Por Gilson Dantas
Os ares, as águas, o solo, o subsolo, os mares e tudo que nos cerca vêm sendo amplamente envenenados e degradados. Desde o menor dos biossistemas até o ar que respiramos, os alimentos que comemos, nada escapa a uma desenfreada contaminação química e física produzida incessantemente pela moderna indústria capitalista e pelo modo de vida baseado no capital.
Marx mencionava, em seu tempo, o ar puro do campo e as condições insalubres das cidades industriais. Hoje, mais de um século e meio depois, estamos ã beira do precipício: a atividade agrícola está entre as mais poluentes e contamos hoje, afora todo tipo de poluentes, com a poluição radioativa (dos testes nucleares, dos resíduos, vazamentos e da própria atividade nuclear que contamina seu entorno e o planeta), de efeitos mais terríveis e duradouros do que qualquer outro empreendimento industrial humano. Afora as guerras onde o imperialismo tem utilizado artefatos nucleares como as balas radioativas na guerra desfechada por Clinton/OTAN contra a Iugoslávia desmembrada em 1999, sem falarmos em seu uso no Iraque e Afeganistão.
O devastador e o mais voraz sistema predador da história da humanidade é o capitalismo com suas mazelas e suas guerras. Também entra nessa galeria a burocracia de países como a ex-URSS que devastou o ambiente e, ao final de sua trajetória, como casta política usurpadora da revolução proletária, desenvolveu sua natureza reacionária até o fim, tornando-se...capitalista.
O movimento ecologista, por sua vez, em seu amplo espectro de tendências, e que reage ás alterações ambientais, vem desenvolvendo mais recentemente uma certa novidade que merece ser debatida. Trata-se do fenômeno onde algumas correntes do capitalismo aparecem tingidas de verde, levantando a bandeira do meio ambiente, em total flerte com o discurso ecológico.
No ambiente midiático da atual Rio+20 isso aparece bem claro. Várias ONGs, burgueses “empreendedores”, políticos, ministros e até setores do imperialismo (do eco-imperialismo) aparecem agitando um discurso ecológico que, pelo peso da mídia, de certa forma tem se configurado como dominante. Este discurso fala em economia verde, também em eco-taxas, em preocupações “ecológicas” como a de abolir as sacolas plásticas (ao final deixando a população na mão e reduzindo custos das empresas), falam também de grandes campanhas na base das mudanças individuais, da “conscientização ambiental” para que cada um e cada empresa faça sua parte para “salvar o planeta” e por aí vai.
De uma maneira geral, e devidamente resguardadas as bem intencionadas iniciativas de determinados grupos sociais como o MST e outros, pode-se detectar características que nos permitem enquadrar aquele outro ecologismo capitalista como de direita. Ou de rico. Ele procura preservar ou desenvolver – nos marcos daquele discurso ecologicamente correto – os lucros de novas vertentes do eco-negócio, além de desviar a atenção de problemas candentes como saneamento básico, desemprego maciço, prioridade absoluta ao automóvel em detrimento do transporte coletivo e assim por diante.
Em seu lugar surge algo assim como a promessa de um “capitalismo verde”, o que termina se traduzindo em um discurso que subentende a possibilidade de o capitalismo poder tornar-se “ecológico”.
As variantes desse “capitalismo verde” são múltiplas e a grosso modo se reúnem em torno de três correntes: a do eco-imperialismo, notória por sua política de remeter o lixo tóxico (nuclear, de pneus, de produção de agrotóxicos proibidos nos países centrais etc) para o chamado Sul, isto é para os países semi-coloniais, naquilo que poderia ser chamado de um intercâmbio desigual do tipo ecológico.
É esse mesmo imperialismo que se apropria da riquíssima biodiversidade de países como o nosso cotidianamente para converter em patentes para as grandes corporações imperialistas.
Em seguida temos os ministérios, os técnicos e cientistas de perfil “ecológico” além de várias ONGs verdes que embora procurem funcionar como se fossem a consciência ecológica planetária, são totalmente funcionais à quelas corporações imperialistas; muitos deles representam diretamente as verbas e interesses do grande capital. Já estão sendo chamados de eco-tecnocracia.
Por último temos a terceira corrente, a do eco-negócio ou eco-business, encarnada pelas grandes ou pequenas corporações que se camuflam de “verdes” para faturar abertamente com suas mercadorias “ecológicas” (o exemplo mais recente vem a ser o dos grandes supermercados que em nome da “ecologia” estão cortando custos, aumentando seus lucros, através da privação dos consumidores de qualquer sacola para levar suas compras para casa). É o puro e simples disfarce de verde, de ecologicamente correto, para promover maior acumulação do capital.
Somado tudo, predomina um discurso ecológico de direita ou em outras palavras: nenhuma daquelas três correntes de perfil burguês, nenhum dos movimentos ecológicos dominantes na grande mídia, pretende barrar a acumulação do capital ou mudar o modo de produção responsável pela devastação da vida e das condições de vida na Terra.
