Depois de lançar uma longa polêmica contra nossa corrente internacional, a FT-QI, sob o título de “Exigir ou não armas ao imperialismo?” para justificar seu apoio ás forças rebeldes cuja principal expressão é o Exército Livre Sírio (ELS), e ante nossa resposta em “A LIT-QI se afunda no complexo cenário sírio”, esta corrente encabeçada pelo PSTU brasileiro, não respondeu seriamente nenhum de nossos principais argumentos que demonstram como se equivocam na analogia com a guerra civil espanhola, como sua lógica de “revolução democrática” os leva a se adaptar ao campo burguês rebelde apoiado pelo imperialismo e a levantar um programa puramente democrático.
Entretanto, buscando defender uma posição cada vez mais insustentável frente ã realidade e frente ã teoria, pelo menos para quem se reivindica trotskista, parecem buscar uma carta salvadora numa surpreendente inovação: a de que sim ou sim, em qualquer guerra, tem que optar pelo apoio a um dos campos militares, sem importar a definição concreta de que tipo de conflito bélico se desenvolve, qual é a natureza de classe das forças que se enfrentam e que papel desempenha a classe operária, nem quem a dirige.
É completamente falso, interessado e alheio ã toda a tradição do marxismo revolucionário sustentar que frente a toda guerra os revolucionários temos que nos posicionar sim ou sim de um ou outro dos bandos em luta (ver “Os marxistas frente ás guerras da nossa época”). O que sim é necessário é se posicionar desde a perspectiva do desenvolvimento revolucionário da luta de classe operária e seus aliados, o que inclui diretamente a dimensão internacional da luta de classes. Nunca somos “abstencionistas”, mas sempre tomamos partido desde o ponto de vista dos interesses do proletariado internacional e da revolução socialista internacional.
As guerras civis
Nas guerras civis, que são um tipo particular de guerra, também temos que ser precisos na caracterização, pois não são todas iguais. Em termos gerais, uma guerra civil desde o ponto de vista marxista, constitui uma fase determinada da luta de classes em que, rompidos os marcos da legalidade, se chega ao enfrentamento público e, em certa medida físico, das forças enfrentadas. Trotsky define: “a guerra civil (revolucionaria, NdA) constitui uma etapa determinada da luta de classes, quando esta, rompendo os marcos da legalidade, vem a se localizar no plano de um enfrentamento público, e em certa medida físico, das forças enfrentadas. Concebida deste modo, a guerra civil abarca as insurreições espontâneas, determinadas por causas locais, as intervenções sanguinárias das hordas contrarrevolucionárias, a greve geral revolucionária, a insurreição para a tomada do poder e o período de liquidação das tentativas de levantamentos contrarrevolucionários” [1].
Um tipo é a guerra civil produto da revolução operária como foi o caso russo entre 1918 e 1921 ou o caso espanhol entre 1936 e 1939. Neste caso, os trabalhadores e as massas pobres possuem um interesse direto e vital pelo triunfo do campo revolucionário e até pela extensão da guerra a outras regiões e países. Aqui, o confronto é um capítulo a mais da própria revolução que deriva da inevitável resistência da burguesia em perder suas posições políticas e, sobretudo econômicas, e do imperialismo em tratar de reverter a ameaça a seus próprios interesses e a ordem internacional. Neste tipo de guerra civil se enfrentam direta e abertamente as classes sociais, os oprimidos contra os opressores, os explorados contra os exploradores. No caso russo, ã cabeça do campo progressivo se encontrava uma direção revolucionária expressada no Partido Comunista (bolchevique) fortemente enraizado nos soviets de operários, camponeses e soldados.
No caso espanhol, encontrou-se ã cabeça a burguesia “democrática” e os reformistas (representados pelo PSOE de Largo Caballero e Juan Negrín) e os stalinistas do Partido Comunista. Não obstante como já apontamos amplamente em nosso artigo anterior, Trotsky exigiu armas para o campo republicano pois nele se expressava a revolução através das milícias da CNT e outros sindicatos e das organizações políticas da esquerda, do controle operário em Barcelona, das coletivizações no campo, etc. Aqui Trotsky distingue entre duas etapas da guerra civil: antes e depois da derrota de Catalunha, isto é, antes e depois de que os republicanos, com o inestimável auxilio dos stalinistas, conseguiram derrotar desde dentro a revolução proletária. Por isso, vai levantar depois da derrota da vanguarda operaria em Barcelona em maio de 1937:
“Contudo, a completa vitória do exercito republicano sobre Franco não significa de modo algum o triunfo da democracia. Os operários e camponeses conduziram duas vezes os republicanos e seus agentes ao poder: em abril de 1931, e em fevereiro de 1936. As duas vezes, os heróis da Frente Popular cederam a vitória do povo aos representantes mais reacionários da burguesia. A terceira vitória conseguida pelos generais da Frente Popular significaria seu inevitável acordo com a burguesia fascista, ás costas dos operários e camponeses. Um regime deste tipo, não seria mais que outra forma de ditadura militar, inclusive sem Monarquia nem domínio aberto da Igreja Católica” (Lição da Espanha: última advertência, dezembro de 1937).
