Por André Augusto
“Não há volta atrás, esta violência não pode ser varrida para debaixo da mesa”, diz Essam Gouda, um dos manifestantes que acorreram ã Praça Tahrir para mais uma série de “jornadas de ira” do povo egípcio. Em função de não ceder o poder e nem renunciar aos seus privilégios na Constituição – com eleições parlamentares previstas para 28 de novembro – a Junta Militar arremeteu contra a mobilização de massas que exigia sua saída, com um saldo de 30 mortos e milhares de feridos desde a última sexta-feira (18/11). Agora, os trabalhadores egípcios se rebelam diretamente contra o poder militar.
A crise política no Egito atinge um ponto tão agudo que, após a renúncia do Ministro da Cultura, Emad Abu Ghazi, devido ã violência da repressão militar, numa tentativa de desviar a raiva popular, anunciou que o Governo interino do país, encabeçado por Essam Sharaf, em bloco apresentou sua renúncia ao Conselho Supremo das Forças Armadas. Para deter uma rápida desagregação das bases do regime, o Ministro da Informação veio a público dizer que a renúncia do Governo interino ainda não tinha sido aceita pelo Conselho, mas a crise aberta obrigou a Junta a se por de acordo. “Os manifestantes exigem aos militares que voltem ao quartel e cedam passo a um Governo civil livre de tutelas”, escreve El Pais (21/11).
Os enfrentamentos desatados em 18/11 no Cairo tiveram como estopim a tentativa do Exército de impor princípios supra-constitucionais que deverão ser aceitos pela comissão responsável pela redação da Carta Magna após as eleições parlamentares. Os parágrafos que o Exército deseja vincular ao rascunho constitucional, antes mesmo de passar pela já anti-democrática comissão que manterá intactos os pilares do estado burguês e a submissão do Egito aos EUA e a Israel, lhes dá poder absoluto em todos os seus assuntos, para vetar qualquer artigo da futura Carta Magna, e controlar o orçamento. Ao redor de 25% do PIB nacional está nas mãos do conglomerado empresarial nas mãos das forças armadas. Essas manobras burocráticas se combinam ã permanência da Junta Militar no poder e a ausência de data prevista para as eleições presidenciais, além do conjunto de ataques repressivos promovidos pelo Conselho Supremo, que vem tomando medidas para reforçar a lei de emergência, que manteve intacta a polícia política de Mubarak, julgando civis em tribunais militares (mais de 12.000 desde fevereiro), além de apertar o nó nas leis que declaram ilegal o direito de greve.
A sanguinolência irrefreável da polícia egípcia – mais um exemplar internacional do que essa força de segurança da burguesia é capaz de fazer em momentos de crise mundial – chegou ao cúmulo de atacarem um hospital de campanha improvisado, ao que foram respondidos com pedaços de pavimento arrancados e lançados pelos manifestantes. Mais de 50.000 pessoas mantêm tomada a Praça Tahrir, com importante participação do movimento estudantil, com os 3.000 manifestantes da marcha estudantil procedente da Universidade de Helwan.
As forças repressivas do regime militar foram responsáveis por mais de 60 mortes e milhares de feridos em apenas dois meses. No início de outubro, as Forças de Segurança da Junta Militar responderam com uma virulenta represália estatal os protestos de setores cristãos que se mobilizavam contra a negligência do governo em aplacar as crescentes tensões sectárias contra igrejas coptas, deixando dezenas de mortos.
O que vemos nestes últimos nove meses é um genuíno conglomerado de evidências históricas – científicas –que prova que não se deu nada parecido com uma “revolução democrática triunfante” com a queda de Mubarak, como recorrente e alegremente postulam correntes como a LIT/PSTU. “A pressão popular quer escrever o quanto antes o epitáfio do regime militar que dirige o país desde então [queda de Mubarak]. O mal-estar é, sem dúvida, inclusive maior que o que desbancou Mubarak a 11 de fevereiro”, escreve El Pais (23/11).
Estes novos acontecimentos voltam a colocar de manifesto a armadilha da transição “democrática” e os laços de continuidade com o velho regime, mantendo todos os aspectos essenciais do tecido institucional e de segurança vigentes desde 1981. Apesar de algumas concessões – que visam estabilizar os desequilíbrios – a junta militar mantém as restrições aos direitos mais elementares dos trabalhadores, das mulheres e jovens, com leis e decretos tributários da ditadura, e com a permanência, ainda que reciclada, do aparato de segurança do estado. Tudo isso voltado contra a vanguarda anti-sionista e os trabalhadores, que vêm protagonizando uma onda de greves, impactando os alicerces da economia nacional e, por essa via, da reacionária instituição do Exército egípcio [1].
