de Al Sadr para se sustentar. Parte destas pressões se evidenciam no fato de que alguns dias antes da entrevista com Bush vazou através do New York Times um memorando de Stephen J. Hadley, conselheiro de Segurança Nacional. Aí se expressava a frustração da administração republicana com a performance de Maliki, questionando se “O premiê Maliki tem a vontade e é capaz de elevar-se acima das agendas sectárias que proporcionam os demais”. O memorando secreto de cinco páginas de extensão (...) assinalava uma série de passos a seguir pelos Estados Unidos e pelo Iraque. Entre outras coisas, o memorando do dia 8 de novembro sugeria que se devia pressionar Maliki para que se distancie do clérigo xiita anti-estadunidense Moqtada Al-Sadr e que “leve ã justiça” figuras da milícia de Sadr que “não renunciem ã violência, que mude seu gabinete para incluir mais tecnocratas não sectários; expanda o exército iraquiano; e declare a imediata suspensão das unidades da polícia iraquiana, que se suspeita que estiveram comprometidas em conflitos sectarios...” Hadley propôs que os EUA ajudassem Maliki a formar uma nova coalizão dentro do Parlamento iraquiano, com o fim de que pudesse se assentar em elementos mais moderados e menos sectários, no lugar de o fazer com representantes xiitas da linha dura. Michael Abramovitz, “Bush to Press Iraki Premier On Security”, Washington Post, 29.11.2006.
[34] Os rumores desta ossibilidade crescem dia a dia, com as pressões dos EUA para que o SCIRI abandone a Aliança de Unidade Iraquiana, aliança xiita na qual a fração de Al Sadr constitui o setor majoritário e conforme uma nova coalizão. Antes que surgisse esta última opção, corriam rumores de um golpe de estado contraMaliki para instalar um governo de linha dura baseado nos velhos servidores públicos do Partido Bath. Mas a ruptura das negociações com a insurgência parece ter descartado pelo momento esta variante.
[35] James Gerstenzang, “White House finds ally in Iraki leader”, Washington Post, 6.12.2006.
[36] Najmaldin Karim, presidente do Washington Kurdish Institute, descreveu o relatório do ISG numa coluna de opinião do Washington Post do dia 2/12, da seguinte maneira: “é muito provável que só ofereça as mesmas políticas desacreditadas que criaram - por 60 anos - uma perigosa ilusão de estabilidade no Oriente Médio, uma ‘estabilidade’ comprada com o sangue do povo do Oriente Médio e que causou horrores como o banho de sangue em massa em 1991”.
[37] National Journal, 12.7.06. McCain propugna ações militares contra as milícias no Iraque e a eliminação do clérigo xiita Moktada Al-Sadr.
[38] “Irak, Don’t do it”, The Economist, 7.12.2006.
[39] Nawaf Obaid, “Stepping Into Irak : Saudi ArabiaWill Protect Sunnis if the U.S. Leaves”, Washington Post, 29.11.2006. O autor é assessor do governo Saudita, é diretor geral de Projeto de Assessoramento de Segurança Nacional Saudita em Riyadh e membro adjunto do Centro para os Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington. Este assessor foi obrigado a renunciar ainda que todo mundo considere que sua opinião reflete a damonarquia saudita. Mais tarde, também renunciou abruptamente o embaixador saudita nos Estados Unidos alegando motivos pessoais, ainda que na realidade poderia ser a sucessão do atualministro de Relações Exteriores saudita, o príncipe Saud al-Faisal, que se encontra em mau estado de saúde e cujo cargo aparentemente está disputado entre este e o príncipe Bandar, embaixador em Washington por mais de 22 anos e agora conselheiro de Segurança Nacional da Arábia Saudita. Esta disputa poderia não ser só pessoal, mas estaria mostrando uma luta pelo poder na casa Saud, onde chamou a atenção amá reação que geraramas propostas de Baker, que sempre se vangloriava de ter uma relação de intimidade com a família real saudita.
