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Líbia após a morte de Kadafi. Segue a polêmica na esquerda
por : Eduardo Molina , Graciela López Eguía

02 Nov 2011 | O processo líbio, em especial a partir da intervenção da OTAN, abriu um amplo debate na esquerda internacional. A sangrenta morte de Kadafi fez retomá-lo em torno do balanço do sucedido até agora e a política a ser levantada pelos marxistas.

O processo líbio, em especial a partir da intervenção da OTAN, abriu um amplo debate na esquerda internacional. A sangrenta morte de Kadafi fez retomá-lo em torno do balanço do sucedido até agora e a política a ser levantada pelos marxistas. Por um lado, o presidente Chávez, o castrismo e outros setores de matriz nacionalista ou stalinista apoiaram abertamente Kadafi - Chávez o qualificou de "mártir da luta antiimperialista" - embora mantivesse uma brutal ditadura sobre o povo líbio e há anos girou a uma aberta colaboração com o imperialismo. Esse bloco esquece os mais elementares critérios de classe e democráticos para se localizarem na trincheira do ditador conforme alianças "geopolíticas" que vão contra a rebelião das massas em curso no mundo árabe e não tem nada de "antiimperialista". Por outro lado, setores da centro-esquerda e da intelectualidade avaliam (mesmo que ás vezes "criticamente") a intervenção da OTAN sob argumentos humanitários, atuando como "pata esquerda" do plano imperialista com retórica "democrática" (para uma crítica destas posições ver nota em LVO 420 de 31/03/2011)

O PTS, a LER-QI e a nossa corrente internacional, a Fração Trotskista (Quarta Internacional), desde o principio defendemos uma clara política pela derrubada revolucionária de Kadafi, contra toda a ingerência imperialista na Líbia e pela solidariedade internacional com o desenvolvimento da mobilização de massas. Dizíamos em nossa declaração de 22/03/11:

“Os marxistas revolucionários colocamos claramente que o imperialismo não intervêm para que triunfe o levantamento popular contra Kadafi, senão para tratar de impor um governo títere a serviço de seus interesses, como fez após a invasão no Afeganistão e no Iraque. Tão pouco a saída é, como colocou Chávez e outros "progressistas", se subordinar a Kadafi que não só se transformou em um ditador pró-imperialista, como está em uma guerra contra-revolucionária para esmagar o levantamento popular que colocou em questão seu domínio, como parte dos levantamentos na região. A única saída progressista para o povo líbio é lutar energicamente tanto contra a intervenção imperialista como para derrotar ã reacionária ditadura de Kadafi. Nesta luta os aliados do povo líbio são os trabalhadores e os setores populares que se levantaram no Norte da África e em outros países árabes contra os regimes ditatoriais e as monarquias pró-imperialistas; os trabalhadores, os jovens e os milhões de imigrantes que nos países imperialistas podem boicotar a política belicista de Sarkozy, Zapatero e companhia; e o conjunto dos explorados de todo o mundo. Abaixo a intervenção militar imperialista na Líbia! Abaixo Kadafi. Por um governo operário e popular!".

Em numerosas notas do LVO e em nossa pagina da internet temos seguido analisando passo a passo o processo e debatendo com diversas posições na esquerda. Recentemente, a LIT-QI, a corrente liderada pelo PSTU no Brasil, publicou uma nota "Polemica com a Fração Trotskista (PTS)" - em sua Revista Correio Internacional n°6, em que oferece a oportunidade de aprofundarmos esse debate. As diferenças na esquerda internacional também se refletem entre as forças que conformamos a FIT (Frente de Izquierda y de los Trabajadores). Assim, a Izquierda Socialista (membro da UIT-QI) afirma que se produziu o "triunfo de uma revolução democrática" ("A revolução árabe e o fim de Kadafi", por Miguel Sorans, 22/10/2011) e consideram um fator completamente secundário que a queda do ditador tenha sido produzida mediante intervenção da OTAN.