As alternativas burguesas (principalmente as islà¢micas) não constituem nenhuma saída ã Junta
Desde o início do ano, a crise econômica mundial adquiriu, no Oriente Médio e no norte da África, a forma política das colisões de massas frente a ditaduras há décadas em alianças estratégicas com o imperialismo. A situação global dos países da região foi desmascarada: essas alianças inquebrantáveis das burguesias locais – de variantes islà¢micas ou laicas – com o imperialismo norte-americano e europeu se postavam como muro impermeável ás demandas democráticas mais elementares dos trabalhadores e do povo pobre, que se rebelaram e fizeram arder o tabuleiro geopolítico da região. Devido ás debilidades do fator subjetivo das massas, pela ausência de protagonismo operário e de sua vanguarda revolucionária organizada em partido, os processos de insurreições elementares árabes – ação histórica das massas, mas sem objetivos claros, métodos de combate elaborados ou uma direção revolucionária; insurreições incapazes, portanto, de se projetar para além dos limites do regime burguês, segundo define Trotsky – foram expropriados pelas frações burguesas obediente aos amos do ocidente.
Dos distintos contornos que adquiriram as contenções dos processos revolucionários dentro dos limites do regime burguês, deriva a “recomposição dos governos” em alguns países inseridos na Primavera Árabe. Assim, nas eleições parlamentares tunisianas, o processo que se iniciou com a derrubada nas ruas do ditador Ben-Ali culminou, não na tomada do poder pelos trabalhadores, mas no ascenso do partido islà¢mico Nahda (“Renascença”). Na Líbia, o levante popular, expropriado pela OTAN e utilizado para impor a sua vontade na situação pós-derrubada de Kadafi, teve o efeito de reabilitar o imperialismo, como guardião da “revolução democrática”, não só na Líbia como frente ao mundo árabe em convulsão, implantando no país um estado teocrático reacionário baseado na sharia.
No Egito, todos os partidos que participarão das eleições legislativas no fim de novembro se opuseram aos rascunhos que o vice-primeiro ministro de Assuntos Políticos, Ali el Selmi, apresentou nas reuniões, principalmente a Irmandade Muçulmana. Essa organização, que defende também a instauração de um Estado islà¢mico baseado na sharia, um projeto sumamente reacionário para as mulheres e os trabalhadores, é a melhor posicionada para obter bons resultados no futuro parlamento. Por isso – e não por desacordo nas linhas gerais da subordinação ao saque dos monopólios nas semi-colônias e seu caráter anti-operário – é que se opõe a qualquer texto prévio imposta pelos militares que lhes impeça influir na redação da Constituição. A oposição da Irmandade Muçulmana não constitui nenhuma saída aos trabalhadores e ao povo pobre, pois é uma variante burguesa que aceitou coexistir com o regime de Mubarak em troca de um status semi-legal, além de aceitar que a Junta Militar permanecesse no governo pelo tempo que fosse necessário para por de pé uma alternativa “democrática” da patronal, negociando sua participação no regime. Sua presença nos atos contra os militares está condicionada ã tímida exigência de “um calendário detalhado para a transição democrática” [2].
O partido Adl, liberal de centro, emitiu um comunicado chamando o Conselho Supremo a formar um governo de salvação nacional (sic), empoderado com autoridade executiva, até as eleições do ano que vem. Outro partido liberal, Wafd, emitiu comunicado condenando “o uso excessivo das forças de segurança”, chamando os militares a cumprirem os prazos da “transição”. Ainda outro da bandeja liberal, El-Masryoun El-Ahrar, encolhe a cabeça dentro da bolsa de seus privilégios e urge as forças políticas “contenção nesse momento” [3].
Nenhuma das demandas estruturais do movimento de massas poderá encontrar uma resposta de qualquer governo da burguesia egípcia. As massas trabalhadoras experimentaram as agruras do desvio realizado pela junta militar – o ataque ás suas greves, a perseguição contra a vanguarda anti-sionista, autoritarismo de uma das ditaduras militares que continua sendo das mais sangrentas. Devem se apoiar na experiência adquirida e elevar ã consciência os métodos de classe. Para avançar de maneira decisiva é necessário que a classe operária em aliança com os jovens desempregados e os pobres urbanos do campo se dote de um programa de estratégia revolucionária independente do regime e das variantes opositoras, forjando uma direção revolucionária que saiba conduzir a insurreição ao triunfo e ser o primeiro passo para a revolução socialista no Magreb e no conjunto dos países do mundo árabe.
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