Por André Augusto
As raízes dos desequilíbrios no Egito têm uma origem profunda, liberando a energia de contradições acumuladas em décadas, e começam a mostrar que nem mesmo a válvula de “transição” do Conselho Supremo das Forças Armadas se encontra ã altura de conter.
No último dia 10 de outubro as Forças de Segurança da Junta Militar responderam com uma virulenta represália estatal, aparelhada com munição de guerra e tanques militares, aos protestos de setores cristãos que se mobilizavam contra a negligência do governo em aplacar as crescentes tensões sectárias contra igrejas coptas (seita cristã no Egito). O saldo foi de 25 mortos, 300 feridos e a imposição do toque de recolher durante a madrugada. O rechaço ã perseguição aos setores cristãos é uma demanda legítima levantada por grande parte da população, e abriu uma crise política importante, culminando no pedido de renúncia de ministros eminentes do governo de transição.
O massacre desse “domingo sangrento” no Cairo é mais um episódio na série de embates da população contra todos os fios de continuidade que a Junta mantém com a ditadura de Mubarak. As demandas democráticas estruturais não foram atendidas (sequer as formais) e se força por afastá-las do horizonte político das massas, que não suportam mais a deterioração de suas condições de vida. A derrubada do ditador abriu uma série de contradições, uma vez que ela se deu sem alavancar conquistas no campo da luta contra a opressão pelo imperialismo e a questão da terra – isso se explica pelas debilidades do fator subjetivo das massas, pela ausência de protagonismo operário e de sua vanguarda revolucionária organizada em partido. No entanto, o que acontece agora é que essas contradições assumiram uma transcendência política singular, quando milhares de egípcios assaltaram a embaixada israelense no Cairo e forçaram a fuga do embaixador sionista.
Este salto no processo egípcio constitui um marco de progressão importante e nos remete a uma questão vital: o desenvolvimento da movimentação da classe trabalhadora. Numa situação assim tão convulsiva, em que o Conselho Supremo tem de tomar medidas para reforçar a lei de emergência, tem de perseguir implacavelmente os trabalhadores “culpados” por invadirem a embaixada israelense e enviá-los aos tribunais militares, além de apertar o nó nas leis que declaram ilegal o direito de greve, que a atuação política da nossa classe é o fiel da balança.
As greves em curso marcam o passo para uma nova fase com maior protagonismo operário?
O momento atual no Egito está impregnado pela continuidade e ampliação das greves operárias que se destacaram no período de 2006 a 2008.
A produção industrial egípcia foi profundamente golpeada pela enorme proporção de trabalhadores demitidos de seus postos desde janeiro. O primeiro trimestre de 2011 observou uma fuga de investimento estrangeiro direto do país no valor de U$163 milhões (sendo que, no último trimestre de 2010, houve uma entrada líquida de investimentos que superou os U$656 milhões). O setor de turismo, que sozinho é responsável por um em cada sete postos de trabalho e compõe 11% do PIB egípcio, foi prejudicado. A média anual das viagens internacionais com destino ao país caiu 46%, o que custou ao Egito U$2 bilhões. Some-se ã fuga de capitais uma taxa inflacionária de 80% no preço dos alimentos desde janeiro – um dos estopins para os processos revolucionários nos países árabes –, a entrada anual de 700 mil jovens egípcios num mercado incapaz de absorver esse volume de força de trabalho, combinado com 40% da população vivendo abaixo da linha de pobreza – é uma conjuntura social e política de uma bomba-relógio.
O fato de os padrões de vida e de trabalho da massa egípcia não terem melhorado em praticamente nada se soma ao aprofundamento da crise econômica mundial, o que abriu fissuras políticas difíceis de serem cicatrizadas entre o governo de transição e os trabalhadores. A prova incontestável disso se reflete na abrangência nacional dos conflitos operários. Desde o final do Ramadã uma onda de greves varreu o Egito, envolvendo centenas de milhares de trabalhadores, incluindo professores, médicos, enfermeiras, funcionários do transporte público, controladores de vôo, portuários do Canal de Suez e os operários da indústria têxtil.
