A atual crise financeira que estourou no coração do capitalismo ameaça se converter em uma intensa recessão internacional. A chuva de condenações saída do espectro dos economistas e comentaristas "progressistas" aos "paradigmas hegemônicos", ás "idéias da ortodoxia liberal", ao "livre mercado" e ã "desregulamentação financeira global" impulsionada pelos principais países capitalistas durante os últimos 30 anos, não se fez esperar. A atual crise financeira seria, segundo eles, o resultado das políticas neoliberais das últimas três décadas. A "tese" que se pretende inovadora e chega disfarçada de anseios re-distributivos e humanistas não é mais do que uma nova (velha) tentativa de livrar de toda a culpa o verdadeiro "mal de todos os males". O modo capitalista de produção. Não só a atual crise não é produto do "neoliberalismo", como o neoliberalismo se construiu em resposta ao fracasso das políticas keynesianas que desde a década de 70 se mostraram impotentes para revitalizar o capital, quando suas leis, como a queda da taxa e massa de lucro, começaram a evidenciar-se induzindo o fim do boom econômico do segundo pós-guerra.
Lord John Maynard Keynes: "...do lado da educada burguesia"
É comum entre os economistas e comentaristas "progressistas" associar o keynesianismo ás idéias de "re-distribuição de renda" contra sua concentração, "intervenção estatal" na economia contra o "laissez faire" (deixar fazer) dos mercados, "capital produtivo" contra "capital especulativo". Em outras palavras, buscam associar o keynesianismo a um suposto capitalismo "humanizado" contra a violência destrutiva do neoliberalismo. Mas essa dicotomia é falsa. Quando se fala de keynesianismo se faz referência aos princípios de política econômica baseados nas teorias do economista inglês John Maynard Keynes cuja obra mais conhecida, "A teoria geral sobre o emprego, o juro e o dinheiro", foi publicada em 1936, ou seja, em meio ã hoje tão falada "crise da década de 30". Mas Keynes não foi um humanista nem nada parecido. Lord John Maynard Keynes foi um economista lúcido que uns anos antes de 1936, sugeriu que para salvar o capital ameaçado tanto por suas próprias leis como pelos ventos revolucionários que sopravam da União Soviética, já não bastavam os princípios clássicos que haviam dominado a teoria econômica durante mais de um século, motivo pelo qual se apresentava a necessidade de desenhar novas políticas. Quanto a seu posicionamento de classe e seu anseio de salvar o capital, Keynes não deixou dúvidas: "Posso estar influenciado pelo que me parece ser justiça e bom senso, mas a luta de classes me encontrará do lado da educada burguesia". (J.M. Keynes, 1925).
Os princípios da política keynesiana e a depressão dos anos 30
O crack da bolsa de 1929, ponto de partida da depressão mundial dos anos 30, teve importantes precedentes. A guerra mundial de 1914 não havia conseguido resolver a crise de hegemonia imperialista enquanto continuava a decadência do império britânico.
A Alemanha havia ficado tremendamente endividada depois da guerra e devastada pela crise econômica. A revolução operária havia triunfado na Rússia e aparecia como uma ameaça para um capitalismo mundial em estado crítico. Ainda que as condições econômicas e políticas fossem altamente instáveis, o fracasso de processos revolucionários como o da Alemanha ou o da Hungria, deram fôlego ao capital para uma relativa recuperação. Aquilo que se conheceu como a "belle époque" dos anos 20, foi um período de estabilidade econômica e intensa especulação financeira. A não resolução das contradições interimperialistas e a revolução russa constituíram outros tantos fatores que, mesmo tendo se alcançado uma estabilidade durante os anos 20, não favoreceram o restabelecimento de um equilíbrio capitalista que permitisse o desenvolvimento de um novo ciclo "normal" de acumulação. É nesse contexto que a "belle époque" se transforma, depois do crack de 1929, na fatal época dos anos 30 com uma depressão econômica que produziu a bagatela de 14 milhões de desempregados nos Estados Unidos, 6 milhões na Alemanha e 3 milhões na Grã-Bretanha, para citar alguns exemplos. Em um contexto de paralisação da economia internacional, ficou evidente que as profundas contradições que haviam se desenvolvido junto ao capital, não permitiam que os mecanismos cíclicos clássicos de recessão e recuperação econômica funcionassem como antes. É aí que uma maior participação e ingerência do Estado sobre a economia para tentar salvar um sistema ferido de morte, torna-se uma necessidade inevitável. Contudo, a mencionada "participação do Estado" - diferente do que se acredita - não teve apenas uma cara, mas duas. O New Deal americano, associável ás recomendações de política keynesianas, estava muito longe de buscar algo similar a uma "melhora na redistribuição de renda". Na realidade, procurava, além de conter e subordinar o movimento de massas, recompor as colapsadas relações capitalistas de produção em uma situação na qual nas palavras do ex-presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt eram: "Sob a inexorável lei da oferta e da procura, os bens oferecidos chegaram a superar de tal maneira a demanda que podia pagá-los, que a produção teve que frear bruscamente". Nesse contexto, o Estado norte-americano deu um forte respaldo ao investimento através de facilidades de crédito e da realização de obras públicas absorvendo parte do desemprego e re-estimulando a demanda para que os capitalistas pudessem reabrir suas fábricas, podendo realizar (vender) suas mercadorias. Buscava-se com isso re-estabelecer a produção e a realização da mais-valia que permitia o impulso a um novo ciclo de acumulação estatal. Mas em outro cenário, na Alemanha destruída, o fascismo não perseguia objetivos diferentes dos americanos no que toca ás necessidades de salvar o capital, apenas o fazia sob outros "métodos". Como diz Leon Trotsky, "O Estado fascista legaliza oficialmente a degradação dos trabalhadores e o empobrecimento das classes médias em nome da salvação da ‘nação’ e da ‘raça’, nomes presunçosos sob os quais se oculta o capitalismo em decadência. A política do New Deal, que salva a democracia imperialista por meio de presentes ã aristocracia operária e camponesa, só é acessível em sua totalidade ás nações verdadeiramente ricas, e nesse sentido é uma política norte-americana por excelência." (Trotsky, El marxismo y nuestra época, in Naturaleza y dinámica del capitalismo y de la economía de transición, CEIP). Desgraçadamente para os "humanistas" keynesianos e para o histórico do capital que, parafraseando a Marx, "veio ao mundo jorrando sangue e lodo", o fascismo alemão com sua preparação para a guerra foi mais efetivo que o New Deal no terreno da recuperação capitalista. Em 1936, a Alemanha havia absorvido quase todos os desempregados enquanto os Estados Unidos, a partir do ano de 1938, mesmo conseguindo sair da terrível depressão dos anos 29-33, recém conseguia recuperar os níveis anteriores ã crise de 29 quando começou sua política armamentista para sua posterior entrada na segunda guerra mundial. De modo que a "intervenção estatal" não constituiu uma marca característica das políticas keynesianas marcadas pela intenção de "redistribuir a renda". A intervenção do Estado na economia era uma necessidade dos países imperialistas de salvar o capital condenado ã morte. Em um país rico como os Estados Unidos, adotou a forma "benéfica" - ainda que não tão eficiente - do New Deal, na Alemanha destruída, adotou a forma brutal do fascismo. Mas a variante propriamente americana se tornou verdadeiramente efetiva só quando imitou o curso de sua "rival" fascista e começou a armar-se para participar da carnificina imperialista.
Segunda guerra mundial, pós-guerra e "boom" econômico
Em última instância e levada ás últimas conseqüências, a necessidade do Estado capitalista de intervir na economia deveria alcançar sua forma mais nítida na preparação das "nações" para a guerra, acabando em uma nova grande guerra mundial. A segunda guerra tinha entre suas tarefas a de resolver o que a primeira havia deixado inacabado: o problema da hegemonia imperialista. Além disso, todos os disputantes imperialistas compartilhavam um objetivo comum: destruir o Estado Operário soviético que, mesmo com a degeneração estalinista, continuava representando uma séria ameaça para o capitalismo mundial. Se bem o bando aliado triunfou na guerra, os resultados não foram tão bons quanto os desejados. O exército fascista foi vencido finalmente pelo Exército Vermelho em território soviético, o que longe de destroçar o fantasma do "comunismo", deu novo fôlego ã União Soviética, ainda que, lamentavelmente, também o deu ã camarilha estalinista. O imediato pós-guerra se caracterizou por uma série de levantes revolucionários que, traídos um a um pelos Partidos Comunistas, aplanaram o caminho para a consolidação da hegemonia norte-americana, que junto ã enorme destruição das forças produtivas (materiais e humanas) deixada pela guerra, abriu o caminho para a recuperação do capital, especialmente nos países centrais. Baixa composição orgânica do capital, necessidades de reconstrução associadas ã "terra arrasada" deixada pela guerra, massas de homens famintos dispostos a trabalhar por um pedaço de pão, derrotas dos processos revolucionários particularmente nos países centrais e clara hegemonia mundial norte-americana, foram todos fatores que restabeleceram o equilíbrio capitalista, depois de sua ruptura em 1914, e criaram condições para a obtenção de uma alta taxa de lucro para o capital. Contudo, as condições