Nos dias 28 e 29 de novembro realizou-se no Cairo, em Alexandria e outras regiões a primeira fase das eleições legislativas, que em um complexo mecanismo de eleições regionais divididas em três fases terminará no início de março. A participação, afirma o governo, foi massiva e "sem incidentes", embora em meio a um enorme contingente militar e policial e numerosas denuncias de "irregularidades", e enquanto não se tenha apagado totalmente as brasas de uma semana de mobilizações na Praça Tahrir, com mais de 40 mortos e milhares de feridos diante da brutal repressão do governo.
Nesta votação se elege um terço dos representantes que integrarão o corpo legislativo. Segundo as primeiras apurações, o Partido da Liberdade e Justiça (PLJ), dirigido pela Irmandade Muçulmana, estava em primeiro lugar, seguido pelo partido Nour, aliança dos islamitas salafitas (ultra-religiosos), e mais atrás, por correntes liberais como a Aliança pela Mudança (dirigida por El Baradei), o Bloco pelo Egito (de centro-esquerda, com partidos como Taganmu, o PSD, etc.). Também buscam se reciclar sob novas siglas diversos setores ex-mubarakistas do dissolvido PND.
Os resultados desta primeira fase (ao fim desta nota em 1° de dezembro) parecem confirmar o ascenso do bloco islà¢mico "moderado" encabeçado pela Irmandade Muçulmana (IM), fenômeno que parece avançar também na Tunísia (como mostraram as eleições para a Assembleia Constituinte onde se impôs o Ennahda). No entanto, o cenário político está em aberto, não está definido que possam finalmente consolidar uma "transição para a democracia" controlada e a conta gotas, onde as Forças Armadas sigam cumprindo um papel fundamental como pilar do regime por trás de um governo títere, nem que se cristalize um sistema de partidos onde junto aos democratas burgueses laicos seja integrado o islamismo moderado (em que não são poucas as contradições que poderiam se manter com os EUA e Israel) em um regime funcional aos interesses da grande burguesia egípcia e do imperialismo.
Entre as mobilizações e as contradições politicas
Ainda esta por ver se este plano poderá se consolidar, pois o processo revolucionário aberto em janeiro com a queda de Mubarak segue vivo como ratificaram as jornadas da semana passada, onde centenas de milhares foram ã Praça Tahrir, ás ruas do Cairo, de Alexandria e outras grandes cidades, protestando contra as pretensões dos militares de aumentar os tempos da "transição" e manterem a tutela sobre o futuro regime, marcando que milhões perderam as ilusões iniciais no Exército.
Sob a pressão das mobilizações o gabinete de Sharraf renunciou e o marechal Hussein Tantawi, cabeça do Conselho Supremo das Forças Armadas (CSFA), teve que prometer que as eleições presidenciais seriam em julho de 2012, e oferecer outras concessões, além de designar Kamal Ganzouri - velho colaborador de Mubarak - para formar um novo governo nos próximos dias criando um "conselho civil consultivo" que poderia incorporar representantes dos partidos sobre uma fachada de "governo de salvação nacional".
As jornadas de setembro não se transformaram em um novo levantamento de massas capaz de derrotar o plano da reação, mas abalaram o poder e representaram o inicio de um segundo momento no processo egipcio, com o começo do enfrentamento das massas com as forças armadas, que 9 meses atrás, deixando cair Mubarak, se mostravam como "amigas do povo". Como teme a imprensa, se mostraram as tendências a "uma segunda revolução" onde "o mais perigoso que poderia se dar era a deterioração da relação entre o povo e o exército" (Al Akbar, 23/11).
