A recente onda de levantamentos de massas no mundo árabe teve, entre outros, o mérito de recolocar o debate sobre a revolução, e todos os problemas teóricos e práticos que ela suscita.
Em particular, lança nova luz sobre algumas polêmicas estratégicas que – precisamente na ausência de revoluções por anos e décadas – tendiam a aparecer como debates sem importância, ou até “artificialmente plantados”.
No número 418 do jornal Opinião Socialista, dois artigos merecem especial destaque pela visão que veiculam sobre os acontecimentos revolucionários no Egito. O primeiro é o artigo assinado por Eduardo Almeida, dirigente nacional do PSTU; o segundo, o editorial, que expressa de maneira ainda mais contundente o que os companheiros da tradição morenista entendem como sendo as “lições do Egito”.
Antes de entrar na polêmica, adiantemos que, de nossa parte, o processo encerra diversas lições, e dificilmente erraríamos ao apontar entre as principais:
– que a combinação entre a crise capitalista (em primeiro lugar, como ausência de perspectivas para a juventude, agravamento da miséria e da fome), declínio da hegemonia estadunidense (que por sua vez golpeia diretamente seus aliados diretos), e a longevidade exacerbada de regimes odiados e carcomidos, fez saltar novamente o verdadeiro motor da história (a atividade própria das massas sob a forma da luta de classes);
– que essa tendência ã ação histórica independente, ao mesmo tempo em que assume claros contornos revolucionários, traz consigo enormes contradições, pois arrasta todo o peso de um prolongado período de retrocesso histórico, retrocesso que assumiu a forma de uma verdadeira “restauração burguesa” de aproximadamente trinta anos.
– que as mediações tradicionais que governaram os destinos dos povos árabes e muçulmanos na etapa anterior, polarizadas na disjuntiva entre as elites corruptas pró-imperialistas ou as figuras anti-ocidentalistas do Islà político, de conjunto, perderam força (ainda que não estejam mortas e nem possam ser definitivamente varridas por fora da ação revolucionária consciente do proletariado), e isso gera uma espécie de “vazio de alternativas”, especialmente sensível no Egito, onde foi a Junta Militar que usurpou o poder frente ã debilidade das mediações políticas.
– que a classe operária, que vem de alguns anos de um ascenso inicial na região (greves econômicas, pequenas explosões em nível local), vê-se imediatamente colocada frente a tarefas históricas para as quais não conta nem com organização revolucionária da vanguarda (direção) nem com tradições de massas recentes nas quais apoiar-se.
– que esse desafio histórico da única classe revolucionária da nossa época se coloca em: diferenciar-se claramente e ganhar projeção no seio do bloco “de todo o povo” ungido nas primeiras etapas do processo; atrair e organizar em torno de si o enorme anseio democrático das massas, anseio este que já está sendo e será ainda mais vilipendiado pelas distintas direções burguesas, e que, se conduzido com uma estratégia independente, pode impulsionar a marcha dos acontecimentos no sentido da formação de um autêntico poder operário (soviético).
É do ponto de vista dessa síntese que devemos avaliar que lições nossos companheiros morenistas pretendem extrair dos mesmos acontecimentos.
‘Lições’ superficiais e enganosas
O editorial resume o balanço do processo em duas lições. Nas palavras do editorialista: “A derrubada de Mubarak impactou o mundo. Os ativistas que estão ã frente das lutas sindicais, estudantis e populares no Brasil ficaram muito contentes, como no mundo todo. Agora, além da alegria, é hora de tirar conclusões”.
“(...) A primeira lição é que ocorreu uma revolução vitoriosa. A revista Veja, símbolo da direita no Brasil, descreveu a queda de Mubarak como um golpe militar, para esconder o protagonismo das massas populares concentradas ao redor da Praça Tahrir. Não, não foi assim. Aconteceu uma revolução [1], com os estudantes, os trabalhadores e o povo egípcio derrubando uma ditadura que durava trinta anos e parecia estável há menos de dois meses. O exército não foi o agente da derrubada de Mubarak, mas busca agora se apropriar da vitória das massas”.
“(...) A segunda lição é que esta foi uma revolução no terreno do regime burguês, para derrubar uma ditadura. Não foi uma revolução para mudar os fundamentos da sociedade, sua economia. A situação política que se abriu é completamente nova, confirmando a existência de uma revolução”.
Ou seja, para os morenistas brasileiros as principais lições são não mais do que duas: 1) houve uma revolução; 2) a revolução foi no regime político.