Muitas das posições da UIT-QI e da LIT-QI são similares, pois ambas compartilham uma lógica de "revolução democrática" herdada de Nahuel Moreno, de quem se reivindicam continuadores. Também nos fazem criticas parecidas, caindo em um amalgama similar para fazer crer que levantaríamos uma política pró-Kadafi. Em palavras da IS: "O PTS parte de duas definições equivocadas, que também levantam as correntes chavistas, muitos Partidos Comunistas e outros setores que se reivindicam de esquerda ou antiimperialistas: 1) ’as forças rebeldes’ são a ’tropa terrestre da OTAN’ e 2) a caída de Kadafi ’é um triunfo da política das potencias imperialistas’", recurso polêmico idêntico ao da LIT-QI. Por isso, neste texto, se bem que esteja dirigido a debater centralmente com a LIT-QI, comentaremos também algumas definições de IS (recomendamos também a leitura de "Novamente sobre a questão Líbia: Até quando a LIT-PSTU seguirão insistindo nos seus erros?" de Simone Ishibashi e outros aportes ao debate de nossos companheiros brasileiros em WWW.LER-QI.ORG ou em WWW.FT-CI.ORG

A LIT-QI e sua "unidade de ação" entre as massas e o imperialismo

A LIT-QI publicou uma nota intitulada "Grande vitória do povo da Líbia e da revolução árabe" (24/08/11), festejando o triunfo sobre Kadafi, imposto pelas bombas da OTAN e pela intervenção política direta do imperialismo europeu liderado pelo presidente francês, Sarkozy, que conseguiu cooptar a liderança rebelde da CNT. Nesse texto, mesmo denunciando o imperialismo e sua intervenção na Líbia, diz que o imperialismo "se viu obrigado a intervir militarmente para derrubar Kadafi. Mas não pelo fato de ele ser um "antiimperialista", como dizem Chávez e os irmãos Castro. Há mais de dez anos Kadafi começou a entregar os recursos petrolíferos ás multinacionais norte-americanas e européias. Para o imperialismo, o problema é que Kadafi já não podia estabilizar o país em meio a uma insurgência popular armada. A contradição é que, no terreno militar, existiu uma unidade de ação entre o imperialismo e as massas para derrubar Kadafi, mas com objetivos totalmente opostos". Temos criticado esta última definição de "unidade de ação" ao que nos contestam que "na política uma unidade de ação é um acordo. Defendê-lo ou concretizá-lo implica em um chamado e exigências no marco desta unidade. Nós, da LIT-QI, nunca chamamos o imperialismo a fazer unidade de ação com as massas para derrubar Kadafi. Outra coisa é que, na realidade, esta unidade foi realizada no campo militar" ("Revolução ou golpe. A combinação de uma rebelião popular e uma intervenção militar da OTAN divide a esquerda mundial"). O autor desta nota, A. Astuto, distorce a nossa crítica, pois nunca dissemos que a LIT-QI pediu intervenção imperialista como fizeram alguns "progressistas", mas não responde: a LIT-QI considera que tal "unidade de ação entre as massas e o imperialismo" foi progressista ou não? Esta questão é tanto ou mais relevante porque a LIT-QI chamou, em outras ocasiões, para a unidade de ação, inclusive, o imperialismo.

No caso do golpe de Honduras em 2009, afirmou que "é imprescindível a exigência de ruptura das relações com o governo de fato dos governos de todos os países que ainda não o fizeram. E, especialmente, a exigência de boicote econômico, principalmente por parte dos Estados Unidos – principal comprador de produtos hondurenhos (...)" (Correio Internacional N ° 151, agosto de 2009). Ou seja, chegam a fazer uma exigência incrível ao governo de Obama, em nome da unidade de ação "anti-golpista", apesar de Honduras ser um país semicolonial oprimido pelo imperialismo dos EUA, que sustentava Micheletti e os militares!