[40] George Bush-pai elevou os impostos quando foi presidente, traindo a promessa eleitoral de que nunca o faria. Bush-pai foi vice-presidente de Reagan, que aplicou uma forte baixa de impostos aos ricos. Quando os jornalistas lhe perguntavam sobre isto, assegurava que nunca faria e dizia “leiam meus lábios”. Para os conservadores, tê-lo feito o levou a perder a reeleição na disputa com Clinton, apesar do seu sucesso na primeira Guerra do Golfo. Desta experiência, seu filho tirou a lição de que jamais devia abandonar a sua própria base social reacionária, hoje em dia concentrada no sul do país, segundo demonstraram as últimas eleições.
[41] O perigo que - por diferentes motivos - representa para seus interesses o avanço do Irã, criou uma “frente” de rejeição a este país que uniu a Arábia Saudita (o mesmo país que os neocon queriam debilitar em relação ao fiel aliado sionista) e Israel. Segundo o Sunday Times de Londres, sabe-se que o príncipe Bandar al-Sultan, o servidor público saudita mais próximo ã administração norteamericana, se reuniu com o premiê de Israel, Ehud Olmert, em setembro passado.
[42] Newsweek, 12.11.2006.
[43] Diário Haaretz, 13.11.2006.
[44] Charles Krauthammer questiona abertamente os orçamentos desta negociação diplomática num artigo intitulado ironicamente: “Isto é realismo? Irã e Síria não virão em nosso resgate?” (This Is Realism? Iran and SyriaWon’t Be Riding to Our Rescue?), Washington Post, 1.12.2006.
[45] A página editorial do jornal The Wall Street Journal descrevia o relatório como uma “desordem estratégica”. Richard Perle chamou de “absurdo”. Rush Limbaugh o qualificou de “estúpido”; e o The New York Post referiu-se aos líderes do grupo, o ex-secretário de Estado James A. Baker III e Lee H. Hamilton, um ex-deputado democrata, como “marionetes que se entregam”.
[46] Lindsay Beyerstein, “False hope and the Irak Study Group”, Majikthise, 8.12.2006.
[47] RobinWright e Peter Baker, “Irak Strategy Review Focusing onThreeMain Options”Washington Post, 7.12.2006.
[48] RobinWright, “U.S. Considers Ending Outreach to Insurgents”, Washington Post, 1.12.2006.
[49] Idem.
[50] Além disso, como já colocamos, está para se ver a eficácia em derrotar a insurgência e o exército Al Sadr (o que poderia renovar as possibilidades de frente única entre estes dois setores), esta opção está cheia de contradições. Uma não menor seria que o SCIRI - o grupo mais pró-iraniano, que através das milícias Badr se enfrentou violentamente pelo menos desde os anos 1980 (matando uns aos outros) com muitos dos funcionários de Estado sunitas, com os quais deveriam compartilhar posições no novo esquema - formaria agora supostamente o coração da nova coalizão governamental, com a bênção e o apoio amigável dos Estados Unidos, seja por trás da fachada de Maliki ou mais provavelmente de algum outro candidato.
[51] Nela há partidários de apoio aos xiitas, mas também os que consideram esta opção como uma condenação a uma guerra civil perpétua. Também está dividida sobre o incremento de tropas. Enquanto a Casa Branca está decidida com relação ao envio de 15 mil a 30 mil soldados por um período de seis a oito meses para reverter a atual deterioração da situação no Iraque, o general John Abizaid, chefe do Comando Central, se pronunciou contra incrementar as tropas para além dos 140 mil soldados hoje presentes, argumentando que isto criaria uma mentalidade de dependência nas forças iraquianas, além de incrementar a resistência da população iraquiana. Em meados de dezembro Abizaid anunciou seu afastamento.
