Uma imponente mobilização de massas selou o destino do presidente egípcio Mohammed Mursi, derrubado em 3 de julho por um “golpe branco” do exército que contou com o apoio de todo o amplo setor opositor ao governo da Irmandade Muçulmana. O titular da Corte Suprema assumirá o governo transitório. Ao não poder derrotá-lo com métodos contrarrevolucionários abertos, pela correlação de forças existente, o exército optou por cavalgar o processo para conduzi-lo a uma transição controlada e evitar sua radicalização.
As mobilizações populares começaram em 30 de junho, quando uma multidão estimada em vários milhões – composta por jovens, trabalhadores, pobres urbanos e setores populares, laicos e religiosos – tomou de assalto as ruas exigindo a renúncia de Mursi. Essa onda abarcou desde o Cairo e Alexandria, até pequenas cidades e aldeias, passando pelo centro industrial de Mahalla onde se concentra grande parte da vanguarda operária.
A convocatória partiu do movimento “Rebelde” (Tamarud), um pequeno coletivo juvenil que em maio havia realizado uma campanha de assinaturas pela destituição de Mursi. A esse pequeno grupo se uniu a oposição burguesa da Frente de Salvação Nacional (que reúne antigos opositores ao regime de Mubarak, como El Baradei e a setores do velho regime mubarakista) e o partido islà¢mico radical al Nur.
A coalizão “30 de junho” formada por essas organizações, assumiu a direção do processo com o objetivo de evitar que a mobilização avançasse de questionar ao governo de Mursi a enfrentar o conjunto do regime, em particular o exército que segue sendo o verdadeiro poder atrás do trono. Por isso, apesar de sua heterogeneidade todos coincidiram em negociar com as forças armadas a formação de um “governo tecnocrático” de transição que substitua o de Mursi e convoque novas eleições presidenciais.
Para além de que essas organizações conseguiram canalizar a mobilização, ajudados pelo fato de que o exército decidiu não reprimir e se preservar para seguir atuando como artífice da ordem política que emerja, os protestos mostram que após o fracasso da primeira tentativa de desvio, continua se desenvolvendo o processo revolucionário, aberto com a queda da ditadura de Mubarak a princípios de 2011, motorizados por profundas demandas econômicas e democráticas.
O fracasso do primeiro desvio
Após a queda de Mubarak, as forças armadas, as classes dominantes locais e o imperialismo puseram em marcha uma “transição democrática” para desviar o processo revolucionário. Apesar das mobilizações continuarem, conseguiram, mesmo que não sem contradições, impor uma nova constituição e realizar eleições presidenciais, que no segundo turno e por uma pequena margem, foi ganha pelo Partido da Justiça e Liberdade, o braço político da principal organização islà¢mica burguesa, a Irmandade Muçulmana.
Porém, bastou um ano no poder para que ficasse exposto ante amplos setores de massas o caráter reacionário, neoliberal e pró-imperialista da Irmandade Muçulmana a serviço dos interesses dos empresários locais, do imperialismo e das monarquias do Golfo. As concessões democráticas, inclusive formais, foram mínimas. O aparato estatal da ditadura de Mubarak se manteve intacto, o exército conservou o papel de árbitro e de controlador de cerca de 40% da economia, o país seguiu subordinado aos Estados Unidos e manteve seus compromissos com o Estado de Israel. A isso se soma que a nova constituição dá mais poder aos setores islà¢micos e ameaça o caráter laico do Estado. No marco da crise capitalista e da decadência da economia egípcia dependente das importações, as condições de vida das amplas massas seguiram se deteriorando. O desemprego passou de 9% em 2010 a 13%. Ao menos 25% da população vive na pobreza. A política de Mursi foi aceitar as receitas de ajuste do FMI para obter financiamento, como o fim dos subsídios aos combustíveis e bens de consumo básicos.
Por isso, desde sua eleição, Mursi enfrentou uma onda de greves sem precedentes, que em setores da vanguarda excederam as demandas salariais, para defender um programa de nacionalização, como fizeram os trabalhadores têxteis de Mahalla. Só no primeiro trimestre de 2013, Mursi enfrentou 2400 protestos operários e populares.
Perspectivas
Apesar de sua impactante massividade, um dos limites das mobilizações atuais foi seu caráter fundamentalmente popular. A classe operária, que teve um papel fundamental em 2011 precipitando a queda de Mubarak, além de ser um ator de peso nas lutas de resistência que colocaram em questão as políticas de desvio, nestas mobilizações interveio não como classe com seus métodos e organizações, senão diluída nas amplas massas. Do ponto de vista do programa político, seu eixo foi a luta contra o governo de Mursi, e não contra o conjunto das instituições do regime e do Estado e contra o imperialismo, o que facilitou a política da coalizão “30 de junho” de apresentar o exército como “amigo do povo” e gerar confiança e expectativas em uma saída implementada pelas forças armadas. Até agora a política parece ser estabelecer um governo mais liberal e laico, que conte com o apoio dos Estados Unidos, que consiga ocultar que o verdadeiro poder que segue sendo as forças armadas.
Porém, a saída não parece simples para essa tentativa de um segundo “desvio”. Os trabalhadores, os jovens e as massas populares egípcias vêm de uma experiência extraordinária de dois anos e meio de lutas, no marco dos processos da primavera árabe. O islamismo político moderado, fundamentalmente a Irmandade Muçulmana, que é a principal força político-religiosa que contava com o apoio de massas, além do exército, está numa crise profunda. Porém, está por ver-se se será integrada ou não ao novo governo que surja. Se pelo contrário, essa fica ã margem da nova “transição” não se pode descartar que setores da própria Irmandade ou grupos islà¢micos mais radicalizados passem a uma oposição ao novo regime recorrendo inclusive a métodos terroristas que empregaram no passado.
Num primeiro momento as massas celebraram a queda de Mursi e a saída colocada pelas forças armadas como um triunfo. Porém, mais cedo que tarde suas expectativas se chocarão com essa saída reacionária. Para evitar que a mobilização de massas seja usada como base da manobra do exército e da oposição patronal, é necessário em primeiro lugar não confiar em nenhum nível no novo governo, nem nas forças armadas. Contra a tentativa de aprovar uma constituição sob a tutela do exército e do imperialismo, há que impor uma Constituinte Livre e Soberana. Mas para que a classe operária e a juventude explorada e oprimida imponham suas reivindicações, têm que desenvolver seus próprios organismos de autodeterminação e levantar um programa transicional que una as reivindicações democráticas, sociais, e anti-imperialistas e abra caminho a lutar pelo poder operário e popular.
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