Mas de onde surge essa definição de “revolução no regime político”? Sabemos, desde o Manifesto Comunista, que a definição mais elementar de revolução para um marxista é a passagem do poder político de uma classe para outra. Que outra definição é esta, usada pelo editorialista? A resposta está no artigo assinado por Eduardo Almeida: “Já Nahuel Moreno explicava por que a derrubada das ditaduras militares na Argentina, na Bolívia e no Peru tinham sido revoluções... [E passando a citar diretamente a Moreno:] ‘Reforma e revoluções se produzem em tudo o que existe, pelo menos em tudo o que é vivo. (...) Se nos referimos ã estrutura da sociedade, ás classes sociais, a única revolução possível é a expropriação da velha classe dominante pela classe revolucionária (...). Se nos referimos ao Estado, a única revolução possível é que uma classe destrua o Estado da outra; que a expulse e o tome nas mãos, construindo um Estado distinto. (...) Sustentamos que a mesma lei se aplica em relação aos regimes políticos’”. “Sustentamos”, diz Moreno, para deixar claro que este é um “acréscimo” que ele mesmo forneceu ã teoria marxista. Fato este que fica também expresso na conclusão de Eduardo Almeida, quando afirma que: “Assim, as duas características definidas por Moreno existiram no Egito. Por isso [sic], ocorreu uma revolução democrática, que derrubou o regime ditatorial” [2].
Até aqui, o autor se limita a explicitar que sua chave interpretativa para o processo está inteiramente circunscrita ás teses de Moreno. No passo seguinte, no entanto, Eduardo Almeida dá um passo a nosso ver muito mais deplorável, buscando amalgamar as concepções morenistas com o “cânone” do marxismo revolucionário clássico. Voltemos ás palavras dele: “Essa definição de uma revolução democrática vitoriosa serve para localizar o momento atual do Egito, segundo a teoria da revolução permanente. Foi cumprida apenas uma tarefa democrática, mas ainda falta todo o resto”.
Visivelmente, esta afirmação, assim como o raciocínio que se segue a ela, cumpre o papel de tentar expiar os “pecados oportunistas” da teoria morenista, ou em linguagem mais laica, de fornecer a cobertura de esquerda cuja necessidade o próprio autor pressente. No entanto, ela deturpa o núcleo da teoria da revolução permanente, e o faz para encobrir o oportunismo político oculto por trás da análise. Uma coisa de cada vez:
Enquanto para Trotsky toda a base teórica, herdada desde Marx, que sua concepção toma como ponto de partida está no fato de que a “revolução democrática” [3] só será digna desse nome se a classe operária for o seu combatente de vanguarda e a sua condutora – e nesse sentido o caráter “proletário” da revolução e seu caráter “democrático” se entrelaçam e, em certa medida, até se fundem; para Eduardo Almeida (como para Moreno) volta a ocorrer uma cisão entre os momentos da “revolução democrática” e da “revolução socialista”.
Dentre as diversas citações de Trotsky que poderíamos utilizar para esclarecer a questão, é particularmente esclarecedora a formulação sintética encontrada nas suas “Teses” sobre a revolução permanente: “Para os países de desenvolvimento burguês atrasado e, em particular, para os países coloniais e semicoloniais, a teoria da revolução permanente significa que a resolução íntegra e efetiva das suas tarefas democráticas e de libertação nacional somente pode ser concebida por meio da ditadura do proletariado, que se coloca ã cabeça da nação oprimida e, primeiro de tudo, das suas massas camponesas. (...) Sem a aliança entre o proletariado e os camponeses, as tarefas da revolução democrática não podem ser realizadas; nem sequer podem ser seriamente colocadas. Mas a aliança destas duas classes não poderá realizar-se a não ser através duma luta implacável contra a influência da burguesia liberal nacional. (...) O que significa, por sua vez, que a vitória da revolução democrática só é concebível por meio da ditadura do proletariado, que se apóia na sua aliança com o campesinato e que, em primeiro lugar, decide das tarefas da revolução democrática. (...) A ditadura do proletariado, que sobe ao poder como força dirigente da revolução democrática, se encontra muito rápida e inevitavelmente colocada perante tarefas que a forçarão a fazer incursões profundas no direito de propriedade burguês. No decurso de seu desenvolvimento, a revolução democrática transforma-se diretamente em revolução socialista e torna-se assim uma revolução permanente”. Mais claro, impossível: sem que os trabalhadores tomem o poder (a ditadura do proletariado), não existe verdadeira revolução democrática. Pode-se estar ou não de acordo com Trotsky, porém amalgamar essa teoria-programa com o palavreado sobre a “revolução democrática triunfante” no Egito, é puro confusionismo.