[52] Outra variante, que por ora estava descartada, é o federalismo, isto é, a divisão do país segundo linhas étnicas e religiosas. Já em maio, o senador democrata Joseph Biden e o presidente emérito do Council on Foreign Relations, Leslie Gelb, tinham publicado uma coluna de opinião no New York Times argumentando a favor desta saída: “Os Estados Unidos devem superar a falsa opção atual entre ‘agüentar até o final’ ou ‘trazer as tropas já’ e eleger uma terceira via (...) A idéia, como na Bósnia, é manter um Iraque unido através da descentralização, dando a cada grupo étnico-religioso - curdos, sunitas árabes e xiitas árabes - espaço para que possam manejar seus próprios assuntos, enquanto se deixa o governo central a cargo dos interesses comuns.” (NYT, 1.5.2006). Levemos em conta que a promoção do federalismo étnico era uma crítica que os opositores ã guerra do Iraque sempre fizeram aos neoconservadores, para se ter uma idéia de como muitas das idéias pró-sionistas destes têm um apelo no Partido Democrata (na realidade é difícil encontrar árabes neste partido). Esta saída já tinha sido adiantada por Peter Galbraith, um ajudante do senador democrata Pell. No auge da campanha presidencial de 2004, ele alentou esta variante num artigo no NewYork Review of Books: “O problema fundamental do Iraque é a ausência de iraquianos (...) Em minha opinião, o Iraque não é recuperável como estado unitário (...) A melhor esperança para manter unido o Iraque - e evitar assim uma guerra civil - é deixar que cada uma de suas comunidades constitutivas principais tenham, na medida do possível, o sistema que cada uma queira.” (“How to Get Out of Iraque”, NYRB, Volume 51, Number 8, 13.5.2004). Esta proposta foi elogiada pelo conselheiro de política exterior de Kerry, Richard Holbrooke, que tinha indicado ao New York Times o agrado de Kerry com relação a essa idéia (NYT, 26.9.2004). O perigo desta variante é que, longe de conter, pode incitar de forma desmedida a guerra civil. No entanto, não pode se descartar que seja impulsionada abertamente pela Arábia Saudita, como já vimos.
[53] “The horror story that is unfolding before us”, The Independent, 10.11.2006.
[54] “Somber analysis of Irak’s future”, San Jose Mercury News, 11.11.2006.
[55] Forçando ao mesmo tempo os próprios iraquianos a um acordo político viável entre eles ou, caso contrário, a perspectiva de uma guerra civil aberta, acordo político por outro lado que os EUA não têm a força militar suficiente para impor, como já se viu no início do governo de Maliki.
[56] Richard Hass, “A troubling Middle East era dawns”, Financial times, 16.10.2006.
[57] Posteriormente a estes dois artigos, numa entrevista para a revista alemã Der Spiegel (13.11.06) ressalta que “O Iraque não é vencível” repetindo mais uma vez que “tinha chegado o fim da era dos Estados Unidos no Oriente Médio”. Segundo sua visão nem na Guerra Fria Washington tinha lidado com “tantos desafios difíceis ao mesmo tempo” e agora se encontra “sobre-extendido militarmente, dividido politicamente e sobre dimensionado também economicamente”, quando impera muito “antiamericanismo no mundo. É uma má combinação”.
[58] Juan Chingo, “A Presidência Bush e a deterioração da hegemonia norte-americana”, Estratégia Internacional n° 22, novembro de 2005.
[59] O ex-secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, era o exponente máximo desta concepção. Sua incorporação ao governo Bush teve a ver em primeiro lugar com o objetivo de permitir um giro fundamental na configuração militar dos EUA. Procurava saltar uma geração inteira de equipamento militar - como o avião caça F-22, que agora está operando - e em seu lugar se concentrar no desenvolvimento de novas tecnologias, de maneira tal que nos próximos vinte anos os EUA estariam colocando em operação tecnologia duas gerações antes de qualquer inimigo. Parte desta mudança seria uma redução em massa do tamanho da força militar, sendo o exército quem sofreria os maiores cortes em pessoal e recursos. Teria uma ênfase igual ã formação de forças ágeis e de alta mobilidade, com grandes capacidades de alta tecnologia como os mísseis supersônicos de alto alcance móveis, aviões de controle remoto “inteligentes” e a capacidade de inserir forças pequenas em qualquer parte do mundo em minutos. Em outras palavras, um exército capaz de demolir regimes como o de Hussein em alguns dias, mas incapaz de impor o controle devido ã falta de homens no terreno. Longe de seu sonho, os EUA ficaram com um exército exausto, que levará anos para reconstituir, e um limitado progresso em sua modernização militar.
