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Em Irajá, cumprimentando os vitoriosos garis do Rio Janeiro
por : Val Lisboa

10 Mar 2014 | Hoje, na Comlurb de Irajá, fomos eu e Rita cumprimentar os garis pela espetacular vitória obtida com 8 dias de greve.
Em Irajá, cumprimentando os vitoriosos garis do Rio Janeiro

Hoje, na Comlurb de Irajá, fomos eu e Rita cumprimentar os garis pela espetacular vitória obtida com 8 dias de greve. Chegamos, eu e Rita, diretamente de São Paulo, ás 5h56min. Saindo da estação do metrô, em Irajá, ouvimos um chamado e logo vimos um jovem atravessando a rua para nos saudar. Era Alexandre, jovem gari que conhecemos no primeiro dia de piquete em Irajá, no sábado, 1° de março. Apesar do desgastante trabalho diário, cursa História numa universidade privada. Disse-nos, naquele sábado, quando fomos eu, Rita e Jenifer ao primeiro piquete da greve, para conhecer e tentar participar, que tentou uma universidade pública mas não conseguiu, se preparou num cursinho pré-vestibular popular. Neste dia chegou a nós dizendo que gostaria de saber “sobre os protestos, porque este é o meu primeiro protesto”. Assim fomos recebidos no primeiro dia de greve, como “expressão dos protestos”. Nada mal!

Hoje Alexandre atravessou a rua para nos abraçar, e como todos os operários, mostrar sua enorme gratidão. Agradeceu muitíssimo, nos parabenizou, dizendo que “vocês foram muito importantes”. Não vacilou em atrasar-se, pois começa o trabalho ás 6 horas, para nos cumprimentar. Seguimos juntos até a porta da Comlurb, conversando sobre a greve e a importância da vitória, o apoio que receberam etc. Indignado nos disse que “eles têm dinheiro mas não querem dar” e “quando um coitado rouba algo prendem pelo pescoço” – referindo-se ao caso de Botafogo, que correu o mundo com a foto de um jovem negro amarrado pelo pescoço a um poste com a corrente de bicicleta. Com bronca insistiu: “Quando é um prefeito, político, pode roubar o que quiser e nada acontece. Veja se pode? Houve um caso de alguns play boys queimarem um índio, e um deles foi condenado, mas a pena dele foi vir trabalhar aqui na Comlurb. Ora, querem dizer que os garis são criminosos? Que trabalhar na Comlurb é uma condenação, os pobres que trabalham aqui são todos condenados?” Exato, disse, a Comlurb não é cadeia para criminoso cumprir pena, vocês não são criminosos, são trabalhadores. Ele reforçou sua indignação. Mostra de uma consciência que dá bases fortes para compreender quem são os inimigos dos trabalhadores. E também para reconhecer os amigos, aliados. Assim fomos tratados, como amigos e aliados. Que orgulho sentimos!

Apressado, desculpou-se por nos deixar e foi vestir o uniforme para retomar o batente. Chegavam, aos poucos, alguns garis. Ao nos reconhecer, vinham nos abraçar, agradecer. Muitos atravessavam a rua, como Alexandre; outros, nos saudavam com palavras e sinais carinhosos. Quando os mais “linha de frente” iam chegando, os cumprimentos eram maus efusivos, e como chegavam cedo, trocavam a roupa e voltavam para conversar. Mulheres, homens, jovens, velhos. Todos pobres, a maioria negros. Todos felizes, encorajados, orgulhosos. Gratos, muito gratos. Cada abraço e aperto e mão, cada beijo, nos enchia de emoção.

De repente vem na outra calçada um negro lindo, forte, altivo, olhando firme para a frente, conversando carinhosamente com um companheiro de trabalho. Era Donaldo, um gari que nos impressionou desde o primeiro dia quando tomou a frente para orientar e confortar seus companheiros para que aderissem ã greve. Discursou com força, coragem, determinação. Sem arrogância, paciente, sereno, firme, convicto. Ele subiu num banco de cimento, explicou a greve e como deveriam agir, inclusive falando que não deveria “haver violência porque “eles vão querer usar tudo para nos enfraquecer e nós devemos ser inteligentes, saber o que queremos e como conquistaremos”. Um dirigente operário genuíno, concluímos, espantados eu, Rita e Jenifer. Já se notava, neste primeiro piquete de greve, que os garis, passando por cima do sindicato, tinham alguns dirigentes respeitados e determinados.