Frente ã guerra civil na Síria
Um ponto fundamental que a LIT-QI esquece na Síria é que, nas guerras, a delimitação não se faz pelo caráter mais ou menos “democrático” ou “opositor” de cada campo, mas sobre a base de seu conteúdo de classe e sua relação com o imperialismo. No caso da Líbia o ponto de partida básico para um posicionamento marxista era opor-se ã intervenção imperialista e denunciar os seus agentes no terreno – as direções milicianas que avalizavam os bombardeios da OTAN e a demagogia “democrática” das potencias ocidentais-, ao mesmo tempo que lutar pela derrubada revolucionaria da ditadura de Kadafi. Na Síria corresponde se pronunciar pela derrubada revolucionária do regime de Al Assad, enquanto se denuncia a interferência imperialista e se combate politicamente as direções da oposição que são seus agentes, ao invés de se localizar, sem mais, em seu campo por ser “antiditatorial” utilizando como consigna acobertadora a de “armas para os rebeldes”.
Para justificar isso, a LIT-QI necessita negar uma caracterização marxista do que ocorre hoje. Deve dissolver o caráter concreto da guerra civil para justificar seu alinhamento, “sim ou sim”, no lado antiditatorial. Isto explica sua curiosa crítica de que só teríamos uma “caracterização” e não uma “política” para Síria. É o ABC para todo aquele que se pretenda marxista, que em política se deve partir de uma caracterização da realidade, dos setores em luta, de sua política. A LIT-QI beira o ridículo quando ao mesmo tempo em que deprecia uma caracterização séria da situação síria, insiste em sua obsessiva pergunta de “para onde apontamos nossas armas”. Para sustentar a todo custo sua política, deve negar as mudanças que vem sofrendo o processo sírio.
Se até finais de 2011 primava o caráter de levante popular, a derrota dos chamados ã greve geral e as mobilizações de finais desse ano e começos de 2012 significou mudanças decisivas no cenário da guerra civil. A intervenção espontânea das massas retrocedeu e no enfrentamento armado passaram a primar frações armadas ligadas ao imperialismo, ã Turquia e ás petromonarquias, começando a se reagrupar sob a oposição burguesa e o ELS. Muitos analistas reconheceram esta mudança, registrado numa infinidade de informes jornalísticos e análises. Por exemplo, um intelectual de esquerda conhecedor do Oriente Médio como Tariq Ali tirava como conclusão “Mas muito mudou desde o começo. A esquerda síria, na qual tenho muitos amigos, antigos e novos, é débil e não pôde reter o controle do movimento de massas em nenhum lugar. Era forte em Aleppo e partes de Damasco, mas foi logo superada pela Irmandade Muçulmana e grupos a sua direita, respaldados pelo Catar e pela Arábia Saudita. Os desertores de Assad foram recuperados pela Turquia e pela França. Portanto o caráter do levante mudou depois do primeiro ano. Como podemos deixar de registrar esse fato? A relação atual das forças não favorece a nenhum grupo secular ou progressista. Pretender outra coisa é estar cego pelas ilusões ou os requerimentos da política entre sectários de esquerda” [2].
Por suposto, a LIT-QI, que substitui o marxismo como “análise concreta de uma realidade concreta” por abstrações como “revolução”, “guerra civil”, etc., sem conteúdo preciso, não tem nenhuma preocupação por essas mudanças qualitativas na crise síria. Assim como ontem considerava um fato menor que os rebeldes líbios aderissem ã intervenção da OTAN, hoje não dá a menor importância para o fato de que as forças rebeldes se convertam em agentes dos planos imperialistas e de seus aliados, nem dá importância a que a atividade das massas tenha retrocedido enormemente em respeito ás primeiras fases da luta, deixando de ser o fator predominante na situação.
