Por Esteban Mercatante, PTS
A fuga de capitais concentra toda uma série de problemas da economia argentina que se mostram mais difíceis no novo contexto que está se configurando no quarto ano de crise internacional. Há meses, já se via como um problema que o governo vinha escondendo embaixo do tapete. Dias depois das eleições, as medidas tomadas para enfrentar a crise a puseram no centro das atenções. Soma-se a isso o anúncio de redução de subsídios, reconhecimento explícito do ajuste já sugerido no orçamento.
O fim da abundância de dólares
São vários os elementos que contribuem ã saída de dólares. O primeiro é a inflação. Há anos o aumento de preços vem golpeando um dos pilares do “modelo Kirchner”: o dólar caro. Preços mais altos significam que o dólar compra menos no país, é dizer que o peso argentino se valoriza. Já desde 2007 isso começou a projetar um grande problema ao empresariado. Se isso pôde ser contido, foi porque a moeda brasileira tendeu a valorizar-se durante esses anos, o que começou a mudar nos últimos meses. Pressionada pelo industriais, Dilma Roussef vem permitindo uma moderada queda do real.
Há além disso outros problemas, como o aumento explosivo das importações. Uma dos rubricas que mais cresce é a importação de combustíveis, para enfrentar a escassez de recursos energéticos no país, resultado de uma política complacente com o desinvenstimento empresarial. A política de Guillermo Moreno, de achatar as importações e obrigar aos importadores que exportem por um valor equivalente ao das compras que realizam no exterior, não tem aumentado a oferta exportadora. Mas não fez nada para impedir que vários empresários apresentassem como seu plano de exportação o que já foi exportado por outros.
Ainda que o valor das exportações segue sendo maior ao das importações, a brecha tem diminuído. Durante 2008 e 2009 o superávit comercial (segundo pilar da economia em tempos Kirchner) era tal que o governo pôde tolerar uma fuga de capitais superior ã atual, e ainda assim manter o nível de reservas do Banco Central. Hoje, isso já não é mais possível: a remessa de utilidades das empresas estrangeiras, o uso de reservas para pagar dívida e a fuga de capitais farão que este ano termine com uma caída no nível de reservas, restrição imediata durante os anos de governos Kirchner. Usar reservas para pagar dívidas tem agora um custo que antes não tinha. Isso golpeia o terceiro pilar do esquema econômico Kirchner, que é a disponibilidade de recursos fiscais. Ainda que o superávit fiscal é quase zero há vários anos, o crédito inter-estatal (com ANSES, PAMI, o Banco Nação, e especialmente com o Banco Central) permitiu disfarçar esse cenário. Se as reservas do BCRA (Banco Central da República Argentina) seguem se reduzindo, seu papel como credor será difícil de sustentar.
Desvalorização em disputa
Vários economistas explicam que a tentativa do governo de frear a fuga de dólares com um maior controle da AFIP (Administração Federal de Receitas Públicas, na sigla em espanhol) e aumentando a oferta ao fazer que petroleiras, mineiras e seguradoras tragam dólares, mas sem desvalorizar, é algo inconduzível. Os fatores mencionados acima mantêm a expectativa de desvalorização, e estas medidas só contribuem a ganhar tempo, mas sem mudar o panorama. A imprensa opositora tem se somado ao clamor por uma desvalorização.
Contudo, o contexto inflacionário torna difícil que perdure por muito tempo os benefícios que o governo e os empresários poderiam obter da desvalorização. O mais provável é que seu principal efeito seja acelerar a inflação. Há muitas experiências traumáticas na história econômica argentina. Por isso, não parece haver no momento uma firme decisão de impulsionar uma forte desvalorização do peso argentino.
Talvez será intuindo isso que os industriais da UIA (União Industrial Argentina) tem mostrado mais os problemas de “competitividade” e pressionando por essa saída desvalorizadora (enquanto operam também no mercado de câmbio), que muitos deles apostavam que se produziria depois das eleições.
Rumo ao enfrentamento
Depois de anos de atacar os que propunham o “enfrentamento” da economia, o governo parece finalmente estar disposto a fazer exatamente isso. Já mandou um orçamento que no total significa um aumento do gasto de 18%. Ninguém acredita que a inflação vai estar abaixo dessa cifra, e seguramente estará acima. Isto significa ajuste. O mesmo propõe para o setor privado como medida contra a inflação: aumento de salários com teto em 18%, significa dizer uma queda do salário em termos reais, como via para frear a inflação.