[60] Põe como exemplos: “A rejeição por parte dos principais países europeus em apoiar a Guerra no Iraque é o exemplo mais óbvio. Nesse momento, a Venezuela, a Bolívia e Cuba formaram uma aliança contra o poder estadounidense no Caribe e na América Latina, e num grau ou outro, no Brasil, na Argentina e noMéxico estão resistindo ás pressões econômicas e diplomáticas dos Estados Unidos”. “Alguns países estãomobilizando seus recursos domésticos demaneira tal que limitema capacidade dos Estados Unidos de pressioná-los”. Tal estratégia pode enfatizar o poder militar convencional, como pode se ver no crescente fortalecimento das forças militares chinesas. Também pode adotar a forma de terrorismo e a construção de armas de destruição em massa. Estes dois últimos são, aparentemente, objetivos do atual regime iraniano. Walt, que desenvolveu a teoria do “balance of threat”, uma modificação da clássica teoria realista do “equilíbrio de poder”, escreveu este ano junto com John Mearsheimer um artigo publicado no London Review of Books intitulado “The Israel Lobby”. Nele colocam: “Por que os EUA quiseram deixar de umlado sua própria segurança e a demuitos de seus aliados para poder levar adiante os interesses [de Israel]? (...) alguém poderia supor que o vínculo entre os dois países se baseava em interesses estratégicos compartilhados (...) [mas] a dinâmica da política estadounidense na região deriva quase completamente da política interna, e especialmente as atividades do ‘Lobby pró Israel’.” O artigo gerou uma grande polêmica.
[61] De um ângulo mais geopolítico, Peter Gowan faz uma interessante definição dessa ordem: “Os acordos do pós-guerra para o mundo capitalista, estabelecidos no final da década do 1940, provaram-se notavelmente robustos; os sistemas de alianças de eixos e satélites de fato sobreviveram ao bloco soviético e se institucionalizaram. Foram apresentados publicamente como sistemas de cooperativas de segurança entre iguais e seu lema era que os sócios se apóiam em valores compartilhados. Como descrição da subjetividade deste sistema, há uma grande parte de verdade nessas frases. A ordem com eixo nos Estados Unidos foi aceita amplamente pelo Estado e pelas elites dos negócios dos aliados subalternos.” (“Triumphing toward International Disaster:The Impasse in American Grand Strategy. Critical Asian Studies. Volume 36, Number 1,March 2004 ).
[62] Stanley Hoffmann, “The Foreing Policy the US Needs”, The New York Review of Books, 10.8.2006.
[63] “Iran: Time for a New Approach”, Council on Foreign Relations 2004. O mesmo repetiuMadeleine Albright, ex-secretária de Estado de Clinton, numa entrevista ao Financial Times deste ano: “A mensagem do Iraque é que se têm armas nucleares não serão invadidos, mas se não têm armas nucleares serão invadidos” Citado em Daniel Dombey and Quentin Peel, “A system shaken: Pyongyang deals a blow to nuclear non-proliferation”, Financial Times, 10/10/2006.
[64] Não só pela supra-exposição que já comentamos, mas também pelo perigo para suas próprias tropas localizadas na península, e o risco para uma cidade de 20 milhões de habitantes como Seul, capital da Coréia do Sul.