A "unidade de ação" da OTAN e das massas que a LIT descobre na Líbia esconde que a intervenção imperialista foi guiada em 100% com o objetivo de desviar, enganar e derrotar a sublevação popular para impedir que um processo revolucionário em desenvolvimento saísse do controle e não só derrotasse Kadafi senão que superasse a direção colaboracionista da CNT. Essa intervenção expressou de maneira particular, em um quadro assinalado pela abertura da guerra civil, a estratégica de contra-revolução "democrática" com a que o imperialismo atua frente ao processo revolucionário árabe, para tentar implantar "transições" controladas a regimes democrático-burgueses de onde seus velhos agentes foram derrubados (como Egito e Tunísia), ou algumas "auto-reformas" cosméticas a conta-gotas para que seus agentes conservem o poder.

Cremos que a intervenção da OTAN foi como um todo e desde o principio absolutamente contra-revolucionária e falar de uma suposta "unidade de ação" nos termos que faz a LIT-QI expressa uma adaptação ã retórica democrática predominante que leva a capitular frente aqueles que elogiam abertamente as fantasmagóricas virtudes democráticas do imperialismo, como faz boa parte da esquerda e dos "progressistas", especialmente na Europa. Por exemplo, quando os representantes do Bloco de Esquerda português votaram no Parlamento Europeu em apoio a resolução sobre a Líbia "do lado da OTAN, dos EUA e da Inglaterra na aposta de uma intervenção militar estrangeira" (www.larepublica.es, 11/03/11) o grupo Ruptura/FER (membros da LIT-QI) que integra o Bloco de Esquerda, não fez uma grande campanha de denúncia a essa capitulação (tampouco a LIT-QI), apesar do fato de que o Bloco Esquerda também votou pelo Plano da União Européia e do FMI que impunha os ajustes contra os trabalhadores e o povo grego.

Do ponto de vista metodológico, a análise da LIT-QI rompe a relação entre o aspecto militar da intervenção do imperialismo e seu aspecto político, desvalorizando as consequências contra-revolucionárias da cooptação da CNT, ao que não dá a menor importância. Isto é produto de seu método unilateral, objetivista, de analisar a realidade, diferente do método marxista que estabelece uma relação dialética entre os fatores objetivos e os subjetivos, cuja influencia nos resultados não se pode ignorar.

Opinamos que as operações militares, tanto como as medidas econômicas tomadas pela Europa e pelos EUA, são inseparáveis de elementos políticos de enorme importância como a possibilidade de Obama, Sarkozy e Cameron e suas forças de apresentarem-se como "amigos do povo líbio" para legitimar sua intervenção, e a cooptação da direção rebelde, a CNT pelo imperialismo, o que, por sua parte, viabilizou a redução das forças referenciadas neste a um papel subordinado aos planos imperialistas.

A LIT "embeleza" a CNT, agente do imperialismo

O apoio da CNT a intervenção militar da OTAN, a chegada de vários agentes da espionagem, os serviços e militares franceses, ingleses, norte-americanos, etc, a "colaborar" com ela e suas milícias, e as inúmeras concessões econômicas feitas aos imperialistas "aliados" (como a promessa publica de entregar um terço do petróleo aos franceses) expressam a conversão da CNT em um claro agente do imperialismo. Kadafi era um agente do imperialismo e rendeu a este os mais estimados serviços nos últimos anos, o que não nega que haviam contradições e que em certo momento deixou (Kadafi) de ser funcional as necessidades imperialistas, pelo que as grandes potências lhe "soltaram a mão" e passaram a apoiar seu afastamento, tal como vimos. Porém, agora o imperialismo conta com o CNT como um agente abertamente colaboracionista, tanto ou ainda mais pró-imperialista que Kadafi, afirmação nossa que irrita profundamente a LIT-QI, pois contradiz todo seu esquema de triunfos "colossais" sem contradições importantes. A CNT, integrada majoritariamente por ex-funcionários kadafistas (sua principal figura hoje é um ex-ministro do ditador), líderes tribais, islamitas e burgueses opositores, colocou o reconhecimento obtido das potências ao serviço de reconstruir uma "autoridade", alimentando ilusões nos milhares que se levantaram em Bengasi e outras cidades de que o imperialismo pode atuar a favor dos interesses das massas populares. Tem impedido o quanto pôde a auto-organização e o armamento das massas, procurando reunir os fios de direção e da autoridade em suas mãos e impedir que se desenvolva qualquer tipo de centralização democrática da luta. E até tem alimentado os preconceitos xenófobos contra os trabalhadores imigrantes que constituem uma parte decisiva do proletariado líbio, ajudando a sua desorganização e dispersão.

