As mobilizações que sacudiram a Ucrânia desde novembro passado e terminaram com a destituição de Yanukovich e a instauração de um governo pró-ocidental, abriram uma crise de magnitude que superou as fronteiras do país convertendo-se em um conflito internacional no qual intervêm ativamente os imperialismos norte-americano e europeus por um lado, e a Rússia pelo outro. Este conflito, que gerou a tensão mais importante entre a Rússia e o Ocidente desde a queda da URSS, teve seu ponto mais alto com a anexação da Criméia por parte da Rússia e hoje continua nas negociações entre o secretario de estado norteamericano e seu par russo sobre o futuro da Ucrânia, no marco de um clima de tensão, como mostram as mobilizações – ainda que minoritárias – no leste do país reivindicando a unificação com a Rússia. A ingerência direta do Ocidente e de Moscou não representa nenhuma saída progressiva para os trabalhadores e o povo da Ucrânia.
O caráter das mobilizações na Praça Maidán
A decisão em novembro de 2013 do governo pró-russo de Yanukovich de cancelar a assinatura de um acordo de associação com a União Europeia (UE), disparou uma onda de mobilizações em algumas cidades ocidentais do país com centro na praça Maidán da capital, Kiev.
Após tentar por diversas vias desmontar as manifestações, o governo de Yanukovich deu luz verde a uma violenta repressão que terminou precipitando sua queda. Depois de vários dias de enfrentamentos que deixaram um saldo de quase 100 mortos, e uma tentativa falida de saída negociada com a UE que preservava Yanukovich até dezembro, a 23 de fevereiro o parlamento ucraniano destituiu Yanukovich, e nomeou Alexandr Turchinov (do principal partido opositor liberal) como presidente provisório e chamou a eleições antecipadas para o dia 25 de maio.
Ainda que as manifestações tivessem como pano de fundo o mal-estar pelo aprofundamento da crise econômica e o ódio contra o governo corrupto e repressor de Yanukovich, agravado pela dura resposta repressiva das forças de segurança, no essencial abrigaram esperanças em que um Tratado de Livre Comércio com a União Europeia podia dar resposta a suas penúrias justamente em momentos em que a UE vem aplicando brutais planos de ajuste para descarregar a crise sobre os trabalhadores. Estas mobilizações estiveram marcadas por um forte nacionalismo anti-russo, manipulado pelos partidos da oposição burguesa liberal – como o partido Pátria de Yulia Timoshenko e a Aliança Democrática Ucraniana para a Reforma (UDAR) do exboxeador Vitali Klitschko ligado a Alemanha – para sua política de aliar-se ás potências imperialistas. Sobre este nacionalismo também atuam os grupos da extrema direita, integrados ao regime como o partido Svoboda ou setores mais radicalizados, inclusive neonazistas, como o Setor de Direita que desempenhou um importante papel no processo que levou ã queda do governo, e segundo vários analistas, foi o núcleo das milícias armadas da praça Maidán. Esta aliança entre partidos neoliberais e grupos de extrema direita a serviço dos interesses da classe dominante, imprimiu seu selo ao movimento.
A queda de Yanukovich também é produto de que a fração de oligarcas alienados com seu governo, entre eles Rinat Akhmetov, o homem mais rico da Ucrânia, que acumulou sua fortuna ficando com as principais minas da região de Donetsk, ã sombra do poder estatal e do oficialista Partido das Regiões, retiraram-lhe seu apoio e se passaram ao bando da oposição, entre outras coisas, por diferenças de interesse com membros da família Yanukovich convertidos em oligarcas. Estes magnatas – que dividem seus apoios entre o Partido das Regiões e os partidos da oposição liberal – se beneficiam tanto da relação com a Rússia como com o ocidente, onde têm negócios bilionários.
A estreita relação entre a burguesia e os partidos políticos ucranianos, que vem desde os inícios da restauração capitalista, expressou-se na designação de proeminentes oligarcas ã frente de distintas províncias após a queda dos partidários de Yanukovich.
Para deixar claro seu caráter reacionário e pró-ocidental o novo governo acaba de anunciar um aumento de 50% no preço do gás, o que é parte de um pacote de ajuste exigido pelo FMI que inclui o congelamento do salário mínimo, aumentos de impostos e dos preços do combustível e da eletricidade, entre outras medidas.
Por outra parte uma das primeiras medidas votadas pelo parlamento foi a abolição da lei que protegia as línguas minoritárias não ucranianas, o que afeta diretamente a população russoparlante, que é maioria na península da Criméia e em todo o leste do país. A medida se somou ao ódio antirusso que já vinha expressando a direita nacionalista e os grupos neonazistas dentro do movimento da praça Maidán.
Por isto, a pesar de que o governo de Yanukovich tenha caído, a crise se fechou com uma modificação das frações das camarilhas capitalistas que estão no governo.
A intervenção das potencias imperialistas e da Rússia
A Ucrânia se transformou em um campo de batalha entre os Estados Unidos (e a União Europeia), por um lado, e a Rússia pelo outro, onde há em jogo importantes intereses econômicos e geopolíticos.