[65] Neste contexto Michael E. O’Hanlon, um acadêmico da Brookings Institution e co-autor do recente livro Poder Militar: A nova política de Segurança Nacional, disse que “a resposta dos EUA ã Coréia do Norte terá um efeito dominó. Sem nenhuma dúvida o Irã olhará o que acontecerá. A Coréia do Norte viu o que aconteceu com o Paquistão e decidiu que o mundo não ia castigar o Paquistão muito duramente nem por muito tempo”, e agregou: “O Irã se dará conta seguramente de que se trata a Coréia do Norte com luvas de seda”. Em Glenn Kessler e Peter Baker, “Bush’s ‘Axis of Evil’ Comes Back to Haunt United States”, Washington Post, 10.10.2006.
[66] F.William Engdahl, “The Emerging Russian Giant:Moscow plays its cards strategically”, Asian Times, 25.10.2006. Parte desta crescente influência é o posicionamento russo na venda de reatores nucleares ao Irã, de armas ã Venezuela ou a cooperação estratégica no mercado de gás natural com a Argélia. No entanto, esta crescente influência no campo energético (e no mercado de armas, onde se localiza como o segundo exportador mundial de tecnologia militar depois dos EUA) não deve nos fazer esquecer o enorme retrocesso em termos de nível de vida, mortalidade de sua população, prosperidade e rendimento econômico da outrora superpotência nas últimas décadas. Ver Juan Chingo “O destino da Rússia e suas conseqüências para o sistema capitalista mundial”, Estratégia Internacional n° 22, novembro de 2005.
[67] Seu presidente Chirac viajou neste ano a Pequim numa transcendente visita.
[68] Henry Kissinger, o ex-secretário de Estado norte-americano, escreveu que após a crise do Suez,“A Grã-Bretanha optou por uma subordinação permanente ã política norte-americana”. Citado em Daniel Dombey, “Leaders-in-waiting grope for a new position on the US”, Financial Times, 6.10.2006.
[69] Gideon Rachman,”Oconflito do Iraque tencionou uma relação especial”, FinancialTimes, 30.10.2006. O mesmo artigo diz: “Cameron advogou a favor de uma política exterior baseada na ‘humildade e na paciência’ - nenhuma destas qualidades pode ser atribuída ã Casa Branca sob George Bush. Gordon Brown, que quase com certeza será quem sucederá Blair como premiê no próximo ano, foi mais cauteloso. Mas poucos observadores britânicos esperam vê-lo se abraçando com Bush como se tem visto com Blair. Altos diplomatas estadunidenses estão, sem dúvida alguma, preocupados. Um deles se lamenta de que muita gente em Washington segue ‘negando’ as conseqüências da partida de Blair.”
[70] Na Argentina, o governo de Kirchner alentou uma decisão judicial que envolve o Irã como responsável dos atentados da mutuária judia AMIA (um dos maiores atentados ã comunidade judaica em nível internacional) e pediu a captura internacional de um ex-presidente iraniano e vários funcionários, num giro que procura alinhar sua política exterior mais próxima ao eixoWashington-Tel Aviv do que ao eixo Caracas-Havana, em que se apoiou recentemente, em conseqüência do default de sua dívida externa. A Argentina se converteu num “pária” econômico internacional. A reconstituição da autoridade estatal e a bonança econômica pós-desvalorização inclinam a chamada burguesia nacional a um governo mais responsável e com menos gestos populistas, tanto interna como externamente, mais próximo ao modelo centrista de Bachelet no Chile, que desde que assumiu como presidente propõe se localizar como facilitadora das relações harmônicas entre os EUA (com o qual o Chile tem um tratado de livre comércio) e os demais governos reformistas da região.
[71] Juan Chingo e Aldo Santos, “Ofensiva guerrera de Bush: Uma tentativa de redefinir a hegemonia imperialista”, Estratégia Internacional n° 19, janeiro de 2003.
