A obra sobrevive em muito ao homem; esta poderia ter sido a declaração do conservador David Cameron, primeiro ministro britânico, ao saudar a “grande britânica”, Margareth Thatcher, que morreu a 9/4. O dossel de louvores desenrolado pelos ministros britânicos a essa reacionária estadista, que representa o integral espírito de etapa da restauração burguesa, foi acompanhado pela dubiedade da mídia inglesa e internacional em saber dentro de que limites aprecia o trabalho da “Dama de Ferro”. Cameron e os “lordes” de Westminster prestam homenagens “en route”: há já meses vem emplacando em série uma rodada drástica de reformas contra o Estado de bem-estar social na Inglaterra para paliar o déficit público. Essas medidas, que foram seguidas por uma onda de protestos que tomou as ruas do Reino Unido nas ultimas semanas, incluem a perseguição de imigrantes búlgaros e romenos (dificultando acesso ao país e cerceando-lhes os direitos ã saúde e educação), cortes em subsídios ã habitação e em prestações sociais (afetando mais de 1 milhão de pessoas), além da semiprivatização de todo o setor da saúde.
As ressalvas quanto ã figura de Thatcher (o The Guardian fala de “limpar a sujeira que Thatcher deixou”) coincidem com a crise que todo o entramado europeu, e do capitalismo mundial, herdou da década de ’70. Quando Thatcher assume o poder no Reino Unido em 1979, o sistema capitalista mundial se enfrenta já com o esgotamento dos efeitos do crescimento parcial das forças produtivas no boom do pós-guerra, e com sua primeira crise econômica em mais de duas décadas. O nível de vida conquistado no período do “pleno emprego” na Europa e as concessões do estado de bem-estar não podiam continuar como foram depois da reconstrução do pós-guerra; o capitalismo precisava manter ã força sua taxa de lucro, sem desencadear uma nova destruição massiva de capitais. A ofensiva neoliberal que Thatcher lançou, juntamente com o presidente norte-americano Ronald Reagan, tinha de resolver o problema da restauração do equilíbrio dinâmico do capitalismo. E esse equilíbrio, para a burguesia, só pode ser restaurado no domínio da luta de classes, derrotando o proletariado internacional.
Os mecanismos que funcionaram durante o auge do neoliberalismo (capazes por ora de evitar o colapso financeiro e uma Grande Depressão, mas que não levaram a nenhuma recuperação econômica), teve como grande propulsor a série de contra-reformas econômicas, políticas e sociais com as quais os capitalistas buscaram recuperar sua taxa de lucro, liquidando as conquistas operárias mais elementares. Esgrimindo a bandeira do Estado mínimo e de um neoliberalismo meritocrático que se apoiava no desejo de uma nova geração de proprietários que não queriam quaisquer intervenção estatal na economia, Thatcher converteu todas as nacionalizações em privatizações (como das grandes empresas estatais do gás, British Gas, e da telefonia, British Telecom). Expandiu um programa de fechamento das explorações não econômicas (ou seja, que dependiam de subsídios estatais), encarando de início uma completa reestruturação do setor do aço e da mineração, facilitando a absorção das empresas deficitárias pelos grandes monopólios e aprovando demissões que se traduziram em desemprego massivo nestes setores. Através da redução dos impostos, promoveu acesso ã compra de casas, um direito legítimo, mas apenas por uma pequena parcela classe média, em troca de incentivar a especulação imobiliária e as sucessivas bolhas, abrindo caminho para profundos cortes nos serviços públicos essenciais, dilacerando a saúde, a educação e o transporte, com consequências palpáveis até os dias atuais (as revoltas da juventude negra e precária dos bairros operários, como em Tottenham, são marcas permanentes dessa “restauração thatcherista”).
Ideologicamente, a “Dama” também deixou seu rastro de poeira tão ao sabor da reação imperialista: perseguição aos homossexuais e rechaço ã educação sexual nas escolas, responsável pelas bases que hoje atravancam os direitos elementares da mulher, como o direito ao aborto, e profundamente racista, apoiando o regime do apartheid na África do Sul. Idéias perfeitamente aristocráticas que se encontram canonizadas na cabeça patriótica de uma mulher que planificou a devastação dos setores mais oprimidos da sociedade, das mulheres e da juventude.
Todo este receituário econômico neoliberal foi consolidado no Consenso de Washington de 1989, que buscava impor a negociação das dívidas externas dos países latino-americanos na década de ’90, e cujos principais expoentes são novamente a dupla Reagan-Thatcher. A liberalização financeira e comercial, a eliminação de barreiras aos investimentos estrangeiros; as amplas privatizações e a desregulamentação do mercado de trabalho, para permitir novas formas de contratação que reduzissem os custos das empresas foram as recomendações do FMI, com efeitos catastróficos sobre a precarização da vida dos trabalhadores [1].
Contra-revolução neoliberal e a greve dos mineiros de 1984
A derrota do último ciclo de ascenso operário, que vai de 1968-1981, aplainou o terreno, se não para um novo ciclo de crescimento prolongado do capitalismo, mas para a recuperação da iniciativa política no campo da burguesia. Thatcher aproveitou com mão de ferro a recuperação parcial da estabilidade lograda sobre as derrotas operárias. O processo de reestruturação produtivo – com uma onda colossal de demissões e de instituição de postos precários de emprego – e de privatizações foram capazes de reerguer uma onda adicional de mobilizações operárias. Utilizando uma guerra de rapina nas Malvinas em 1982, conseguiu bases sociais da classe média, que havia perdido com as medidas de ajuste, para vencer as eleições de maneira esmagadora em 1983 e assim servir-se das posições conquistadas contra os trabalhadores.