Hoje, depois do desgaste e cansaço dos oito dias e greve, estávamos diante deste negro que nos agradecia calorosamente, entremeando com gratidão “a Deus”, e nos dizia com voz firme que “fizemos direito e por isso fomos vitoriosos, e o apoio de vocês, desde o primeiro dia, foi muito importante”. Pediu licença para retirar-se e trocar a roupa pelo uniforme de gari. Nós estávamos felizes, mesmo cansados, por estar ali, renovando nossas energias entre os e as garis que mostraram seu valor e sua capacidade de ensinar, com humildade, a todos os que lutam por seus direitos e contra essa sociedade de classes, exploradora e opressora.

Tempos depois, já com vários garis tendo chegado, nos cumprimentado e saudade, volta Donaldo, trazendo junto vários garis. Subiu na mesa de cimento, e como da primeira vez naquele sábado preparou-se firme e forte para falar com seus companheiros e amigos. Titubeou, olhou para o céu (ele nunca abaixa a cabeça), levou as mãos negras e fortes, calejadas, aos olhos e tentou falar. “Estou emocionado”, chorava, aquele negro forte chorava. “Estou emocionado porque estou aqui com vocês, meus amigos, depois desta luta. Nos meus 23 anos de Comlurb nunca vi uma luta como essa...” Vários garis, homens e mulheres, marearam, misturaram sorrisos de orgulho e alegria com lágrimas. Tristeza, nenhuma, emoção pura dos que sabem que foram sujeitos, “fizeram direito” e alcançaram seus objetivos. Ao menos os principais objetivos. E Donaldo não fala dos quase 40% de aumento no salário nem outras reivindicações conquistadas. Ressalta a “união que conseguimos; foi difícil, alguns fraquejaram, não acreditaram; eles nos pressionaram, mas nós vencemos”. Era isso que explicava o que havia dito: “nos meus 23 anos de Comlurb nunca vi uma luta como essa”.

Esses garis, que há pouco tempo pareciam “massa amorfa”, indivíduos sem espírito, apenas carne e músculos, simples máquinas para “limpar o lixo”, agora, depois da dura greve, de oito dias fatigantes, fustigados por ofensas do prefeito, do presidente da Comlurb e dos dirigentes sindicais vendidos (burocratas sindicais), vendo a mídia corrompida, antioperária e antipopular, difundir mentiras sobre sua luta para “servir” aos “senhores”, aos “eles” de que falava Donaldo e muitos garis. Esses garis, homens e mulheres, na maioria negros, superexplorados, oprimidos e escravizados por essa sociedade dos capitalistas e da corja de políticos serventes desses “senhores”, esses garis agora falavam pela voz, pelas mãos, pelo olhar e pela coragem e determinação de Donaldo que já não eram mais escravos, haviam se conscientizado de que um operário sozinho é como um escravo que não pode enfrentar a força de uma classe, os capitalistas, e seus capachos (políticos burgueses, governantes, burocratas sindicais, chefetes, gerentes, puxa-sacos e alcaguetes). Porém, ao se unirem descobriram que são uma potência capaz de enfrentar esses inimigos. Os garis do Rio de Janeiro enfrentaram e derrotaram o prefeito, a direção da Comlurb, os burocratas sindicais, a mídia e todos os políticos e patrões que formam um bloco de poder e de guerra contra os trabalhadores e os oprimidos. Donaldo já não vertia lágrimas, mas palavras firmes, encorajadoras, festejando a vitória alcançada mas alinhavando os avanços fundamentais dos garis: união, determinação, disposição para enfrentar-se com os inimigos, preparação e organização das lutas. Em sua voz e nos olhares e acenos de concordância de todos os e as garis, via-se a força da classe operária quando se conscientiza de que “juntos somos uma força difícil de vencer”. Esses momentos me fizeram lembrar dos ensinamentos de Lenin – o grande revolucionário marxista da Revolução Russa e da Internacional Comunista revolucionária – em seu artigo “Sobre as greves”. Lenin explicava como as greves mudam a cabeça e a moral dos trabalhadores. Escrevia: “como é grande a influência moral das greves, como é contagiante a influência que exerce nos operários ver seus companheiros, que embora temporariamente, se transformam de escravos em pessoas com os mesmos direitos dos ricos!”