[72] A fortaleza desta moeda foi recentemente questionada pelo porta-voz da City londrina, The Economist: “A principal razão para a fortaleza do dólar foi a ampla crença de que a economia norte-americana nos últimos anos superava amplamente as outras economias ricas do mundo. Mas as cifras não sustentam este exagero. Não há dúvida que o crescimento do PIB dos EUA foi mais rápido que o da Europa, mas isto é principalmente porque sua população também cresceu mais rapidamente. Olhando mais profundamente, as diferenças diminuem. Cifras oficiais sobre o crescimento da produtividade, que em teoria deveriam ser um fator importante que guie as flutuações da moeda, exageram o papel líder dos EUA. Se medimos os dois sobre bases comparáveis, o crescimento da produtividade na última década foi quase o mesmo na zona do euro e nos EUA. As últimas cifras sugerem que, onde o crescimento da produtividade está decaindo nos EUA, está acelerando na zona do euro. Assim, contrariamente ás percepções populares, a economia dos EUA não superou a européia nos últimos anos. E para conseguir isto, num nível não muito desigual, os EUA têm que se encher de esteróides. Desde 2000 seu déficit orçamental estrutural se elevou de maneira aguda, enquanto os níveis de poupanças domésticas norteamericanos foram até o chão, fazendo com que o atual déficit de suas contas tenha aumentado. No mesmo período, a economia da área do euro não experimentou nenhum estímulo fiscal e as poupanças domésticas apenas se moveram. “The falling dollar”, The Economist, 30.11.06.
[73] É interessante levar emconsideração esta realidade para rebater que a atual situação dos EUA após a debacle do Iraque é só temporária, como foi o caso da derrota doVietnã e posterior recuperação norte-americana. O que esquecem estes analistas é que durante os anos 70, o dólar não estava sob a ameaça tangível de perder seu status de moeda de reserva mundial, pela existência de outras moedas e porque a enorme quantidade de reservas emdólares acumuladas pelos países da Ásia e os países petroleiros é uma espada de Damocles sobre os EUA, além do fato de que seus bancos centrais vêm diversificando seu “portfólio” de reservas contra o dólar no último período. Nos 70, os EUA eram a principal nação credora e hoje perdeu essa posição transformando-se na principal nação devedora do mundo, e dependente da boa vontade do financiamento internacional para manter a liquidez de sua economia, reduzindo sua influência sobre a economia internacional. Por sua vez, seguem crescendo os desequilíbrios financeiros como o déficit de conta corrente e o brutal endividamento público e privado.Tenta-se resolver istomediante uma depreciação significativa do dólar, realizada sem nenhum acordo de coordenação internacional, o que poderia ter conseqüências não previstas para os EUA. Ou seja, ainda que os EUA possam tentar enfrentar a sua crise descarregando-a sobre o resto domundo, como fez nas décadas passadas desde a crisemundial de 1974/75, as probabilidades de que esta saídamine gravemente umdos pilares fundamentais de seu próprio poderio, o dólar, aumentaram. Se se continua sem fazer nada e deixa que se sigam acumulando os déficits e os desequilíbrios se arrisca ã perda de confiança internacional sobre sua economia e moeda. O custo de resolver este impasse poderia ser uma dura recessão que até agora os EUA trataram de evitar (como foi o caso da leve queda que seguiu ã crise da chamada “nova economia”, na segundametade dos anos 90 numa fuga para adiante. Agreguemos que sua posição financeira e a do dólar já não podemser sustentada como no passado pelo guarda-chuva militar, furado pela supra-exposição do exército norte-americano).
[74] Clyde Prestowitz, “America’s Technology Future at Risk: Broadband and Investment Strategies to Refire Innovation”. Economic Strategy Institute, março de 2006.
[75] David Pritchard and AlanMacPherson, “Boeing’s Diffusion of Commercial Aircraft DesignManufacturing Technology to Japan: Surrendering Aircraft Industry for Foreign Financial Support”, Canada-United States Trade Center Department of Geography, State University of New York, março de 2005.