No entanto, a Irmandade Muçulmana (que de inicio se somou aos protestos, mas logo negociou com os militares) e outros partidos sustentaram as Forças Armadas, viabilizando as eleições, o que contribui para que o CSFA alcançasse um importante respiro e, assim. o plano de "transição" deu um passo adiante, ainda que não sem contradições e fissuras, como as divisões sofridas na Irmandade (com a ruptura de sua juventude) e as fissuras sobre a credibilidade do plano eleitoral do que são mostras as declarações de eleitores como a de um jovem explicando para El País (29/11): "Fui ao colégio eleitoral de preto em sinal de luto pelos mortos em Mohamed Mahmud [a rua onde se desenvolveram os enfrentamentos mais graves], mas fiz isso porque é minha forma de dizer ao Conselho [militar] que quero democracia", evidenciando que os militares e seu plano não contam com um "cheque em branco" entre as massas.
Além disso seguem abertas as contradições no plano político, entre o Exército e os partidos liberais e muçulmanos que querem acelerar a transferência de poder, como ja adiantou Mohammed Mursi, lider da Irmandade, colocando que o novo Parlamento deveria formar o Governo, ja que um governo "que não esteja baseado em uma maioria parlamentar não pode levar seu trabalho ã prática" (www.eldiario24.com, 30/11).
No entanto, o Exército, enquanto pilar do Estado e do regime e exercendo o poder politico por meio do CSFA, e portanto comprometido diretamente na tentativa de estabilizar a situação, dificilmente desistirá tão fácil de seus poderes, mesmo com um novo governo civil de fachada.
Nestas condições, embora seja provável que as massas devam passar pela experiência com este processo eleitoral e a complicada preparação de uma nova Constituição resolvida nas alturas, até onde poderá avançar a intenção de canalizar pela via da "transição" controlada nesses termos o profundo processo de massas que vive o Egito? Dada a profundidade do processo revolucionário em curso, não parece uma tarefa simples para os militares, a burguesia e o imperialismo. A segunda fase do processo revolucionário segue em aberto.
Os motores profundos do descontentamento
"Esta é uma revolução dos famintos! Nós, egípcios, já não aguentamos mais" dizia aos jornais Amr Ali Mohammed, jovem manifestante em um descansdo dos combates com a polícia (The New York Times, 23/11)
É que as penúrias sociais e econômicas das massas se entrelaçam com suas aspirações democráticas após décadas de ditadura e o ódio ás corruptas camarilhas que se enriqueceram na sua sombra.
A contradição entre as expectativas dos trabalhadores, dos jovens e do povo (que esperam melhoras salariais, emprego, serviços sociais, etc.) e o curso econômico em que são eles que deverão pagar os custos da crise, se combinam com a contradição entre as profundas aspirações democráticas das massas e a politica da CFSA de restaurar a autoridade e a ordem - mantendo a lei de emergência, a repressão e as perseguições, os tribunais militares, limitando o direito de greve, etc -, preservar o poder dos militares e a subordinação ao imperialismo. Tudo isso coloca estreitos limites aos planos de transição controlada patrocinados pelos Estados Unidos e pelas potências européias e se constitui em um motor para o desenvolvimento das mobilizações, sobre a base de novas relações sociais de força criadas com o começo do processo revolucionário.   Um amplo processo de organização e mobilização operária e de massas
Apesar de que nas mobilizações da semana retrasada o movimento operário não se lançou ás greves de massas, distintos setores avançados não deixaram de se pronunciar. Por exemplo, frente a chegada de toneladas de gases lacrimogêneos dos EUA os trabalhadores portuários de Suez se negaram a descarregá-los (Al Ahram on line, 29/11).
Inumeráveis ações, desde greves por salários e pela incorporação dos trabalhadores temporários até a criação de novos sindicatos, mostram o movimento operário como um protagonista fundamental, o que, dado o peso estrutural do proletariado no Egito, antecipa o decisivo potencial revolucionário que tem a sua irrupção no processo revolucionário. As lutas operárias não podem ser vistas como simplesmente "econômicas", pois até as demandas mais elementares se entrelaçam com outras, políticas - pelo direito de se organizar, contra os diretores mubarakistas, etc., expressando os sentimentos anti-ditatoriais, e ao ser exercida por milhões no efervescente ambiente egípcio tendem a adquirir um caráter político.