Utilizamos a metáfora de "infantaria da OTAN" para a subordinação das milícias nos referindo ao CNT, a "ajuda", "conselhos" e orientação imperialista, nos remetendo na comparação ao sucedido em Kosovo, quando o levantamento das forças que conformaram a ELK contra a dominação sérvia que foi aprisionada pelo apoio deste aos bombardeios aliados a Belgrado, subordinando-se ao plano imperialista e perdendo seu caráter progressivo. No caso líbio, a sangrenta repressão das forças de Kadafi ajudou a afogar a inicial desconfiança e rechaço de setores rebeldes ã "ajuda" imperialista, e a justificar que a maioria da direção da CNT tenha se jogado nos braços da OTAN.

As forças da OTAN têm atuado "guiando" as ações das milícias rebeldes, intervindo para impedir sua derrota nas portas de Bengasi em março, fazendo milhares de incursões aéreas para debilitar e desarticular o aparato militar de Kadafi (com um enorme custo humano e material), enviando equipes de tropas especiais, inteligência, treinadores, etc., lhes abrindo caminho como se deu até o momento mesmo do acerto de contas de Kadafi (aviões da RAF atuaram para impedir que ele fugisse em um comboio de veículos), etc. Na ausência de um pólo independente da CNT e do imperialismo com influência de massas, não é de ninguém estranhar, com exceção da LIT-QI, que o levantamento popular haja conduzido ao surgimento de um governo profundamente submetido ás potências imperialistas. Não contestaremos aqui a todas as manobras polemicas de baixo nível da LIT-QI (como a de que para nós seria preferível que Kadafi seguisse no poder), seria muito tedioso e qualquer leitor conhecedor de nossas posições poderá tirar suas próprias conclusões. Mas há um ponto que chama a atenção. Discutindo contra nossa caracterização da CNT, e em auxilio de sua posição, a LIT-QI retoma os exemplos de Cuba (a revolução de 1959) e da Revolução Russa de fevereiro de 1917. Porém, em Cuba, o M-26 nunca considerou pedir ou aceitar que participassem os barcos, marines e aviões ianques para "salvar vidas civis" da repressão batistiana. E na Rússia, os bolcheviques denunciaram intransigentemente a cumplicidade dos governos de Lvov e, depois, de Kerensky com os imperialistas aliados para prosseguir a guerra e derrotar assim a revolução. Assim, tais exemplos mostram exatamente o contrario do que a LIT-QI quer fazer crer... Qualquer movimento de libertação nacional ou revolução tem o direito de utilizar as contradições inter-imperialistas e armar-se como podem, porém não é possível reconhecer a CNT nenhum direito a endossar a intervenção econômica, militar e política da OTAN na Líbia sob o pretexto de acabar com a ditadura kadafista, para assim converter-se em seu agente e peão. (por isso, temos polemizado também com quem, como a IS, exigiam armas para os rebeldes, sem delimitar esse problema crucial. Ver, por exemplo, "Armas para quem?" no LVO 420 31/03/11). A CNT é um governo títere que agora se dispõe a reorganizar o Estado, reconstruir o Exército e recuperar a economia das mãos da "ajuda" imperialista cujos objetivos se delinearam nas recentes conferencias e reuniões internacionais desde onde as potencias desenharam o futuro líbio. E reedificar um regime viável mediante um calendário pautado pelo imperialismo desde uma "transição política" que duraria uns dois anos... Porem que, segundo já antecipam os porta-vozes da CNT, aponta a construção de um regime fundado na sharia islà¢mica, como consumação dos planos dirigidos a desviar as aspirações democráticas populares enquanto a Líbias e converte em um "território de caça" para as transnacionais petroleiras, mais abertamente ainda do que já era com Kadafi (que havia entregado generosas concessões a ENI italiana e outras transnacionais, etc.)