O velho Lenin ressurgia neste momento, no Irajá, na porta da Comlurb, nos corpos e espíritos dos e das garis vitoriosos, na voz serena, mas firme e determinada de um dirigente operário genuíno: Donaldo. Este negro forte, com seus amigos e companheiros negros e negras fortes, confirmavam as palavras de Lenin: “quando operários despojados agem individualmente para enfrentar os potentes capitalistas isso equivale ã completa escravização dos operários. Quando, porém, estes operários despossuídos se unem, a coisa muda. Não há riquezas que os capitalistas possam aproveitar se estes não encontram operários dispostos a trabalhar e produzir novas riquezas. Quando os operários enfrentam sozinhos os patrões continuam sendo verdadeiros escravos [...] Mas quando os operários levantam juntos suas reivindicações e se negam a submeter-se a quem tem os bolsos cheios de riquezas, deixam, então, de ser escravos, convertem-se em homens e começam a exigir que seu trabalho não sirva somente para enriquecer um punhado de parasitas, mas que permita aos trabalhadores viver como pessoas. [...] Durante uma greve, o operário proclama em voz alta suas reivindicações, lembra aos patrões todos os atropelos de que tem sido vítima, proclama seus direitos, não pensa apenas em si ou no seu salário, mas pensa também em todos os seus companheiros que abandonaram o trabalho junto com ele e que defendem a causa operária sem medo das provações.”

Donaldo, virou-se para nós, do alto da mesa de cimento, como um Apolo operário, negro, para novamente agradecer-nos o apoio, o estar lado a lado sob sol, chuva, ameaças de repressão, fadiga e cansaço. Nossos olhos marearam, já acompanhávamos vários garis com lágrimas doces que expressavam nossa fraternidade de classe. Pediu que falássemos. Sentimos que realmente erámos parte não apenas da luta dos garis, da vitória obtida, mas de algo superior: nossa classe operária. Sinceramente dirigi-lhes palavras emocionadas e agradecidas pelo privilégio de termos podido conhecê-los, ser acolhidos por esses bravos operários e operárias, ter contribuído com algo de apoio dos estudantes da Juventude ás Ruas, do Grupo de Mulheres Pão e Rosas, dos metroviários, professores, bancários, funcionários da USP e outros trabalhadores de São Paulo, Campinas, ABC, petroleiros do Rio de Janeiro, metalúrgicos e professores de Belo Horizonte e até mesmo deputados da Argentina, do PTS (Partido de Trabalhadores Socialistas), e operários e operárias da fábrica Panrico, no Estado Espanhol.

Reafirmei as palavras de Donaldo, pois em mais de 35 anos de vida na militância operária, contando-lhes da participação nas greves desde 1978, no ABC e em São Paulo, não havia visto uma greve tão rica de ensinamentos como a dos garis do Rio, que enfrentaram governo, capitalistas (o presidente da Comlurb é um capitalista da Ambev no controle desta empresa pública), burocratas sindicais, a justiça do trabalho (que julgou a greve ilegal e impôs multas e ameaças ilegais de demissões), polícia e mídia. Sem sindicato, assentados na decisão consciente de não mais ser escravo e na existência de dezenas de operários e operárias combativos e antiburocráticos como Donaldo e tantos outros, determinados a conquistar salário e demais reivindicações, os garis do Rio foram e já são um exemplo histórico para todos os trabalhadores deste país.

Sem dúvida alguma, das categorias mais fortes por seu papel econômico e social, como petroleiros, professores, metalúrgicos, bancários, metroviários, comerciários, rodoviários, servidores públicos etc., todas, literalmente todas estão obrigadas a aprender as principais lições da greve dos garis: trabalhador isolado não passa de um escravo sujeito a todo tipo de privações e atropelos; unidos são uma força considerável; com ou sem sindicato deve ser organizar democraticamente a partir do local de trabalho, onde encontrarão os dirigentes genuínos e poderão controlá-los porque vivem a mesma vida, trabalham, sofrem com todos, poderão criar comissões de empresa, comitês de fábrica e comandos de greve que dirijam as lutas com democracia, com assembleias soberanas onde os trabalhadores decidam tudo e os dirigentes obedeçam, e caso não obedeçam devem ser colocados fora; não deixar suas greves e lutas isoladas, buscar apoio dos trabalhadores e da população trabalhadora; não confiar em políticos burgueses, na justiça, na mídia e na polícia, pois são todos parte do “bloco dos exploradores e opressores”, trabalham para os capitalistas e governos, contra os trabalhadores e o povo; firmeza, determinação, capacidade de utilizar manobras que coloquem o inimigo em situação desfavorável, como fizeram os garis ao organizar a greve justo no Carnaval, nesta cidade que vive desse “maior show da terra” para esconder a miséria, exploração, violência e opressão contra seus trabalhadores e seu povo.