E é claro que não será a grande mídia, controlada pelos mesmos interesses, que irá denunciar essa contradição, que revela as intenções ou a esterilidade daquilo que chamamos de disfarce ecológico. Ou que também poderia ser chamado de utopia ecológica reacionária.
E qual o maior problema de nos deixarmos enredar em torno de qualquer daquelas três vertentes do falso ecologismo? (Afinal de contas há inclusive certa esquerda, e por incrível que pareça certa esquerda auto-proclamada trotskista que, em nome do ecossocialismo, termina propondo, aos governos do capital, eco-taxas e eco-medidas dentro do sistema; ou seja, deixam-se enredar em eco-reformas).
Setores ligados ao Monthly Review, como Magdoff/Foster, chegam a argumentar, numa linha claramente reformista, que “a luta é em última instância contra o sistema do capital. Mas deve, no entanto, começar pela oposição à logica do capital tratando de criar no aqui e agora, nos interstícios do sistema, um novo metabolismo social, enraizado no igualitarismo, na comunidade e em uma relação sustentável com a terra” (MR n.10 de março 2010). Em seguida aqueles autores tomam como exemplos o governo Chávez, o MST, o sistema de transportes de Curitiba e Cuba, além do governo Morales na Bolívia.
Aqui temos um desvio estratégico sério, de consequências políticas bem negativas.
E o problema é justamente o de que a defesa de tais reformas ilude a classe trabalhadora. Engendra ou alimenta ilusões no seio da única classe que, revolucionariamente, pode por fim ã devastação ambiental a partir do chão de fábrica, do controle operário dos centros de trabalho e do levantamento de um governo dos trabalhadores contra o capital.
Ironicamente, parte daquela esquerda (como é o caso de Michel Lowy e seu grupo do ecossocialismo, da corrente majoritária do NPA na França) sabe muito bem que não há saída ecológica no capitalismo. No discurso, sabe disso. No entanto, leva adiante a estratégia de luta por aquelas reformas de maneira reducionista, minimalista, a pretexto da “luta pelo possível” (possibilismo), ou das mudanças “passo a passo”, ou de que “não se pode esperar pelo socialismo” para salvar o planeta, o que termina sendo, para além de quaisquer intenções, uma crença reformista. Na prática o resultado é esse. Ou seja, o resultado é alimentar a crença – mãe de tantas derrotas políticas dos trabalhadores pelo mundo afora – de que o capitalismo, seja quem for seu governo, é reformável. Gorz, Magdoff, Mészáros, setores do New Left Review e várias figuras do marxismo do nosso tempo embarcam nessa canoa.
Assim como também a esquerda verde ou todo um setor ainda mais light, dos que querem um capitalismo “natural” como Paul Hawken, Amory Lovins e L. Hunter Lovins (além de William Grider, do The soul of capitalism: opening paths to a moral economy) e que acreditam que se pode crescer sem fim, maximizar o lucro continuamente e conquistar uma alma para o sistema, um sistema que não tem como ser verde por sua própria natureza.
Reiterando: mesmo quando, na sua propaganda política, denunciam o capitalismo e parecem não acreditar em saídas dentro desta ordem, mas na prática chamam os trabalhadores a apoiarem governos reformistas, dentro daquela lógica do “governo do possível” ou de cobrar de governos defensores da grande propriedade privada (por mais tingidos de rosa ou de verde que sejam) que promovam um “desenvolvimento sustentável”, que apliquem eco-taxas ou que hierarquizem o meio ambiente. Ora, atualmente, em meio ã maior crise estrutural do capitalismo desde os anos 30, esse tipo de expectativa soa ainda mais conservadora. No entanto essa é a estratégia, na prática, dos ecossocialistas.
De parte de uma parcela da juventude “ecológica”, um pouco mais combativa, o problema ao fim e ao cabo, termina sendo, apesar das intenções, uma rendição ã estratégia utópica e reacionária daquele “capitalismo verde”. Intenção, nesse caso, importa pouco: o resultado é o mesmo desde que não transcendam os limites institucionais e programáticos estabelecidos por aquele discurso verde hegemônico.
E isso é assim por duas razões. Primeiro, porque setores como o dos ecossocialistas, a exemplo de setores do NPA francês, não hierarquizam, em sua agenda de lutas, a organização e a mobilização do único sujeito, a classe trabalhadora, que pode, a partir dos locais de produção, barrar a devastação ecocida do capital; e que só pode fazê-lo calcado na estratégia de tornar-se governo, democracia proletária (ou ditadura proletária, democrática com os trabalhadores, ditadora contra o capital). E segundo porque tampouco desmonta a ideologia de que o grande capital pode ser “ecologicamente correto”, ou a miragem de que o sistema capitalista pode, um dia, substituir a preocupação com a acumulação do capital pela preocupação ambiental efetiva e consequente.