Temos que recordar que as grandes greves de 2008 nas grandes fábricas têxteis, como a de Mahalla (10.000 trabalhadores), estão entre os antecedentes dos levantamentos de janeiro e que a perspectiva das paralisações nas fábricas, portos, serviços e repartições estatais se convertessem de fato em uma greve geral foi o elemento chave nas jornadas que decidiram o futuro de Mubarak.
Nos 9 meses transcorridos, o processo de luta e organização se fortaleceu e estendeu apesar da dura legislação anti-greve introduzida em 24 de março com a Lei 34. As greves têm abarcado múltiplos setores, desde as indústrias até os funcionários públicos, e no calor das mesmas surgiram comitês de greve e dezenas de novos sindicatos. Como parte disso, em setembro, dezenas de milhares de professores, médicos, trabalhadores da saúde e do transporte realizaram uma grande greve, os trabalhadores de grandes empresas privatizadas exigiram a renacionalização (como as fiadoras-têxteis de Pólvora e Alexandria, enquanto já o conseguiram a Shebin El-Kom Textile Company, a têxtil de Tanta e a Compañia de Calderas), e até saíram em greve os trabalhadores da Biblioteca e da Ópera de Alexandria.
Como reflexo "por cima" da irrupção operária, ao fim de janeiro, em torno da RETA (o sindicato dos funcionários públicos da administração tributária) e outros setores (aposentados, da saúde e professores) nasceu uma federação independente de sindicatos. Posteriormente, a ETUF (a central única que era parte do regime mubarakista) sofreu intervenção, embora não dissolvida e busca "reciclar" os setores menos desprestigiados da velha burocracia da ETUF para canalizar os tumultuosos movimentos. É certo que os elementos de auto-organização - comitês de luta, de auto-defesa e outros, surgidos desde a base em janeiro - não se desenvolveram, nem centralizaram e ainda mais retrocederam nesses meses, mas a experiência está viva e pulsante e pode ser retomada em novas fases da mobilização para edificar formas superiores de frente-única das massas do tipo soviético, como coordenadorias ou conselhos.
Além dos trabalhadores, outros setores sociais, entre a juventude, as classes médias e os camponeses, se colocam em movimento. As autoridades mubarakistas nas universidades se viram encurraladas e em algumas se impôs eleições democráticas para reitores e decanos, assim como se densenvolve um importante movimento estudantil, que faz parte do "shabab" (juventude rebelde), que ganhou protagonismo em janeiro.
Os camponeses são um setor social de grande importância no Egito. Milhões de fellahs pobres vivem dos cultivos em pequena escala nas margens do Nilo. Em abril, uma camada de jovens educados de origem rural impulsionou a criação de uma federação independente do setor, e afirmam ter já entregue 650.000 formulários de filiação (The Egyptian Gazette, 9/11). Nas associações profissionais também sopram ventos democráticos, como na Associação de Advogados onde um deles afirma: "É o momento dos nós advogados elegermos a direção de nossa própria união sem pressões dos agentes de Segurança de Mubarak" (TEG, 21/11), refletindo o estado de ânimo da pequena burguesia urbana.
Completar a tarefa iniciada em janeiro
O levantamento de janeiro derrubou Mubarak e desferiu duros golpes nos andaimes do regime, mas não o destruiu. Isto permitiu que as Forças Armadas retivessem o poder e recuperassem a iniciativa política do plano de "transição" para defender, com o apoio imperialista, a herança da ditadura, desde a impunidade para os seus incontáveis crimes e os grandes negócios com a corrupção, aos acordos com os Estados Unidos e Israel. Ao mesmo tempo em que as massas conquistaram com suas lutas amplas liberdades politicas, essas seguiram ameaçadas pela repressão e pela sobrevida de muitos dos mais sinistros elementos do velho regime. Assim, ainda que a nova relação de forças sociais impusesse uma margem de liberdades inéditas, existem 12.000 civis presos por causas políticas, entre eles o popular blogueiro Alaa Abd El-Fattah, preso sob a alegação de "terrorismo", continuam com as torturas nas cadeias e a polícia ainda recorre aos métodos mais bárbaros, como o assédio sexual e as torturas ás presas mediante o chamado "teste de virgindade".