Se a LIT-QI reconhecesse esta viragem chave no processo sírio, não poderia insistir na sua forçada e incorretamente utilizada analogia com a guerra civil espanhola, para justificar seu chamado a pedir armas para os rebeldes ao imperialismo. “Esquece-se” de que a guerra civil espanhola foi o último capítulo da grande revolução operária e camponesa que se abriu em 1931, enquanto que na Síria, a guerra civil é a consequência do desvio do inicial levante popular, sob a sangrenta repressão de Al Assad para uma guerra de aparatos, onde as frações armadas que respondem ã oposição burguesa (seja laica, islamista “moderada” ou fundamentalista) subordinam os elementos remanescentes do levante inicial, e que não desempenham hoje nenhum papel determinante nem são expressão de um processo de “ações historicamente independentes das massas” e de “duplo poder” operário e popular, em que pese a propaganda que fazem de certos “comitês” a LIT-QI e outras correntes da esquerda internacional.
Se cabe uma comparação com a Espanha, é a que formula Trotsky frente a perspectiva da derrota da revolução proletária nas fases finais do enfrentamento armado: “Enfim, é possível que as vitorias parciais dos republicanos sejam utilizadas pelos intermediários anglo-franceses “desinteressados” com o fim de reconciliar os beligerantes. Não é difícil de compreender que, em uma variante deste tipo, os últimos restos de democracia seriam sufocados pelos fraternos abraços dos generais Miaja (comunista) e Franco (fascista). Uma vez mais, só pode vencer ou a revolução socialista ou o fascismo” [3].
Se a LIT-QI seguisse o método de Trotsky, veria que na medida em que as direções rebeldes terminem de se desvencilhar dos elementos do levante popular de 2011, cada vez mais a dinâmica das frações rebeldes será impor um regime antidemocrático, pró-imperialista e antioperário, similar no essencial ao de Al Assad e, inclusive, pactuando com setores do próprio regime. É outro o objetivo das “negociações de paz” patrocinadas pelo imperialismo, Rússia e outras potências?
A militarização do conflito como “guerra de aparatos”, em que a combinação da bárbara repressão por Al Assad e a política reacionária das direções da oposição, do ELS e da Al-Nusra, afogou praticamente a iniciativa espontânea das massas, abriu as portas não a uma “vitória colossal das massas” mas a um plano de negociações para uma conferencia “de paz” entre os dois lados, que deveria se iniciar em janeiro em Genebra, se prosperam os acordos iniciais. Com este plano impulsionado pelo imperialismo, que desempenhará o papel de articulador da “pacificação” e da “transição” a um novo regime, tratam de impor uma saída política ã guerra civil, baseada em impedir a desintegração do Estado sírio e evitar uma maior desestabilização regional.
Nada podem esperar os trabalhadores e o povo pobre dessas negociações. Nenhum dos dois grandes projetos políticos das forças opositoras respondem ás demandas profundas das massas que tomaram as ruas em 2011 contra o regime de Damasco. O da oposição “laica” (CNFROS e ELS), dirigida por setores burgueses que querem desalojar Al Assad para tomarem o controle do Estado, mas que não estão dispostos a que a propriedade privada seja afetada nem a romper com o imperialismo; o outro, de Al Nusra e outros setores salafistas, propugna uma república teocrática islà¢mica. Estes dois planos em disputa estão levando a enfrentamentos, inclusive armados, entre ambos setores e geram contradições para o “plano de paz”, por hora questionado pelos islà¢micos, mas saudado pela oposição laica.
Neste quadro, a política da LIT-QI de pedir armas ao imperialismo para o setor laico da oposição a coloca a reboque da política deste bloco, de buscar uma mudança no regime envernizado de “democrático” mesmo que inclua frações do atual regime e, sobretudo, das Forças Armadas, e que se gesta sob a tutela imperialista. Nos perguntamos: consideraria a LIT-QI uma transição democrática semelhante, que retire de cena Al Assad, como uma “vitória das massas”? Seria esta uma variante da “revolução política” no regime que considera a teoria da “revolução democrática” da LIT-QI?
A política da LIT-QI pode estar adornada (como tratam inutilmente de se defender), aqui e ali, com alguma frase de propaganda contra as direções burguesas, mas toda sua política se adapta ao que supõe ser o “campo democrático”. A concepção de “revolução democrática” que está no centro desta discussão, é uma rocha pendurada no pescoço da LIT-QI que os vai afundando cada vez mais, aferrados ao campo “anti-ditatorial” manipulado pelo imperialismo, sem se propor uma estratégia revolucionária.
Na realidade, ã LIT não lhe interessa analisar o caráter da guerra civil na Síria. Simplesmente se contenta com uma máxima (segundo eles leninista) segundo a qual os revolucionários, em caso de guerra, devemos apoiar e participar inexorável e categoricamente de um ou outro dos campos militares enfrentados. Caso contrário, incorremos em um “abstencionismo sectário” e em última instancia em uma política funcional ao bando mais forte, neste caso a ditadura sangrenta de Al Assad.