A LIT-QI e o "mal menor" democrático

Não só há que ter uma definição precisa do "campo militar" em que posicionar-se. Tanto ou mais importante é ter uma posição clara no "campo político". Ou seja, não pode se perder de vista nem por um minuto a necessidade da independência política da classe trabalhadora, um problema central de estratégia. A LIT-QI só enxerga dois campos: o kadafista e o antikadafista. Porém ambos, ainda que se enfrentando miltiarmente e com distintos projetos políticos, são dois campos burgueses inimigos da revolução que dava seus primeiros passos na rebelião e na guerra civil. Por isso, posicionar-se ao lado dos rebeldes significa desde o primeiro momento combater consequentemente e com os métodos revolucionários a Kadafi, tanto quanto a direção rebelde e a intervenção da OTAN. Isto não tem nada a ver com adaptar-se a "unidade de ação" que a LIT-QI vê entre o imperialismo e as massas, nem deixar para "mais adiante" a denuncia da CNT. Como nos ensinou Trotsky, há que lutar contra os ditadores com os métodos da revolução operaria e socialista internacional, se separando taxativamente dos agentes da burguesia "democráticos" nacionais e estrangeiros.

Porém, vejamos como explica a LIT-QI as tarefas e as alianças na luta contra o ditador na Líbia: "Neste processo, acontece uma unidade de ação muito ampla contra a ditadura, da qual participam trabalhadores, setores populares e, inclusive, com a adesão de setores burgueses, mais oficiais e tropas desertoras das forças armadas, e agora se agregam, também, altos funcionários do regime. Está claro que é necessária a mais ampla unidade de ação com todos os setores, inclusive os burgueses descolados do regime, para acabar com esta ditadura genocida entrincheirada. (...) É evidente que a tarefa decisiva da revolução agora é derrotar as forças da ditadura em Trípoli e derrubar Kadafi. E, para isso, é fundamental unificar solidamente todas as forças sociais, políticas e militares que sustentam a luta. (...) Isto não significa, no entanto, que todos os que participam da luta tenham os mesmos interesses ou pensem nas mesmas medidas para quando, depois da queda de Kadafi, se tenha que construir o novo poder para a nova Líbia. Para defender seus interesses, os trabalhadores necessitam de uma organização independente dos burgueses de sua própria direção." (Líbia a sangre e fuego, por G. Massa, 24/02/11, em www.ltci.org)

É que a LIT-QI se move por uma semi-concepção de campos e etapas em desacordo com o trotskismo. Enxerga campos diferenciados por regimes: o ditatorial de Kadafi e o antiditatorial e "democrático" no qual com interesses e dinâmicas diversas atuam as massas, a CNT, e de quebra, a OTAN, e vê uma primeira etapa (todos juntos contra a ditadura) como a mais "amplíssima unidade de ação", pois a tarefa seria unir "todos contra Kadafi", pelo que, só mais adiante, cumprida essa tarefa, se constituiriam em uma ameaça determinante a CNT e a intervenção imperialista. Isto tem sérias conseqüências programáticas, pois, nesta primeira etapa o programa para a LIT-QI é: Abaixo Kadafi! (a consigna que mobiliza?), mas sem levantar consequentemente um programa transicional articulado ao redor dessa demanda (unindo as demandas mais sentidas dos trabalhadores e do povo, começando pelas demandas democráticas formais - abaixo a ditadura -, estruturais - fora o imperialismo -, e incorporando as demandas sociais - trabalho, salário, etc. - junto ás "organizativas" - comitês, milícias, conselhos e soviets), pois justamente, fazê-lo iria contra essa "unidade de ação" tão ampla que propõe. No entanto, para os marxistas, não se trata só de derrubar uma ditadura, mas de como se derruba, com que métodos e que classes conquistam autoconfiança e autoridade frente a população, e isso deve se sintetizar em um programa de ação levantado, com o objetivo de fortalecer e unificar as fileiras operarias e conquistar o máximo de independência em sua auto-organização, armamento e consciência, e disputando a hegemonia na aliança de massas, inclusive frente a eventuais "aliados", em suma, como já desde as fases preparatórias e mais ainda nos começos de um processo revolucionário, a classe trabalhadora pode avançar em sua preparação para as tarefas da revolução.