O objetivo de aniquilar a organização sindical dos trabalhadores britânicos já era um dos pontos da agenda da contra-revolução neoliberal de Thatcher. Juntamente com a greve dos controladores de vôo nos Estados Unidos (brutalmente reprimida pelo governo Reagan), a greve dos mineiros britânicos de 1984-85 foi um momento definidor para o avanço do neoliberalismo na década de ’90. A queda do governo de Heath em 1974, pelo poder político da União nacional dos Trabalhadores Mineiros, havia ficado na memória conservadora. A 6 de março de 1984, o Conselho Nacional do Carvão, que havia retrocedido da decisão de fechar 23 poços de extração por ameaça operária, anunciou que o acordo concluído em 1974 com os sindicatos mineiros estava anulado. Dentro dos planos thatcheristas de cortes de subsídios, a primeira ministra lançou uma provocação aos operários, anunciando o fechamento de 20 minas de carvão e a demissão de 20.000 trabalhadores (o governo conservador havia até estocado carvão, precavendo-se contra a repetição da greve de 1974). A massividade e a ferocidade da greve, com conflitos entre operários e policiais que atacavam os piquetes, levaram o governo britânico a se ligar com o alegado alvo de sua ofensiva: a burocracia sindical.
Norman Willis, dirigente da Trade Union Congress (associação dos sindicatos mineiros, que já havia traído a grande greve mineira de 1926), reuniu-se com a Dama de Ferro para por fim ã greve. Alarmada pela extensão e atividade operária da greve, que durava quase um ano (com perdas de 5 bilhões de libras esterlinas, rebaixando a cotização da moeda e diminuindo o índice de popularidade de Thatcher), a burocracia interrompeu o processo de tomada de consciência política que se instalava no seio da greve. Willis agradecia a “consideração e a atenção” da primeira ministra, e anunciou “que a associação dos sindicatos mineiros prosseguirá seus esforços de mediação encaminhados a por fim no conflito” “ [2]. Como o principal instrumento de opressão do Estado sobre a classe operária, a polícia política da burocracia sindical foi fundamental para quebrar a greve mineira.
A desmoralização imposta pela mídia burguesa, pelos ataques do governo e pela divisão instalada pela burocracia (o Sindicato Nacional Mineiro, para “se salvar”, aceitou retornar ao trabalho sem um novo acordo com a administração) acabou com a greve em março de 1985. A completa social-liberalização do tradicional Partido Trabalhista, um cadáver putrefato remanescente da II Internacional e que hoje aplica os planos de ajuste na Inglaterra, se deu como conclusão da vitória thatcherista. A penúria de milhares de trabalhadores desempregados e sem salários foi monumental, e reverberou não só dentro do país, mas condicionou a atitude dura da patronal com os trabalhadores a nível mundial.
O fim da etapa restauracionista e as leis de ferro da luta de classes
A saída “reagan-thatcherista” da crise dos ’70 (uma recomposição instável da burguesia conquistada a partir da vias abertas com a derrota do proletariado internacional, também depois do fechamento do ciclo 1968-1981) não significou um novo ciclo sadio de crescimento capitalista. Pelo contrário, a contradição de evadir a limpeza de capitais nos ’70 estourou na crise econômica atual, com traços históricos de Grande Recessão que superam em muito as consequências das turbulências econômicas das últimas três décadas.
A “Dama de Ferro” concentrava o que havia de mais reacionário na incursão por recompor suas taxas de lucro, usando a liquidação das conquistas operárias como substituto da massiva destruição de capitais, o que não podia ter longo alcance. A política de financeirização e de super-exploração do trabalho (com a incorporação dos ex-estados operários burocratizados como a China no circuito da valorização capitalista) foram a herança legada por esta miserável figura de etapa.
É com o mais profundo repúdio e ódio que contemplamos o desaparecimento de Margareth Thatcher. Seu macartismo e ódio aos trabalhadores justificam as manifestações de celebração por parte dos trabalhadores mineiros e de todo o mundo, frente ã sua morte. Mas o legado sobrevive ao homem. No sexto ano da crise histórica do capitalismo, os mecanismos de que se valeram os chefes da contra-revolução neoliberal, como a divisão das fileiras operárias, a precarização do trabalho, as políticas de ajuste com cortes sociais nas áreas mais sentidas como a saúde e educação, e principalmente, a influência reacionária da burocracia sindical, que utiliza todo o seu prestígio e aparato para paralisar qualquer tentativa dos trabalhadores de mover uma batalha consciente contra a exploração imperialista, estão de pé. A tendência crescente de entrada em cena dos setores estratégicos da classe operária tem de estar dirigida em função de destruir o regime burguês e seu estado. Somente a experiência surgida das ações de massas contra as misérias herdadas da etapa da restauração, culminadas na crise, pode ajudar a classe trabalhadora a refundir seu Estado-Maior da revolução, um partido marxista revolucionário que se funda com a vanguarda operária, derrote suas direções tradicionais, recupere seus instrumentos de combate e lute pelo poder durante a agonia capitalista.
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