Na grande mídia e nos principais jornais do país existe um enorme esforço para “despolitizar” completamente o chamado “rolezinho” (uma reunião de jovens da periferia e de bairros operários para frequentar os shoppings). O atestado ao caráter supérfluo do rolezinho estaria nas entrevistas dos jovens que dizem que só vão aos shoppings para “zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras e se divertir”. Mas o que fez então Dilma Rousseff promover uma reunião com ministros para discutir os rolezinhos? O que faz toda a imprensa burguesa e grande mídia só falar nisso?
Quando um “simples rolê” escancara problemas estruturais
Muitas vezes é em fenômenos simples que se apresentam as determinações mais fundamentais, e a equação no problema colocado é muito simples: os empresários estão com um problema enorme, pois um espaço de livre circulação como os shoppings não será mais de livre circulação. Mas o que há de novo? É que se escancara o problema, já que espaços como esse em realidade não são de “livre circulação”, mas são restritos a classe média branca e elitista e ás camadas burguesas.
A primeira questão que o rolezinho coloca, portanto, é que ã população negra não se é permitido o direito de frequentar os “espaços para brancos e ricos”. Mais do que isso, escancara as formas de “apartheid” em sua forma nacional, a saber, uma forma camuflada e velada de racismo, que mantém a herança escravocrata de nosso país, já que nos shoppings de elite do país os negros já estão há muito tempo lá dentro, mas não pra se divertir, mas para trabalhar na limpeza e os postos mais precarizados.
Um segundo ponto que o rolezinho escancara é a falácia do gradualismo lulista (“país de todos”): a generalizada campanha do “país de classe média”, que levou uma parcela da população jovem trabalhadora e mesmo setores da periferia a se ver como parte desses que estão gradualmente avançando no país, evidentemente colocava os mesmos anseios a esses jovens; ou seja, “se sou classe média, porque não posso fazer o que essa classe faz há anos, ir ao shopping…?”
Aqui se vê que mesmo em elementos aparentemente “insignificantes” se esconde o pavor da classe dominante racista de que os negros se unam em alguma reivindicação democrática ou mínima, como ocupar o espaço de um shopping, o que expressa as raízes da formação nacional do país e o peso que a questão negra tem para pensarmos o Brasil à luz de uma perspectiva de emancipação dos trabalhadores e a população pobre no concreto.
O problema da legalidade e os espaços de lazer da juventude
Mas a juventude não busca o “rolê” no shopping como sua primeira opção: na verdade, ã juventude da classe trabalhadora e periferia já foram fechadas todas as portas. É incrivelmente noticiado em todos os meios a repressão policial incessante nos bairros e favelas, incluindo chacinas bárbaras (como o caso de 14 mortes seguidas pela polícia em Campinas), a proibição dos bailes funk, a repressão ao hip-hop e outras manifestações culturais da periferia, ou atos de brutalidade horrenda como o assassinato do jovem Kaique de 16 anos, negro e homossexual, outra morte produto da homofobia), e os espaços são cada vez mais “ilegais” para os jovens, restando shoppings e alguns grandes parques onde buscam se divertir. Evidentemente, a lógica fetichista da mercadoria também domina a consciência dessa juventude, como explicita um dos funk tipo ostentação de maior sucesso em 2012, “Vida é ter: um Hyundai, uma Hornet, 10 mil pra gastar, Rolex e Juliet\ Melhores kits, vários investimentos, ai como é bom ser o top do momento!” (Top do momento, Mc Danado). No entanto, o mais “fácil” analiticamente aqui é condenar o consumismo e os shoppings que não passam de templos das mercadorias, de grandes marcas e de todo o fetichismo capitalismo da sociedade de consumo.
Entretanto, é preciso ligar essa crítica aos fundamentos desse consumismo, ã esfera da produção: o conjunto de monopólios capitalistas que ao sangue da exploração desenfreada e selvagem de uma massa de trabalhadores no Brasil e no mundo gastam rios de seus lucros, além de basearem suas mercadorias nessa exploração, ainda gastam seus lucros exorbitantes nas propagandas e na industria cultural que cultua esse consumismo.
O problema da busca desses jovens aos grandes shoppings está justamente no apartheid e na industrial cultural, ou seja, na lógica capitalista que os condena ã segregação, ã repressão policial nos seus próprios bairros e os aparta de qualquer possibilidade de recreação, lazer, arte e cultura (cinemas, teatros, clubes ou qualquer forma de expressão). A cultura da periferia, através dos funks e hip-hop é de resistência primeiro pelas condições de vida impostas a essa juventude, mas também porque tem que lutar contra a marginalização e remodelação que a industria cultural tenta promover (só aceitando as músicas que entram em seus padrões, como o chamado “funk ostentação”).
Nesse sentido, existe uma combinação entre a reivindicação de espaços de lazer e cultura para esses jovens em seus bairros, que sejam geridos e organizados pelos bairros e públicos, mas na dinâmica concreta também lutar para romper o apartheid nos grandes centros culturais e de lazer, de modo que os próprios shoppings e grandes centros deveriam servir a maioria da população, com transporte gratuito para os trabalhadores e a juventude que queira desfrutar de lazer, arte e cultura, portanto, expropriando esses monopólios enormes que só fazem enriquecer com a lógica do apartheid e colocá-los como centros estatais colocados a serviço da população de conjunto, com cinemas, teatros, e toda a infra-estrutura aberta a todos os “rolezinhos” desses jovens.
O que nesse fenômeno aparentemente “despolitizado” amedronta os governos burgueses?
De certa forma, o fato da juventude trabalhadora ou da periferia irem até os shoppings (ás vezes ficando ao lado de fora, outras entrando) não é uma novidade: em muitos casos já se expressava todo o racismo e a segregação que estão sendo escancarados. A mudança é dupla: em primeiro lugar, do conjunto das classes e frações de classe frente ao fenômeno, pois toda a juventude que participou das jornadas de junho e toda a influência politizadora no país (que leva por exemplo ao rechaço ã violência policial) agora se expressam em diversos atos pela livre manifestação dos rolezinhos. O que ontem seria uma repressão da polícia apoiada pela classe média racista dos shoppings (como foi o caso em Vitória), hoje recebe um questionamento de setores de massa da sociedade. A subjetividade no país mudou e isso expressa também o porquê do “fenômeno” nacional.
Mas isso também se reflete internamente: a juventude dos rolezinhos se sente mais disposta a romper contra as barreiras do preconceito e o apartheid, especialmente depois da virada do ano, onde os jovens vão ao shopping conscientes de que terão de enfrentar a resistência da PM. Por isso a solidariedade dos “jovens de junho”, em particular os universitários, ao movimento. Isso amedronta os empresários e governos burgueses: a fusão entre as demandas de junho, como a estatização do transporte sobre controle da população, saúde e educação públicas e de qualidade de fato etc. com a juventude trabalhadora e de periferia poderia promover um fenômeno nacional inspirado em junho, mas com uma composição mais proletarizada.
Por isso, não podemos deixar o governo e sua demagogia via Netinho de Paula querer “institucionalizar os rolezinhos”, que chegou Netinho a propor fazê-los no “estacionamento dos shoppings”, ou seja, aceitando desavergonhadamente o apartheid. Devemos combater essa hipocrisia do PT de “dialogar”, que na verdade é fazer o jogo dos empresários dos shoppings.
Num ano de Copa do Mundo para brancos e estrangeiros endinheirados, começar com mobilizações fundindo os diversos extratos da juventude poderia ser o melhor impulso ã colocar em xeque toda a estrutura capitalista do Brasil do apartheid.
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