As potências imperialistas querem capitalizar a queda do governo pró-russo de Yanukovich e sua substituição por um governo pró-europeu para avançar em arrancar a Ucrânia da órbita de influência da Rússia e alinhá-la com os interesses dos Estados Unidos e da UE, ameaçando (ainda que cada vez menos) com a expansão militar da OTAN até as fronteiras russas. Como resposta, o presidente Vladimir Putin destacou dezenas de milhares de soldados na fronteira ocidental com a Ucrânia e alentou o referendo na Criméia, que definiu sua independencia da Ucrânia e a reunificação com a Rússia. A Criméia é uma região estratégica onde está alojada a frota russa do Mar Negro. A investida russa foi originalmente repudiada pelos EUA e pela União Europeia, que inclusive fizeram votar uma resolução da ONU desconhecendo a separação; não obstante, o ponto da Criméia já esteve fora das últimas negociações entre Kerry e Lavrov. Ainda está por ver-se se a anexação da Criméia implicará para Putin a perda de sua influencia na Ucrânia, o país mais importante em sua fronteira ocidental, e um dos pilares de sua estratégia geopolítica de recriar uma esfera de influencia que amortize a ofensiva dos Estados Unidos e da UE, freie o avanço da OTAN e garanta seu status de potência regional com certa projeção para influir em conflitos internacionais de importância estratégica.
Ainda que a política da Rússia coloque um desafio ás potências imperialistas ao modificar pela segunda vez as fronteiras (já o havia feito em 2008 na Geórgia com a independência da Ossétia do Sul e Abjasia), sua intenção não é declarar uma guerra ás potências ocidentais, mas melhorar a relação de forças para negociar. Embora a Rússia venha ocupando nos últimos anos um papel de potência regional, está longe de ser um país imperialista como coloca um setor da esquerda a nível internacional.
Desde a desintegração da ex União Soviética em 1991, e aproveitando o caos dos primeiros anos da restauração capitalista sob o governo de Yeltsin, com a conseqüente decadência econômica, política e social da ex URSS, os Estados Unidos avançaram sobre a Rússia e sua zona de influência, ainda que não pudesse transformar a Rússia num país semicolonial. Com a chegada de Putin ao poder este curso de desintegração começou a reverter-se, mas sem modificar nenhum dos parâmetros estruturais da decadência russa. Putin estabeleceu um regime bonapartista, fortalecendo a autoridade estatal, tomou o férreo controle dos principais recursos do país – enfrentando inclusive alguns dos oligarcas que haviam ficado com o saque das privatizações – reconverteu a Rússia de velha potência industrial em um país exportador de petróleo e gás, beneficiando-se amplamente dos altos preços dessas matérias primas e recompôs seu exército. Isto levou a que nos últimos anos a Rússia ressurgisse como potência regional, e que tentasse resistir ã política ofensiva das potências ocidentais sobre sua esfera de influência mais próxima, destacando uma série de iniciativas como a União Aduaneira Euroasiática, ou subsidiar o preço do gás, ainda que de nenhuma maneira se transformasse numa grande potência: sua economia é cada vez mais rentista e depende do preço do petróleo e do gás. No plano geopolítico, as três ex repúblicas soviéticas, Estônia, Letônia e Lituânia e o restante dos aliados do pacto de Varsóvia ingressaram na OTAN.
É por isto que a Rússia joga entre as contradições do ocidente para dissimular sua própria debilidade.
Por sua parte, nem os Estados Unidos nem a União Europeia estão dispostos a ir a uma ruptura insalvável com a Rússia, menos ainda a um enfrentamento.
No marco de sua decadência hegemônica a política dos Estados Unidos foi ameaçar impor sanções econômicas marginais sobre algum membro do governo russo, enquanto que a União Europeia, ainda que apoiasse o levante contra Yanukovich e buscasse incorporar a Ucrânia a sua órbita econômica e militar, não pode avalizar um regime de sanções econômicas já que isto iria contra os interesses de seus principais membros. O abastecimento de energia da União Europeia depende do gás que importa desde a Rússia. Isto explica a linha majoritariamente negociadora da EU, em particular de Merkel, que inclusive se opõe a implementar sanções leves, que buscam um equilíbrio entre sancionar a ofensiva russa sobre a Criméia, mas sem que isto afete suas relações econômicas.
Inclusive se se mantivesse em sua dimensão atual, o conflito na Ucrânia já pôs as relações entre a Rússia e o Ocidente em seu ponto mais baixo desde a dissolução da URSS e abriu uma crise internacional que potencialmente pode alterar as coordenadas do sistema internacional surgido após a guerra fria. Se se percebe que as potências ocidentais e em particular os Estados Unidos não são capazes de impor-se e manter a ordem, outros atores, desde a Coréia do Norte ou o Irã até a China poderiam ver-se alentados a fazer avançar seus interesses.
