A situação aberta na Turquia mostra uma vez mais que, quando há mato seco, uma faísca é o suficiente para acender uma fogueira política. A duríssima repressão policial contra um grupo de jovens ambientalistas que estavam na praça Taksim em Istambul, protestando contra a construção de um shopping onde agora há um parque, se transformou em uma rebelião nacional contra o governo do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP). A repressão estatal contra esta onda de protesto deixou um saldo provisório de dois jovens mortos pelas forças repressivas e mais de 1500 detidos.
O governo que havia adotado uma posição dura contra os manifestantes mudou sua política. Aproveitando a ausência de Erdogan em viagem ao Marrocos, o vice-primeiro-ministro pediu desculpas pelos “excessos repressivos”, reconheceu como legítimo o protesto dos ambientalistas e propôs uma mesa de diálogo.
Mas até o momento, nem este gesto do governo nem a intervenção em andamento do opositor Partido Republicano do Povo, tradicionalmente ligado ás Forças Armadas, puderam acabar com a rebelião em curso. Após dias de mobilizações massivas, principalmente dos setores da classe média urbana e diversas minorias oprimidas, o protesto entrou em uma nova etapa no dia 5 de junho com a greve e a mobilização convocada pela Confederação de Sindicatos do Setor Público (KESK) e a Confederação de Sindicatos de Operários Revolucionários (DISK) que dizem ter 240 mil e 350 mil membros respectivamente. Dessa maneira, amplos setores da classe trabalhadora se somaram à luta. Ao grito de “Taksim, resista, os trabalhadores chegam!” dezenas de milhares de pessoas confluíram na Praça Taksim, que se transformou no coração da revolta, exigindo a destituição dos chefes de polícia, a libertação de todos os detidos e a suspensão do polêmico projeto de “urbanização” do governo. Cenas semelhantes se repetiram em Ankara e outras cidades importantes do país.
Ainda que a mobilização não seja suficiente para derrubar o governo, que após uma década no poder ainda conserva o apoio de importantes setores da população, Erdogan enfrenta a primeira crise política de magnitude cujo final permanece aberto.
Os motores da mobilização
Esta revolta social explosiva, que surpreendeu o governo, mostra que sob a aparente estabilidade política, sustentada por uma década de altas taxas de crescimento econômico, vinha se gestando um profundo descontentamento contra o regime autoritário e opressor. O protesto, com uma alta cota de espontaneidade, é produto da combinação de demandas democráticas e sociais imediatas com problemas políticos que estão na base da constituição do Estado turco, entre eles: a opressão nacional da minoria curda; a tensão entre o nacionalismo laico e as forças políticas islà¢micas; o papel da Turquia como principal aliado do imperialismo norte-americano e membro da OTAN e sua localização como “ponte” entre o Ocidente e o Oriente Médio.
Amplos setores das classes médias laicas veem como o Partido da Justiça e do Desenvolvimento, apesar de representar uma variante moderada do islamismo e não ter respeitado o caráter laico do Estado, tenta avançar na imposição de valores religiosos – como a restrição ao consumo do álcool – o que potencialmente coloca em perigo direitos democráticos, como o direito ao aborto conquistado em 1983. Por sua vez, Erdogan impulsiona uma reforma constitucional que implicaria uma mudança mais bonapartista para um regime presidencialista, e lhe permitiria um novo turno no poder, desta vez como presidente.
Junto com estas demandas democráticas, é evidente a profunda desigualdade social que se aprofundou, apesar de uma década de crescimento com taxa média de 7,5% que transformou a Turquia na 17ª maior economia mundial. Na sombra do AKP se enriqueceu uma burocracia política submissa e uma elite empresarial que tirou vantagens das políticas neoliberais e das privatizações. O programa de “urbanização” impulsionado por Erdogan, e que desatou a atual onda de protesto beneficia aos capitalistas e aqueles que podem pagar por casas de luxo, enquanto buscam expulsar os pobres e os trabalhadores dos bairros centrais de Istambul. Isso explica parte do ódio popular, sobretudo entre os setores juvenis, que são os que mais foram afetados pelo desemprego agora que o “milagre turco” se esgotou e o crescimento econômico não ultrapassa os 3%.
Outro elemento que alimenta o descontentamento com o governo é a oposição crescente ã política intervencionista na Turquia, em particular, sua ingerência direta no conflito na Síria com o beneplácito dos Estados Unidos, sobretudo após o atentado terrorista atribuído a simpatizantes do regime de Assad que custou a vida de 46 civis.
As consequências regionais da crise do modelo turco
A crise aberta na Turquia tem projeções regionais: o país é um aliado estratégico do imperialismo norte-americano no mundo muçulmano, é uma peça chave para sustentar os interesses geopolíticos imperialistas e do Estado sionista no Oriente Médio, e está tendo um papel central na guerra civil síria, além de ser membro da OTAN.
Por isso, Washington está mais que preocupado pelo golpe que significaria a queda revolucionária de Erdogan. Os EUA promovem o chamado “modelo turco”, isto é, um regime de democracia tutelada, baseado na hegemonia política do islamismo moderado e no papel das Forças Armadas como garantidor do regime pró-imperialista, como saída política de desvio nos países nos que, produto da “primavera árabe” caíram as ditaduras pró-imperialistas, como acontece no Egito e na Tunísia com o governo da Irmandade Muçulmana. A crise deste “modelo” produto da mobilização popular pode alentar a luta de amplos setores da vanguarda operária e juvenil que vem enfrentando estes governos reacionários.
Até agora a Turquia havia se mantido a margem da “primavera árabe”, quiçá esta crise seja uma advertência de que está chegando sua vez.
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