[76] Num recente artigo, Eamonn Fingleton, sustenta que: “(...) ao montar no exterior as asas do modelo 787, a Boeing está cruzando um Rubicão econômico (...) nunca antes um Boeing tinha voado com asas estrangeiras.” Fingleton questionava o critério da Boeing de transferir aos japoneses a tecnologia para fabricar asas que estava zelosamente resguardada. Chegou inclusive a dizer que “a fabricação de asas é um dos subsetores mais avançados de uma das indústrias manufatureiras mais avançadas do mundo”. Fingleton E., “Boeing, Boeing, Gone: Outsourced to Death”, American Conservative, 24 de janeiro de 2005. Em contraste, a Airbus mantém quase em 100% a montagem final das asas em suas instalações domésticas (além de outros sistemas complexos).
[77] Não desenvolvemos aqui os casos mais conhecidos da indústria automobilística, onde, das três grandes, a Chrysler foi absorvida pela gigante alemã Daimler Benz, e Ford e Geral Motors se encontram em grande queda, perdendo mercado para suas rivais japonesas, em especial a Toyota. Só se mantiveram nas últimas décadas graças ao mercado das SUV (4x4 consumidoras de muito combustível desenvolvidas em meados dos anos 80 quando o preço do petróleo estava baixo) nos anos 90, e na década atual graças a suas lucrativas unidades financeiras, apesar das importantes baixas e dos créditos sem juros para manter as compras do público.
[78] Kevin Phillips, AmericanTheocracy:The Peril And Politics Of Radical Religion, Oil and BorrowedMoney In The 21st Century, Viking Pennguin, 2006.
[79] Idem.
[80] Ian Dew Becker and Robert J. Gordon, “Where did the Productivity Growth Go? Inflation Dynamis and the distribution of income”. National Bureau of Economic Research, Cambridge, Massachusetts, 2005.
[81] Os autores se perguntam “não só porque a desigualdade cresceu após meados dos anos 70, mas porque declinou desde 1929 a meados dos anos 70, no entanto, deixam a pergunta sem resposta.
[82] Tom Mackaman, “Forbes publishes list of 400 richest Americans: “A nine-figure fortune won’t get you much mention these days” WSWS, 16.10.2006.
[83] Samuel Brittan, “Superstars snap up US growth”, Financial Times, 9.2.2006.
[84] Para aprofundar sobre seu significado ver Juan Chingo, “Crise, neo-imperialismo e resistência”, Estratégia Internacional n° 20 Setembro 2003.
[85] “Kissinger Foresees No Military Win in Irak”, Associated Press, 20.11.2006.
[86] Como foi o caso da guerra dos Bálcãs que assegurou a sobrevivência da Otan como ferramenta ofensiva para ocupar o vazio deixado pela débâcle da ex-URSS em suas antigas zonas de influência e evitar o ressurgimento da Rússia. Sobre este aspecto pode-se aprofundar em Juan Chingo, “O destino da Rússia e suas conseqüências para o sistema capitalista mundial”, Estratégia Internacional n° 22 novembro 2005.
[87] Protetorado descreve a relação entre dois Estados, um dos quais exerce o controle sobre o outro. Ainda que segundo a teoria do direito internacional o Estado protegido não perde sua soberania mas simplesmente sua autonomia, na política exterior, a realidade é que o país dominante exerce uma intervenção em todos os assuntos fundamentais do Estado protegido.
[88] Citados por Peter Gowan em “Triumphing toward International Disaster: The Impasse in American Grand Strategy”, Critical Asian Studies, Volume 36, Number 1, march 2004. As expressões de Madelaine Albraight, sucessora de W. Christopher como secretária de Estado, dos Estados Unidos “como a nação indispensável” é outra mostra.
[89] “O significado da Segunda Guerra Mundial”; editorial Fontamara, 1991.
[90] Idem, p. 58.
[91] Os EUA não podem se dar esse luxo por sua localização na economia capitalista mundial. Como diz Peter Gowan : “A diferença da Grã-Bretanha no século XIX, que levou adiante um jogo de ‘offshore balancing’ (‘equilíbrio no estrangeiro’) em relação ã Europa - uma estratégia que foi favorecida por alguns estrategistas norte-americanos como Kennan - a primazia do sistema implica que os EUA tomem o comando das estratégias geopolíticas de outras potências centrais.”
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