Durante os últimos dias continuou a ingerência sobre a Ucrânia por parte dos imperialismos e da Rússia. O FMI e a UE prometeram um pacote de ajuda em troca de um ajuste brutal e esperam a ver a confiabilidade do governo que surja das eleições do 25 de maio (no qual esperam que tenha menos peso o setor nacionalista). Putin, por sua parte, anunciou um aumento de 40% para o gás que vende a Ucrânia, o que piorará ainda mais as condições de vida dos trabalhadores e do povo, ao mesmo tempo que anunciava ajuda financeira e aumentos de salários para os habitantes da Crimeia, alentando o nacionalismo russo no restante do país e chamando a uma maior federalização e autonomia das distintas regiões.
Uma saída operária e independente
Ante a crise ucraniana uma parte da esquerda saiu fazendo coro com as mobilizações da praça Maidán, absolutizando o componente de ódio frente ao governo pró-russo de Yanukovich e as penúrias produzidas pela crise econômica, mas negando o programa pró-ocidental que levantou desde o principio, assim como também as direções reacionárias que estavam ã cabeça do movimento. Organizações como a LIT ou a UIT, que já praticamente vêem revoluções democráticas triunfantes em toda parte, voltaram a ficar arrastados pela cauda de um campo burguês ao definir o processo que terminou com a destituição de Yanukovich e a ascensão de um novo governo neoliberal, pró-ocidental e direitista, de uma “vitória democrática” das massas. Inclusive a LIT deu a entender que o movimento da Praça Maidán seria similar aos organismos de autodeterminação revolucionários e que as comissões de autodefesa tiveram um papel de vanguarda, “ainda que nelas houvesse setores de ultra direita”. Por outra parte, nem considera em sua justa importância as ambições geopolíticas das potencias imperialistas no processo. Posições assim só podem criar confusões e erros.
Por outra parte, um setor mais minoritário da esquerda terminou apoiando a Rússia frente ao ataque ocidental, replicando a teoria dos campos mas a nível internacional, como se ainda houvesse guerra fria e uma URSS para defender. Ou seja, uma política que abriga expectativas em que o nacionalismo bonapartista de Putin pode ser uma alternativa progressista frente a União Europeia e os Estados Unidos, sem se dar conta de que os interesses de potência regional da Rússia e os da oligarquia que paralisou a economia ucraniana desde a queda da URSS são contrários aos dos trabalhadores e dos povos oprimidos da Ucrânia, qualquer que seja sua etnia ou nacionalidade.
Nesta trama de interesses econômicos e geopolíticos das potências imperialistas e da Rússia, os trabalhadores e setores populares ucranianos são utilizados como moeda de troca.
Nas duas décadas de restauração capitalista, tanto com governos pró-russos como pró-ocidentais, os oligarcas saquearam a propriedade estatal ficando com os principais negócios.
Tanto as potências ocidentais como Putin estão usando a carta nacional para fazer avançar seus interesses, opostos pelo vértice aos dos trabalhadores e setores populares russos e ucranianos.
O novo governo pró-ocidental alenta o ódio anti russo fundado na opressão histórica sofrida primeiro sob o império czarista e depois sob o stalinismo, para seus fins reacionários de aliar-se ás potencias imperialistas e pactuar sua submissão ao FMI e Bruxelas a favor dos negócios dos oligarcas locais. Putin utiliza o nacionalismo e a identidade étnica russa na Crimeia para estabelecer uma posição de força em sua relação com as potências ocidentais e reafirmar os interesses dos capitalistas russos.
Enquanto isso, os trabalhadores e os setores populares, tanto na Rússia como na Ucrânia, sofrem condições de vida cada vez mais degradadas, e serão aqueles que pagarão os custos da crise capitalista.
Nos países da ex URSS e do leste europeu, as décadas de opressão sob os regimes da burocracia stalinista e a falta de uma alternativa facilitaram a propaganda pró capitalista do ocidente e a identificação entre socialismo e stalinismo, o que levou ao desenvolvimento de uma ideologia anticomunista reacionária, sobre a qual se baseiam os grupos de extrema direita, inclusive neonazistas. Não obstante, a mais de duas décadas da queda dos regimes stalinistas e a desaparição da ex União Soviética, está claro que a restauração capitalista só significou o enriquecimento de uma pequena minoria de oligarcas e penúrias para as amplas massas de trabalhadores.
Ainda que hoje pareça uma perspectiva longínqua, a única saída progressista surgirá da luta unificada da classe operária contra seus exploradores locais e seus sócios imperialistas, isto é, de uma política independente tanto frente aos bando “pró ocidental” como o “pró russo”.
É por isso que os trotskistas da FT-QI colocamos que a única perspectiva realista para que a Ucrânia seja independente é expropriar os oligarcas – os novos capitalistas que ficaram com as grandes empresas públicas – deixar de pagar a dívida externa, nacionalizar os bancos, o comercio exterior e os principais recursos da economia, pondo-os a serviço dos trabalhadores e setores populares, ou seja, lutar por uma Ucrânia operária e socialista com direitos democráticos para todos os grupos étnicos e nacionais. Esta seria uma alavanca para a revolução social na Rússia e na Europa, onde se jogará, em última instância, o destino da Ucrânia.
Fração Trotskista – Quarta Internacional 06 de abril de 2014
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