Ausência de uma estratégia de classe

Para a LIT-QI não existe o problema de como disputar já desde os primeiros momentos uma política consequente para fortalecer o "terceiro campo" político-social - um pólo operário e de massas politicamente independente e revolucionário. Isto não é um mero problema "tático", secundário para a marcha de um processo revolucionário em nossa época. Pelo contrario, é uma necessidade fundamental que demanda uma estratégia consciente para favorecer seu desenvolvimento. Os trotskistas consideramos que somente se a classe trabalhadora se ergue como sujeito social e politicamente independente, construindo sua hegemonia sobre o povo sublevado, haverá uma garantia estratégica de derrotar o plano imperialista e assegurar, com a tomada do poder pelo movimento, a completa satisfação das aspirações democráticas populares, a liberação nacional e o começo de uma transformação socialista na Líbia.

Por isso, buscamos como dar expressão teórica, programática e política consequente a necessidade de fortalecer o movimento operário em todas as fases da mobilização, combatendo politicamente os agentes da burguesia e o imperialismo (sejam democratas, islamitas, etc.) em todos os processos que intervêm para manipulá-lo, derrotá-lo e desviá-lo e ajudar, pelo contrario, a avançar até sua plena independência política e preparar-se subjetivamente para as tarefas que colocam a revolução. Porem, a LIT-QI (e também a UIT-QI) "naturalizam" o fato de que as mobilizações e levantamentos tenham sido espontâneos, populares, sem centralidade operária, sem organismos centralizados das massas para a luta política, sob a direção burguesa colaboracionista (em alguns casos com o peso de suas instituições, como ocorre com o Exército no Egito), e inclusive com intervenção direta do imperialismo, como na Líbia, e que não haja fortes alas operárias e socialistas para disputar a alternativa. Consideram os grandes acontecimentos de massas como expressão geral da crise do capital e da maturidade das condições objetivas, porém não pensam em função da experiência estratégica do proletariado. Sobre esse empirismo "realista" se esconde um profundo ceticismo com a potencialidade revolucionaria do proletariado. Nós consideramos que a classe trabalhadora é a única classe consequentemente progressista e revolucionária e que, quando alcança sua independência da burguesia, desenvolve e exibe não só sua combatividade, senão sua criatividade e força moral no processo revolucionário. O desdém pelo problema estratégico do papel consciente que deve e pode assumir o proletariado nos processos revolucionários só evidencia sua ausência de estratégia enraizada no proletariado como classe revolucionaria fundamental de nossa época.

Isso se expressa também, em que pese na sua caracterização de que na Líbia há um processo revolucionário que alcança triunfos colossais, não levanta uma política soviética (o desenvolvimento e centralização de formas democráticas de frente-única para a luta das massas que pode transformar-se em duplo poder), e não coloca claramente uma consigna de poder, além de ocasionais enunciados de propaganda. Por sua parte, IS também nos critica "a consigna abstrata e universal de "lutar por um governo operário e popular" (EL Socialista 201, "Debate en la izquierda")", mas não se preocupa em elaborar e levantar consequentemente uma política de poder operário. Sem entrar na discussão das formas concretas, táticas, em que poderia materializar-se esta política, para nós, a posição de combate pela auto-organização centralizada, independente da CNT e baseada no armamento popular, vem unida a posição de um governo operario e popular sobre essa base, pois é a única alternativa revolucionária frente ás duas frações burguesas (Kadafi e a CNT-imperialismo)

A razão de fundo: “Revolução democrática” ou “Revolução Permanente”?