A política da LIT-QI e a política da FT-QI
A LIT-QI insiste em acusar a nossa corrente de não tomar partido frente ao levante de massas de 2011 e a guerra civil em curso nesse país. Falso. O certo é que desde o primeiro momento das mobilizações de começos de 2011 estivemos pela queda revolucionária da sangrenta ditadura de Al Assad, como se pode ver em quaisquer de nossos artigos da época. Assim, ao contrário dos chavistas e castristas (como nos tenta acusar a LIT-QI) alinhados com o regime de Damasco, saudamos que “Os ventos da ‘primavera árabe’ parecem estar chegando ã Síria, um país chave no equilíbrio regional” [4]; denunciamos a repressão de Al Assad chamando “Abaixo o regime opressor. Nenhuma ingerência imperialista” [5] e definimos que “Apoiamos com todas as nossas forças o levante dos trabalhadores e do povo sírio. Repudiamos a criminosa repressão do regime de Assad. Sua investida assassina é uma prova a mais de que as demandas mais sentidas do povo e dos trabalhadores sírios só poderão se tornar efetivas com a ação independente dos trabalhadores e das massas (...) Pela queda revolucionária de Assad” [6]. Coerentemente, apontamos que “Na Síria, um programa de ação para a derrubada revolucionária da ditadura de Al Assad deve combinar as reivindicações imediatas das massas, urgentes para responder ã ruína econômica e a catástrofe social, com as tarefas e medidas transicionais como a expropriação sob controle operário de fábricas, bancos e grandes empresas, a reversão das empresas privatizadas pelo regime, a repartição das terras entre os camponeses pobres, e a ruptura com o imperialismo. As tarefas da guerra devem ser articuladas nessa mesma lógica transicional, para desenvolver o armamento de massas e sua centralização nas milícias em contraste com a lógica de aparatos faccionais e de militarização burguesa da ELS e as diversas direções islà¢micas. Os aspectos especificamente militares do programa devem estar ligados estreitamente ã grande tarefa estratégica da auto-organização soviética das massas na luta, na perspectiva do poder operário e popular” [7]. Tão clara foi nossa postura frente ao processo sírio que nossa companheira Claudia Cinatti foi “respondida” pelo embaixador sírio na Venezuela, Ghassan Abbas [8].
Como pode ver facilmente o leitor, a tentativa da LIT-QI de amalgamar nossas posições com as do populismo que apoia Al Assad não tem o menor fundamento. Ademais, por si só estas citações (e as que se poderia extrair das numerosas notas que publicamos) demonstram que é falsa sua acusação de que não teríamos política para Síria, mas somente uma “caracterização”.
As desastrosas consequências políticas concretas da concepção de “revolução democrática” da LIT-QI levou-os na Líbia a saudar como grande triunfo revolucionário a queda de Kadafi nas mãos dos rebeldes que já trabalham em estreita relação militar e política com a OTAN. No Egito, a localizar-se de fato no campo “anti-Mursi” que aprovou o golpe de Estado que expropriou as grandes mobilizações contra a Irmandade Muçulmana e impôs uma nova ditadura militar, que nestes dias está dando um novo avanço repressivo impondo uma lei contra os protestos e até encarcerando mulheres menores de idade da Irmandade Muçulmana. Na síria, sua localização no campo anti-Assad, os deixa a reboque do campo rebelde, que nem é consequentemente democrático, subordinado como está ao plano imperialista, nem sequer é laico (pois o integram também setores islà¢micos moderados, ainda que formem um bloco aparte dos fundamentalistas).
Na Síria, uma política trotskista, vale dizer consequentemente operária, socialista e revolucionária, deve fundamentar-se na combinação da luta de massas pela derrubada revolucionária de Al Assad com a denúncia consequente de toda intervenção –militar e política- do imperialismo. Isso é inseparável do combate político aos agentes de seus planos sobre o terreno, por mais que lamente a LIT-QI, que sob a consigna de pedir ao imperialismo armas para os rebeldes nega-se a fazer. Não se trata de encobrir-se com algumas frases de propaganda contra o plano imperialista ou contra o caráter burguês ou conciliador das direções rebeldes. Trata-se de fazer uma análise marxista da situação real e levantar uma política consequente de independência de classe que parta de compreender que as reivindicações mais sentidas das massas, políticas e sociais, que deram origem ao levante de 2011, só podem ser resolvidas integral e efetivamente através da mobilização revolucionária das massas que jogue abaixo a ditadura de Al Assad e imponha um governo dos trabalhadores e do povo pobre, independente de qualquer outra variante burguesa, uma revolução operaria e socialista.
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