Os professores entraram em greve – pela primeira vez desde 1951 – reivindicando melhores salários e condições de trabalho, assim como exigiram a renúncia do Ministro da Educação, Ahmed Moussa. 46 mil escolas empregam 1,5 milhões de professores, donde 80% estavam paralisados e ameaçavam o fechamento do ano letivo. A Junta Militar conseguiu, trabalhando lado a lado com o governo interino do primeiro-ministro Essam Sharaf e o Sindicato Independente dos Professores, encerrar ã força a paralisação, com oficiais do governo ameaçando repetidamente os grevistas com demissão e encarceramento. Por sua vez, milhares de motoristas do transporte público, mecânicos e cobradores de ônibus marcharam no Cairo exigindo incremento salarial e a derrubada dos dirigentes da Autoridade dos Transportes Públicos. Os operários da fábrica estatal Fiação e Tecelagem de Al-Mahalla, a maior do Egito, que emprega 24 mil trabalhadores, lançaram declarações públicas propondo greve geral no setor se as exigências contra a privatização da fábrica e contra a precarização do trabalho não fossem atendidas. Isso obrigou o governo de transição a fechar um acordo de concessões com representantes da fábrica e da Federação Sindical Independente do Egito, federação nascida da luta dos trabalhadores em rechaço ã federação ligada ao regime de Mubarak. Ainda em setembro, 4 mil operários fecharam o único porto egípcio de posse privada no Canal de Suez. O que se evidencia com acento particular nesses processos é a ofensiva da Junta Militar em reforçar as leis anti-greve e anti-protesto. Daily News Egypt escreve sobre o estado de atordoamento nos diversos setores acerca do Exército: “As mortes há uma semana aprofundaram a desconfiança em relação aos militares por parte do setor ‘revolucionário’, os liberais politicamente ativos e os ativistas de esquerda, que vêm conduzindo os protestos contra o domínio dos generais há meses. São cada vez mais significativos os chamados para que o Exército deixe o poder” (17/10). As fricções e centelhas geradas pela luta de classes no país aceleram a experiência da vanguarda dos trabalhadores.
O “preço” da primavera árabe a descontar: crise econômica e luta de classes
Durante o ano, Tunísia, Egito, Líbia, Síria, Bahrein, Iêmen, viram juntos 20.6 bilhões de dólares serem eliminados do seu PIB, além de sofrerem prejuízos de 35.3 bilhões de dólares nas suas contas públicas, por causa da redução da arrecadação e dos aumentos de gastos.[1]
Não é um elemento secundário compreender que o principal fator que motoriza o desgaste político do Conselho Supremo do Egito é a onda de greves, e que mesmo que exitosamente desativadas pelo governo e por ora contidas, o expediente das concessões precárias revelou-se incapaz de reverter a localização crítica em que se encontra o regime, e não apenas aos olhos das massas. As tensões políticas em ebulição – também relacionadas ao conflito Irã-Arábia Saudita –, o alargamento das greves combinados ã turbulência no mercado global fazem com que a própria burguesia tenha de buscar medidas que pressionem a junta a acelerar a saída da cova econômica em que está sepultada. A mídia burguesa protesta, como o Daily News Egypt, que escreve: “A economia está em primeiro lugar. Se as greves continuam, o crescimento será menor, mais cedo do que se espera” (25/9).
Como aparece com a repressão aos coptas, a política do imperialismo e da Junta Militar aponta a uma tendência de insuflar enfrentamentos sectários controlados para depois lançar mão de medidas bonapartistas contra todos os setores em movimento, principalmente contra a vanguarda anti-sionista e os trabalhadores. Essa é uma política arriscada, que pode sair ao controle com as explosões operárias em luta contra a repressão e as violações burguesas, mas também com o avanço de compostos políticos mais elevados, como o anti-imperialismo, o fim do bloqueio ã Gaza e dos acordos Egito-Israel, que a Junta só faz por honrar.
Como escrevemos no número anterior do Palavra Operária, a relação de forças entre as classes ainda não foi experimentada até o final, não foram gastas e acumulam-se com as dificuldades próprias da dispersão e dos choques espontâneos com as forças reacionárias do governo, pela inexistência de um partido proletário revolucionário que possa organizar essa experiência e traduzi-la no programa e métodos de ação. No entanto, a dinâmica de maior protagonismo operário abre a possibilidade de que se aprofunde a combinação da luta das massas contra a exploração econômica com sua luta política contra a opressão nacional.
20-10-2011
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