Para justificar aquela miséria da estratégia setores como o citado Michel Lowy se justificam com a necessidade de “renovar” o marxismo ou “atualizá-lo” e, para isso, tentam localizar um Karl Marx como argumenta Lowy (em seu Ecologia e socialismo, de 2005, da Cortez Editora, São Paulo), um Marx “muito pouco crítico” da produção capitalista ou um Marx que parece não enxergar o potencial destrutivo das forças produtivas. Lowy imagina, naquela mesma obra (páginas 33-34) um Marx que não vai além da “gestão planificada e racional da civilização material do capital”, dotado de uma lógica “continuísta”, que só rompe a casca da propriedade privada e não rompe com o “paradigma tecnológico e econômico da civilização industrial capitalista” ou que pensa as forças produtivas como “neutras” (p. 39). (Estaria bem se em vez de Marx estivesse se referindo a Stalin, mas não é o caso; ele acusa mesmo é Marx).
Todos esses argumentos já foram desconstruídos por vários autores e longe de fidelidade ã obra de Marx, servem muito mais como argumentos funcionais para sustentar o insustentável: a miserável estratégia de tentar colocar a classe trabalhadora detrás de governos burgueses de coloração pela esquerda. Ou de procurar incluir suas forças populares em apoio a todo governo reformista que apareça no horizonte. É o que faz nesse momento esse mesmo grupo quando chama o apoio ao Syriza (uma agrupação política de proposta social-reformista na Grécia), política esta, compartilhada com uma mediação, de chamar a conformação de um “governo das esquerdas”,ou seja dirigido pelo Syriza, também adotada pela LIT (PSTU) e pelo Partido Obrero.
A questão é que não existe aquele Marx, a não ser que se desconsidere o conjunto de sua obra em troca de uma ou outra citação isolada e, mesmo assim, ás custas de argumentos específicos seus (em O capital e nos Grundisse, por exemplo) que são denúncias abertas da devastação da natureza pelo jovem capitalismo em sua fase não-imperialista. E pior ainda se esses ataques ou críticas contra a obra de Marx (e Engels, este com frequência alvo preferencial desses ataques) aparecem como mero pretexto para alimentar a ilusão de que se possa impedir a devastação ambiental planetária sem se lutar, aqui e agora, para desenvolver uma corrente proletária que defenda não os governos reformistas-burgueses mas sim medidas transicionais como a do controle pela classe trabalhadora de toda fábrica que demita e a estatização da banca sob controle dos funcionários; sempre na perspectiva de um governo alternativo, dos trabalhadores e que produza respeitando a relação com a natureza, a saúde coletiva e individual.
Aquela estratégia da derrota foi condenada por Trotski nos anos 1930 quando a esquerda proclamada marxista se localizava dentro dos governos de frente popular (amálgamas de forças populares e da classe trabalhadora com a burguesia liberal/reformista). O mesmo Trotski que também argumentava que no capitalismo a ciência não pode ser neutra, da mesma forma que a educação e o direito não são para nada neutros; menos ainda no capitalismo decadente um sistema que converteu até o DNA e a vida em geral em mercadoria e mercantilizou coisas que – como antecipava Marx em 1847 – até então eram dadas e jamais vendidas a exemplo de virtude, amor, ciência e consciência. O próprio Marx já denunciava o capitalismo como “o tempo da corrupção geral, da venalidade universal” e no qual até a coisa moral é levada ao mercado.
De Marx a Trotski, passando por Lenine e Rosa Luxemburg, o marxismo revolucionário é a ferramenta de análise que permite superar a contradição básica tanto do discurso ecológico bem intencionado mas parcial, quanto a do capitalismo verde. E permite por um lado constatar a gravidade do problema, mas ao mesmo tempo construir a estratégia para sua superação.
Ou no argumento, neste caso correto, de Magdoff e Foster (2010):
“O planeta terra deve ser visto como constituído de um certo número de processos biogeoquímicos críticos que, por centenas de milhões de anos, serviram para a reprodução da vida. Nos últimos doze mil e pouco de anos, o clima mundial assumiu a forma relativamente benigna associada com a época geológica conhecida como o Holoceno, durante a qual a civilização emergiu. Hoje, no entanto, o sistema sócio-econômico do capitalismo cresceu em tal escala que vem explodindo os limites planetários: o ciclo do carbono, do nitrogênio, o solo, as florestas, os oceanos. Parte crescente da produção terrestre (baseada na terra) de fotossíntese, acima de 40%, vem sendo comprometida pela produção humana. Todos os ecossistemas da terra estão em visível declínio. Por conta da escala crescente da economia mundial, as fraturas metabólicas na terra, geradas pelos homens, tornaram-se mais severas e multifacéticas. Contudo, não cessa, no sistema capitalista , mesmo nos países ricos, a demanda por maior crescimento econômico e maior acumulação. Como resultado disso, a economia mundial é uma gigantesca bolha. E mais que isso: nada na natureza do sistema dominante, tem como deter esse processo antes que seja demasiado tarde. Para isso, outras forças, da base da sociedade têm que entrar em cena”.
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