É evidente que não bastou derrubar o odiado ditador, senão que é preciso remover até os cimentos do velho regime e suas podres instituições, os quais se entrelaçam estreitamente aos interesses da cúpula militar, os antigos hierarcas da ditadura e os grandes capitalistas. Não é um fato menor que as Forças Armadas sob Mubarak acumularam um grande poder econômico e participação em grandes negócios, nem que recebam anualmente 1,3 bilhões de dólares de ajuda militar ianque. Tudo isso, apesar da desintegração do odiado "partido único" do PND mostra que o regime, suas instituições fundamentais como as Forças Armadas, a justiça e os serviços policiais e o Estado em seu conjunto mantêm um caráter profundamente bonapartista e reacionário.
Enquanto que para as classe privilegiadas, temerosas da irrupção dos explorados e pobres, a revolução deve se manter no regime político sem transformar a ordem econômica e social, e deve levar a construção de um novo "sistema político" em uma "transição" o mais organizada possível, para as massas trabalhadoras se trata de levar até a raiz o desfacelamento do antigo regime pois recém inaugura-se aqui a possibilidade de responder ás suas necessidades mais agudas.
É falso e ilusório sustentar que o processo pode triunfar como uma "revolução democrática" frente a uma simples mudança de regime. A queda de Mubarak não foi a coroação do triunfo senão só o primeiro passo do processo revolucionário e a história desses 9 meses não é mais que a história da batalha do CSFA, respaldado pela alta burguesia e pelo imperialismo e com a cumplicidade dos partidos liberais e muçulmanos, para conter e desviar o movimento de massas e recompor a autoridade do Estado burguês.
Frente a isso, não se pode ceder aos figurões da democracia como El Baradei e seu programa de negociação, absolutamente impotente e servil frente aos militares, ainda que se postule como representante “da Praça", nem, obviamente, frente ã Irmandade Muçulmana e outras expressões de colaboração de classes, sejam elas laicas ou religiosas.
Não só as reivindicações de ampla democracia politica das massas se verão estancadas ou diminuídas, mas as demandas democráticas estruturais são insolúveis se não se enfrenta e se derrote o CSFA e se dê a mais ampla "limpeza" em todos os níveis com os métodos da mobilização. A grande lição do processo egípcio (e da "primavera árabe" em geral) é que nenhuma das demandas estruturais profundas do movimento de massas pode ser resolvida nos marcos do capitalismo e que não se conquista simplesmente com a derrubada de um odiado ditador, pois é necessário destruir o Estado burguês e as relações sociais de exploração sobre as quais ele se baseia, na dinâmica da revolução permanente que deve levar os trabalhadores ao poder.
Em termos políticos, é preciso completar a tarefa iniciada em janeiro mas ainda inconclusa: derrotar o plano militar e imperialista de uma "democracia vigiada" e responder ás demandas econômicas, sociais e políticas inadiáveis dos trabalhadores e camponeses.
Mas isso não se pode alcançar com a colaboração de classes com os figurões burgueses como Baradei e os islamitas como Mussa mas sim com os métodos da revolução proletária. A perspectiva estratégica é retomar o caminho da mobilização, forjando a aliança operária, camponesa e popular para uma greve geral política das massas que, ao calor da organização e centralização dos comitês, coordenações e conselhos, leve ã cabo o armamento das massas e ganhando os soldados para a sua causa com uma política para romper o poder da casta dos oficiais, instaure um poder operário e camponês, ou seja, levando ao triunfo uma verdadeira revolução operária e socialista.
30-11-2011
|