Algumas lições básicas e fundamentais que devem contribuir para que os garis, além de exemplo de luta sejam também os cabeças de um movimento nacional de unidade e coordenação das lutas e dos trabalhadores, ativistas e correntes sindicais e políticas classistas (sem patrões nem governos), antiburocráticas (para lutar e retomar os sindicatos para a luta devemos expulsar os burocratas sindicais) e democráticas (todo poder aos trabalhadores, dirigentes são serventes da classe).

Como prova de uma categoria operária combativa e classista, os garis de Irajá assumiram o compromisso de retribuir a solidariedade de classe recebida nesta greve apoiando a luta dos trabalhadores da fábrica Panrico, em Barcelona (Estado Espanhol), e a luta pela Absolvição dos petroleiros de Las Heras, na Argentina, que foram condenados a prisão perpétua por lutar pelos seus direitos num processo forjado pela polícia e autoridades judiciárias locais. Voltaremos nessa semana para clicar as fotos de solidariedade de classe – garis do Rio dando exemplo de internacionalismo proletário. Mais uma grande lição dos garis do Rio: a solidariedade de classe não tem fronteiras, não tem idiomas, somos uma só classe, a classe operária internacional.

Já sob o sol escaldante do Rio, por volta das 7h30min, nos despedimos calorosamente dos e das garis de Irajá. Entre abraços, me senti a vontade para dizer a alguns que estando há pouco tempo morando no Rio nós, eu e Rita, gostaríamos de cultivar a amizade desses companheiros. Um deles respondeu: “vocês já tem pelo menos 16 mil amigos”, referindo-se aos garis da Comlurb. Lembrei a eles que a companheira Rita, ontem, havia feito aniversário. Abraços fortes. Ela respondeu que a greve dos garis e a vitória obtida foram o maior presente de aniversário de sua vida.

Assim nos despedimos, caminhando ao lado de Rita que chorava emocionada pela experiência profunda que temos vivido nas últimas semanas. Estaremos de volta, convidados pelos garis para a comemoração que, certamente, será emocionante. Temos certeza que estaremos sempre com os garis, e em cada luta dos trabalhadores e da juventude nos darão força e coragem para não desistir, ir até o final, cumprir com os deveres de combatentes, não entregar-se jamais.

Como todos os trabalhadores e pobres do subúrbio carioca, o Rio profundo, encaramos um metrô amontoado de gente que ia trabalhar e estudar, ou seja, mover essa máquina capitalista para gerar lucros aos patrões e políticos burgueses, enquanto sofrem todo tipo de ofensas e privações. Cena normal no péssimo transporte público oferecido pelos capitalistas e governos, na estação Nova América-Del Castilho entra um trabalhador, tentando encontrar um espaço mínimo para acomodar mais um corpo retorcido, como gado a ser transportado. Discussão, óbvio. Ouve-se: “não tenho culpa, só preciso entrar, é uma merda entrar nessa porra para ter que trabalhar, todos os dias”; discussão entre “os de baixo” por culpa “dos de cima”. De repente, como se fora para confirmar nossa lição fundamental sobre a greve dos garis (já é um exemplo para todos os trabalhadores), ouvimos outro trabalhador dizer: “não tem jeito, temos que fazer como os garis; meio-dia o prefeito disse que não tinha dinheiro para o aumento salarial; duas horas da tarde repetiu que não tinha dinheiro; no final, o que aconteceu? Os garis ganharam, receberam o que queriam. É assim, temos que fazer como os garis.”

O sufoco do metrô lotado foi amenizado com essas palavras que mostram como nossa confiança na classe operária e na sua capacidade de ressurgir, com seus métodos (assembleias, organização, união, greves, piquetes, atos, passeatas etc.), como “o líder” capaz de unir todos os trabalhadores com o povo pobre e oprimido na luta firme, decidida e determinada para acabar com a exploração e opressão “dos de cima” e instituir uma nova vida, dirigida pelos “de baixo”, os que realmente fazem funcionar tudo nessa sociedade.

Fim de viagem, cansados, mas felizes da vida por termos estado e sido parte deste momento histórico protagonizado pelos e pelas garis do Rio de Janeiro. “Os homens que resistem a tais calamidades para quebrar a oposição de um burguês saberão também quebrar a força de toda a burguesia”, dizia o grande mestre do socialismo, Frederich Engels, ao falar das greves dos operários ingleses no final do século XIX. Acelera, Gari!

 

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