A LIT-QI fica escandalizada porque afirmamos que “Não necessariamente a derrota de um governo reacionário ou a queda de uma ditadura significam um avanço para a revolução operaria e socialista”. Para os seus esquemas tranquilizadores, desde onde a primeira estação seria a “derrubada da ditadura”, que deve se seguir sem dúvida uma segunda estação “socialista”, isso é uma heresia sectária. Mas não é culpa nossa se para sustentar tal “teoria” devem negar fatos básicos, como os ensinamentos de dezenas e dezenas de processos revolucionários desviados e derrotados. Por exemplo, os companheiros tomam os processos de 1989. Mas a rebelião dos operários russos, polacos, etc., contra as ditaduras das burocracias stalinistas não conduziu – e já se passaram 20 anos!!! – a aprofundar a revolução socialista senão a governos restauracionistas e a reintrodução do capitalismo nesses países. O marxismo tinha razão uma vez mais ensinando a distinguir forma política do conteúdo social da dominação. O começo dessas revoluções foi afogado, abortado, sob direções pró-capitalistas. Quer dizer que esses levantamentos de massas não eram progressistas? Não, quer dizer que ao cair sob a hegemonia de direções pró-burguesas foram levados a derrotas, impondo-se a contra-revolução com roupagem democrática. No caso latino-americano, a queda das ditaduras no inicio dos 80, como na Argentina, Bolívia e outros países, derivou na constituição de regimes democráticos burgueses que demonstraram sua utilidade para recompor a dominação burguesa e desviar os processos de mobilização - ás vezes muito importantes – durante mais de duas décadas. As democracias que substituíram esses regimes odiados se mostraram instrumentos de grande utilidade para manter por décadas o domínio do capital. A LIT-QI (e a UIT-QI) não renegam a “Revolução Permanente” em geral... Porém, a distorcem grosseiramente, pois compartilham da concepção de Nahuel Moreno que criticava que: “O que Trotsky não apontou, embora tenha feito um paralelo entre stalinismo e fascismo, foi que também nos países capitalistas era necessário fazer uma revolução no regime político: destruir o fascismo para conquistar as liberdades da democracia burguesa, ainda que fosse no terreno dos regimes políticos da burguesia, do Estado burguês” (Nahuel Moreno, Revoluções do séc. XX) para assim elaborar uma teoria semi etapista da revolução democrática que separa uma primeira fase de troca de regime político (a queda das ditaduras e a conquista da democracia burguesa) que serviria de ante-sala a uma segunda fase posterior desde onde se cumpririam as tarefas econômico-sociais da revolução. Porem, já Trotsky advertia contra toda analise simplista desse tipo, referindo-se a Revolução Alemã de 1918, quando foi derrubado o Kaiser “...é evidente que não foi o coroamento democrático da revolução burguesa, senão a revolução proletária decapitada pela social-democracia ou, para dizer com mais precisão, uma contra-revolução burguesa obrigada pelas circunstancias a revestir, depois da vitoria obtida pelo proletariado, formas pseudo-democráticas” (L. Trotsky, a Revolução Permanente, edit. Yunque, pág 29). Não podemos nos referir aqui as dezenas de casos que corroboram esta análise desde onde a contra-revolução burguesa e imperialista utilizou formas pseudo-democráticas para derrotar a revolução utilizando de sua imaturidade subjetiva. No entanto, estas lições são esquecidas no esquema conceitual da “revolução democrática”, que constitui uma adaptação ã democracia burguesa e seus mecanismos, aos que o imperialismo apela hoje diante dos processos em curso não somente na Líbia como em todo o cenário da rebelião árabe (Tunísia! Egito!), procurando impedir o seu desenvolvimento no sentido revolucionário. As tarefas da revolução não se podem limitar na troca de regime político, pois, se bem que a derrubada de um ditador é uma tarefa elementar, isolada, abre a possibilidade de manobras da classe dominante para conter ou desviar o ascenso revolucionário com reformas “pseudo-democraticas”, como dizia Trotsky. Nós reivindicamos a plena vigência das teses que afirmam: “Para os países de desenvolvimento burguês retardatário e, em particular, para os países coloniais e semicoloniais, a teoria da revolução permanente significa que a solução verdadeira e completa de suas tarefas democráticas e nacional-libertadoras só é concebível por meio da ditadura do proletariado, que assume a direção da nação oprimida e, antes de tudo, de suas massas camponesas” (L. Trotsky, A Revolução Permanente – Teses). Assinalamos ainda que a dinâmica objetiva da revolução que a LIT-QI e outras correntes convertem em valor absoluto, é inseparável da dinâmica das “premissas subjetivas”. A concepção simplista de uma “revolução qualquer com uma direção qualquer” esta em desacordo com o trotskismo. E afirmar isso não tem nada a ver com o sectarismo que, por sua vez, “superestima” o lado subjetivo até depreciar a realidade com suas contradições. Nós sustentamos com Trotsky que no final das contas, nos momentos chaves, o problema da consciência e organização do proletariado, que em ultima instancia se sintetizam na existência ou não de um partido revolucionário, serão decisivos: “(...) quando as premissas objetivas estão maduras, a chave de todo o processo histórico passa para as mãos do fator subjetivo, é dizer, do partido. O oportunismo que vive consciente ou inconscientemente sob a influência da época passada se inclina sempre a menosprezar o papel do fator subjetivo, ou seja, da importância do partido revolucionário e de sua direção.” (Trotsky, A Terceira Internacional depois de Lênin, 1929). Neste sentido, o reagrupamento da vanguarda operária em torno de um programa e uma estratégia para vencer – ou seja, o desenvolvimento de uma direção revolucionária – é um problema vital para o destino final de qualquer processo revolucionário.