Ou seja, a teoria da revolução permanente não nos diz que “não basta cumprir as tarefas democráticas” (ou ainda pior, “uma tarefa”, como diz Eduardo Almeida), e que “é preciso avançar para o socialismo”. Esta é, precisamente, a interpretação vulgar do conceito – como se a revolução permanente significasse apenas que “a revolução não pode parar”. Mas não, apesar de englobar a extensão no tempo e no espaço, o que a teoria da revolução permanente diz, precisamente, é que: “não haverá cumprimento de qualquer tarefa democrática sem a hegemonia operária, a qual por sua vez empurrará ao desenlace socialista”.
A experiência latino-americana
Antes de voltar ao Egito, passemos por uma experiência mais próxima de nós e que ilustra cabalmente o sentido político de tanta discussão teórica. O próprio Eduardo Almeida, no trecho que citamos no qual retoma Moreno, afirma que “já Nahuel Moreno explicava por que a derrubada das ditaduras militares na Argentina, na Bolívia e no Peru tinham sido revoluções...”. Como sabemos, Moreno também “explicava” que o fim da ditadura brasileira tinha sido uma “revolução”, situando esta última no dia preciso da votação da emenda Dante de Oliveira sobre as Diretas em 1984 [4].
Moreno, e com ele os herdeiros da tradição morenista, fizeram dos processos de transição das ditaduras militares para os regimes democrático-burgueses na América Latina o grande laboratório histórico para a confirmação da sua “teoria” da revolução democrática. Onde nós vemos enormes processos de massas que a burguesia conseguiu desviar, com a ajuda imprescindível de seus agentes no seio do movimento operário e popular, para a via morta das “transições negociadas” e das eleições, da “reação democrática”, abortando processos revolucionários em que a classe operária perdeu uma importante oportunidade histórica para destruir o regime burguês e abrir caminho para a construção de uma nova sociedade; os morenistas vêem exemplos de “revoluções triunfantes”, a serem seguidos por outros países em que vigem governos ditatoriais [5].
O editorial já citado retoma algo dessa experiência, afirmando: “As massas mostraram que, quando têm uma clara vontade política, podem fazer maravilhas. Isso é um antídoto forte contra o ceticismo. O proletariado brasileiro já protagonizou um dos maiores ascensos sindicais de todo o mundo na década de 1980, quando sacudiu toda a superestrutura política e sindical do país, criando a CUT e o PT. O povo nas ruas derrubou o governo Collor na década de 1990.” A comparação com a queda de Collor (um processo que qualquer pessoa em sã consciência sabe distinguir de qualquer coisa que tenha a ver com revolução) poderia ser apenas um exagero ou comparação fora de hora. Mas o pior é que, sim, os morenistas brasileiros, em particular na voz de Valério Arcary, já definiram diversas vezes essa como mais uma “revolução triunfante” (pior, comparando com a revolução de Fevereiro que derrubou o czar na Rússia!)
De volta ao Egito
Esse é o pano de fundo para a análise morenista do processo atual no Egito. Vejamos como Eduardo Almeida passa das caracterizações ã política em seu artigo:
“Ou seja, a definição do que ocorreu no Egito como uma revolução democrática, não significa que terminou um processo vitorioso. (...) A definição da vitória da revolução democrática serve também para definir o programa. Antes, nosso programa de transição girava ao redor da palavra de ordem ‘fora Mubarak’ (ou abaixo a ditadura). Agora, tem de indicar novas tarefas democráticas, anti-imperialistas e de transição, que surgem com mais força. Essas lutas questionam o capitalismo e o imperialismo, e só a classe operária poderá dar-lhe perspectiva. Por isso, terão que colocar no centro, um governo operário capaz de impor essas reivindicações, apoiado na mobilização das massas”.
Como vimos, Eduardo Almeida afirma que a definição de vitória da revolução democrática serve para definir o programa; que este antes “girava ao redor” da palavra de ordem “fora Mubarak”, e que agora tem de “indicar novas tarefas democráticas, anti-imperialistas e de transição”, colocando no centro a questão do governo operário. Para nós, essas definições, apesar de falarem a linguagem do marxismo e soarem bastante “ortodoxas”, encerram na verdade um grande número de equívocos. O principal é que, mais uma vez, separam o processo em duas etapas, a primeira com um “programa mínimo” (contra Mubarak) e a segunda com um programa “completo”.