No marco desses ajustes se incluem o recorte de alguns subsídios, como os 600 milhões anunciados ontem (dia 02/11) por De Vido e que beneficiavam petroleiras, telefonia móvel, mineradoras, aeroportos, jogos, bancos e seguradoras. Este montante pouco resolve os problemas fiscais já que o total de subsídios supera este ano os 50 bilhões. A respeito de seu impacto, o governo sustenta que será um aumento de custos em setores de alta rentabilidade (o qual implica um embaraçoso reconhecimento de como sua carteira contribuiu para acrescentar mais ao que já eram bons lucros), mas isso está por vir.
O certo é que tanto o ajuste encoberto do governo como a desvalorização que pedem os industriais são duas maneiras de enfrentar a situação criada pela fuga de dólares e os problemas fiscais, que transformam as rendas dos assalariados na variável de ajuste.
Nacional e popular?
O Kirchnerismo se apresenta como um movimento “nacional e popular”, defensor de um modelo de desenvolvimento “com inclusão”. Mas se olhamos o funcionamento da economia argentina desde 2003, o “esquema Kirchner” está caracterizado por altos lucros sem reinvenção, obtidos ás custas de salários baixos em dólares. Os lucros empresariais têm a maior participação na renda geral das últimas décadas, e o oposto ocorre com a renda dos trabalhadores, que, em média, apenas recuperaram o perdido com a desvalorização de 2002.
Os lucros das grandes empresas não tem sido reinvestidos, comportamento que alguns estudos definem como “reticência investidora” (Pablo Manzanelli, “Peculiaridades no comportamento da formação de capital nas grandes empresas durante a pós-convertibilidade”, Apontamentos para o câmbio, outubro de 2011). Os lucros não só não se reinvertem, mas são gerados ao exterior, como remessas no caso das empresas estrangeiras, ou como saída simples e fácil no caso das empresas nacionais. Isso não é uma novidade: desde 2003 se perderam 75 bilhões de dólares.
Enfim, mais que um modelo de desenvolvimento com inclusão, o dos Kirchner tem sido um de excelentes oportunidades para o capital, que tem sabido aproveitá-las sem deixar como saldo novas inversões nem manter capitais líquidos no país. Um parasitismo que deixa a economia local com poucas reservas para enfrentar os tempos de vacas magras, e augura portanto duras consequências que recaíram sobre a classe trabalhadora.
Como se enfrenta a fuga de divisas?
Para enfrentar a fuga de dólares o governo tem bloqueado a demanda, colocando a AFIP para controlar os compradores. Pelo lado da oferta, decidiu-se que empresas petroleiras e mineradoras devem liquidar no país todos os dólares das exportações. Em um privilégio inédito, que regia há um tempo para as petroleiras e foi estendido por Kirchner ás mineradoras em 2004, se eximia a essas últimas de vender no país os dólares que obtinham de suas exportações, e no caso das petroleiras só deviam liquidar 30%.
A esta medida se soma a obrigação de que as seguradoras troquem ativos no exterior por ativos locais.
Estas disposições podem fazer que a pressão sobre as divisas seja suportável, por um tempo maior. Contudo, as pressões que impulsionam a fuga não desaparecerão. E, ainda no melhor dos casos, os dólares que podem aplicar por esses dois setores equivalem ao que poderia perder-se em um trimestre, ou algum tempo a mais, se se mantêm ou acelera o ritmo de fuga atual.
Estas medidas, que podem até fazer-se ganhar tempo mas não cortam os mecanismo de fuga desde a raiz, vão seguir permitindo a enorme entrega de recursos que são retirados da economia pela burguesia local e estrangeira, ainda que talvez agora a conta gotas.
As medidas para enfrentar a fuga devem começar pelo monopólio estatal do comércio exterior, única forma de centralizar todos os recursos das exportações nas mãos do Estado, assim como cortar as ricas importações e pôr fim ás manobras de subfaturamento de exportações e sobrefaturamento de importações.
Esta medida deve ser estreitamente associada ã proibição imediata da remissão de utilidades e dividendos ao exterior, medida com a que o governo flerta mas que parece pouco crível considerando sua especial inclinação a favorecer as multinacionais.
E finalmente, qualquer tentativa séria de bloquear a fuga de dólares deve avançar na expropriação dos bancos privados e concentração do crédito nas mãos do Estado, em um sistema bancária nacional único.
Isso deve articular-se com a declaração do não pagamento da dívida pública, outra fonte de saída de dólares e dilapidação de recursos, e a fixação de impostos ás grandes fortunas e aos lucros financeiros, agrários e industriais. Que se deixe de financiar com subsídios aos capitais privados, mas não para aumentar as taxas mas para expropriar as empresas e colocá-las para funcionar sob controle dos trabalhadores implementando tarifas populares. Com os recursos que surjam dessas medidas, será possível impulsionar a divisão das horas de trabalho entre todos os trabalhadores ocupados e desocupados sem afetar o salário, e 82% móvel para os aposentados.
10-11-2011
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