A modo de conclusão

A LIT-QI nos questiona: A queda de Kadafi foi uma vitoria das massas ou do imperialismo? O que ocorreu é progressivo ou regressivo para a revolução na Líbia e no mundo árabe? Não se pode falar tão alegremente neste caso particular, de “grande vitoria do povo líbio e da revolução árabe” e desdenhar das enormes complexidades da situação (indicamos a nota de C. Cinatti no LVO 450 para a análise da conjuntura líbia após a morte de Kadafi e suas perspectivas). Em primeiro lugar, o resultado provisório é altamente contraditório, pois o levantamento popular está subordinado ao imperialismo e esse se relocaliza não só na Líbia, apresentando-se como o guardião da “Revolução Democrática”, como frente ao mundo árabe em convulsão, para seguir implementando seus planos contra-revolucionários. Com isso, um processo progressivo em seu inicio pode terminar completamente deturpado se o plano imperialista e de seu agente, a CNT, conseguem se fortalecer na Líbia. Haverá que observar se impõe o plano imperialista ou se a profundidade da crise, o impulso das massas, o impacto de outros acontecimentos a nível regional e internacional impedem isto, e assim, pode seguir se desenvolvendo a luta de classes no sentido revolucionário. Por agora, é possível que, se muitos árabes festejaram a queda do ditador, também cresçam as ilusões na ‘ajuda’ imperialista, o que o imperialismo tratará de utilizar para fortalecer sua estratégia contra-revolucionaria em toda a região. E isto é um gravíssimo perigo para o futuro do processo revolucionário no mundo árabe. A luta por assentar as bases de partidos revolucionários a nível internacional, que se preparem para encarar as tarefas de uma etapa como a que abre a atual crise mundial, demanda um programa e uma estratégia que incorporem, entre outras experiências, também as lições da luta de classes no mundo árabe durante 2011 e, em especial, as do dramático processo líbio. Nessa perspectiva, a vanguarda não poderia tirar maior proveito das ambiguidades, inconsistência e adaptação que revelam as posições da LIT-QI.

 

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