Nesse sentido, ainda que evidentemente a maneira de levantar as consignas do programa e sua hierarquia interna variem muito de acordo com os vaivens da situação objetiva e da consciência revolucionária das massas, não podemos concordar de modo algum que “antes da revolução triunfante” o programa devesse se circunscrever ao “fora Mubarak”, e que, “depois do triunfo”, entram novas palavras de ordem democráticas, anti-imperialistas e de transição. Uma coisa é que, como revolucionários, acompanhemos a experiência prática das massas da maneira como ela se dá, ou seja, que “aceitemos” momentaneamente o eixo “fora Mubarak” se ele se impõe devido ao atraso na consciência das massas (atraso justificado, como dissemos ao início, não apenas pelas condições “normais” de embrutecimento capitalista, mas pelo peso das derrotas históricas do proletariado mundial e da ditadura de trinta anos no próprio Egito). “Aceitamos” esse programa estreito e parcial, no sentido de que não exigimos que as massas levantem “nosso” programa para estarmos lado a lado nas suas mobilizações revolucionárias. Porém, não relegamos ao “dia seguinte” a tarefa de buscar elevar, desde o início, o teor político das reivindicações das massas, nem deixamos por nenhum momento sequer de lutar para que a classe operária estenda sua influência, e se possível hegemonize o processo, desde as primeiras etapas da luta [6].
Mais importante, por trás da “mudança no programa”, o que se esconde é uma questão estratégica: a divisão do processo revolucionário em duas etapas, na primeira das quais a classe operária deveria atuar diluída no bloco de “todos juntos”, isto é, na prática, sob a direção dos elementos burgueses e pequeno burgueses (ver também a expressão disso na Líbia, discutida no artigo “As confusões da LIT na Líbia”, em www.ler-qi.org). Ou seja, no caso do Egito: para o PSTU e a LIT, até a queda de Mubarak o programa girava em torno desse ponto, porque era ele que garantia a unidade de todas as classes [7].
A maneira esquemática como os morenistas reintroduzem uma definição semi-etapista [8] de revolução, em que num primeiro momento o objetivo é a “revolução democrática” (no regime) e depois surgem os objetivos “socialistas”, aparece também na própria descrição do processo que conduziu ã queda de Mubarak. Nas palavras de Eduardo Almeida: “No Egito, durante 18 dias, as massas ocuparam a Praça Tahrir, transformando-a não só no centro das lutas contra Mubarak, mas também em um poder alternativo ao do governo. Ali se centralizava a luta, se enviavam manifestantes para outros lugares, se organizava a defesa contra a polícia, se cuidava dos feridos. Um início de duplo poder”.
Uma definição de duplo poder que, não ã toa, não possui corte de classe. Ou seja, longe de ir buscar na análise concreta, o mais precisa possível, da situação da classe operária em Suez, Alexandria, Al-Mahala, os níveis efetivos de sua organização e desenvolvimento político, a presença ou ausência de coordenação nacional entre todos esses setores estratégicos com os trabalhadores urbanos do Cairo (concentrados sobretudo no setor de serviços), e pensar em termos de classe quais as perspectivas e quais os obstáculos políticos para que a classe operária possa elevar-se aos novos desafios históricos lançados pela mobilização revolucionária das mais amplas massas do povo; longe de fazer esta análise marxista para verificar quais as vias para que a classe operária possa dessa maneira canalizar as aspirações democráticas das massas e oferecer a elas um Estado de novo tipo, baseado nos organismos de auto-organização operária e popular, longe de tudo isso, nosso autor se limita a jogar com as palavras e chamar, talvez com alguma licença poética, a própria Praça Tahrir de “início de duplo poder” [9].
Não estivesse enquadrada no marco estratégico equivocado que debatemos ao longo desse artigo, quiçá seria mesmo o caso de uma mera “licença poética”, ou uma analogia imprecisa, sem maiores consequências políticas. Mas o passado e o presente da corrente morenista nos dão todos os motivos para duvidar. E temos que fazê-lo, no interesse da definição marxista das novas tarefas colocadas para o proletariado mundial pelos acontecimentos no Egito e no mundo árabe, que incluem também para nós, em meio ã passividade que nos cerca no Brasil, tirarmos lições e nos prepararmos para as próximas etapas da luta de classes, que mais cedo ou mais tarde também se abrirão em nosso próprio país.
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