da formação de um "sobre-capital", ou seja, de acumulação ampliada, novamente tiveram que ser sustentadas por uma participação sem precedentes dos Estados na economia. O Plano Marshall, que data do ano de 1947 e foi uma enorme injeção de capital por parte do Estado norte-americano nas destruídas economias da Europa, junto ã prévia criação de organismos multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial, acabam sendo exemplos dessa participação. As políticas keynesianas de estímulo ã demanda efetiva (gasto de consumo, gasto de investimento e gasto público) através da inflação do crédito, foram pela primeira vez verdadeiramente bem-sucedidas em garantir mecanismos azeitados de produção e realização da mais-valia. No entanto, o "êxito" do "círculo virtuoso" que, apelando a mecanismos keynesianos, caracterizou os chamados "30 anos gloriosos" do capital, deve ser considerado sob dois aspectos fundamentais. O primeiro é que os mecanismos keynesianos, que haviam produzido resultados pouco satisfatórios nos anos 30, só funcionaram de maneira efetiva depois da destruição deixada pela guerra e das derrotas mencionadas. O segundo é que esses mecanismos, que fundamentalmente nos países centrais permitiram um "boom" de produção e consumo com fortes lucros e salários em alta, encontraram seu limite nos fins da década de 60, quando uma composição orgânica crescente do capital voltou a trazer ã cena a lei da queda da taxa média de lucro que se manifestou através da diminuição das massas de lucro do capital.
Década de 70, políticas keynesianas e giro neoliberal
Queda da taxa de lucro do capital, recuperação da Alemanha e Japão que começam a questionar a hegemonia americana, ascenso de massas que começa no ano de 1968, fim da ordem monetária de Bretton Woods que havia estabelecido a paridade dólar-ouro, são, entre outros, fatores que marcam que as condições excepcionais do "boom" do pós-guerra chegavam ao fim. Nesse cenário, as políticas keynesianas voltam a mostrar sua impotência. A continuidade do estímulo estatal ã demanda efetiva, através dos mecanismos de crédito, não consegue evitar um novo estancamento econômico e só contribui para estimular a inflação. Durante os anos 70, o crescimento é muito débil (há estancamento econômico) e a inflação se torna incontrolável. A combinação desses aspectos está embasada em um novo fenômeno que ficou conhecido como “estagflação”. A crise estoura no ano de 1973, com a disparada nos preços do petróleo. Essa subida está associada ã entrada em cena da OPEP que, depois de suportar anos de preços baixos do petróleo, provoca um estouro em seu preço. Novamente, e como sintoma particular da época de decadência capitalista, as dificuldades para a produção e a realização da mais-valia entram em cena, apesar dos mecanismos keynesianos de estímulo estatal da demanda e dos investimentos, e se traduzem em processos violentos de especulação financeira. Nesse marco, a alta dos preços do petróleo gerou (além de contribuir a uma maior queda da já debilitada taxa de lucro) massas gigantescas de capital que, sem conseguir espaço para a valorização, foram depositadas sob forma de euro-dólares nos bancos europeus. A escassa rentabilidade assim como a massa de mercadorias paradas nos países centrais (sobre-acumulação e sobre-produção) - outra vez o keynesianismo não podia com as contradições estruturais do capital - esteve na gênesis de outro processo especulativo que desta vez adotou a forma de massas de capitais que foram emprestados aos países periféricos, a princípio, com baixas taxas de juros. Um dos objetivos da criação dessas dívidas "externas" era dar saída ao excesso de mercadorias dos países centrais. Mas no ano de 1979, fundamentalmente como reação frente ã desvalorização do dólar provocada pela inflação, o FED (banco central americano), impulsionou um forte aumento das taxas de juros, com o qual as dívidas contraídas tornaram-se totalmente impagáveis. Estoura então uma profunda crise financeira. As políticas keynesianas, com a falta de fortes elementos estruturais como os conquistados pelo capital no segundo pós-guerra, mostravam toda sua impotência. O giro neoliberal, com ponto de partida em 1979, se manifesta mais claramente a partir da década de 80 com o Reaganismo-Tatcherismo e as derrotas dos mineiros e dos controladores de vôo norte-americanos, dando lugar ás políticas neoliberais dos últimos 30 anos. Hoje, quando o espectro da crise volta a aparecer com profunda virulência, as tentativas de revigorar a "via keynesiana" não são mais que lamentos desesperados para salvar um capitalismo ferido, mediante o esquecimento intencional da tenda de fracassos e desastres que o "humanismo" keynesiano nos deixou.
Traduzido por Beatriz Michel
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