Em 26 de agosto o presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, anunciava que os palestinos e israelenses no Cairo haviam chegado a um acordo de cessar-fogo permanente no Cairo. Dessa maneira chegaria ao fim a operação Margem Proterora, a ofensiva militar mais longa e sangrenta das quatro levadas adiante pelo estado de Israel desde que se retirou da Faixa de Gaza em 2005.
As cifras mostram o alcance do massacre: 50 dias de bombardeios o exército israelense assassinou 2100 palestinos, quase todos civis, incluindo 500 crianças e feriu a outros 11000. Destruiu 1700 casas e transformou 500 mil pessoas, quase um terço da população de Gaza em desabrigados, que vivem como podem nas escolas, hospitais, e refúgios da ONU, que também foram alvo de ataques. Além disso, matou três chefes militares importantes do Hamas. Em contraste, Israel sofreu 70 baixas (64 soldados, 6 civis, entre eles uma criança).
Entretanto, o resultado da operação Margem Protetora demonstrou uma vez mais a validade de uma velha máxima da arte da guerra: que a recontagem das baixas e danos materiais não define por si mesma as vitórias ou derrotas. Contam também as forças morais e as motivações políticas. Em última instância, termina triunfando quem obtém seus objetivos, ainda que esses sejam modestos. E esse round foi para o Hamas (Hamas 1- Israel 0, de acordo com o jornal Haaretz).
Por isso, apesar de ter pago um alto preço, os palestinos, e em particular o Hamas e a Jihad Islà¢mica, celebram o que consideram uma vitória da sua resistência frente ao poder israelense, enquanto que o governo de Netnayahu está submetido a uma crise e não pode vender o resultado a seus aliados/rivais da extrema direita como um triunfo, que sabem que aquilo não mata o Hamas os fortalece.
Vencedores vencidos
Se poderia dizer que se necessitaram de sete semanas de uma guerra unilateral e assimétrica de Israel contra o Hamas para voltar aos termos desse último cessar-fogo, negociado também pelo Egito em 2012 após a operação Pilar Defensivo. Efetiva,ente o acordo de 2014 é quase idêntico: relaxamento parcial do bloqueio ã Faixa de Gaza que inclui a abertura temporária das passagens fronteiriças entre Gaza e Israel, e entre Gaza e o Egito, e extensão da zona permitida para a pesca, enquanto fica para mais adiante outras demandas do Hamas, como a construção do aeroporto de Gaza destruído por Israel no ano 2000, a libertação de 500 prisioneiros palestinos e o levantamento definitivo do bloqueio. Mas as condições são muito distintas, o que faz mais seguro o sabor da derrota que sente grande parte do establishment político israelense.
Entre 2012 e 2014 se passou da promessa da “primavera árabe” ao avanço das forças da reação – Estados Unidos, a monarquia saudita, os militares egípcios. O peso dessa relação de forças adversas também foi sentido no conflito palestino-israelense. Antes da operação Margem Protetor, o Hamas estava numa situação de isolamento e seu governo na Faixa de Gaza ã beira do colapso. Com a queda do governo da Irmandade Muçulmana no Egito a ruptura de sua aliança com a Síria (e pela transitividade do Irã) havia ficado sem aliados regionais. Isso empurrou sua direção a negociar um governo de reconciliação com a Autoridade Palestina. A resistência armada ã ofensiva israelense permitiu recuperar o prestígio e a legitimidade e terminou localizando-o como interlocutor privilegiado na negociação do cessar-fogo.
Israel, Egito, e EUA tentarão subordinar o Hamas ã Autoridade Palestina elevando Abbas como o garantidor dos acordos, dando-lhe o controle das passagens fronteiriças para não se ver obrigado a negociar com o Hamas. Mas esse poder formal da AP está longe da realidade no terreno concreto. Enquanto Abbas permaneceu impávido diante da ofensiva israelense na Cisjordânia onde governa, milhares de jovens com pedras fizeram voltar o fantasma da Intifada.
Crise política
Quem surge como o principal derrotado é o próprio Netanyahu, questionado pela extrema-direita que lhe reprovou ter entregado ao Hamas uma vitoria de bandeja de prata. A imprensa israelense já considera que a operação Margem Protetora lançou a ultradireita na campanha eleitoral.
O acordo que foi aprovado por Netanyahu de maneira unilateral produziu uma fratura política no gabinete do governo. Três de seus ministros, entre eles o ultradireitista chanceler A Lieberman, rechaçaram o acordo. O mesmo fez um setor do Likud, o partido do primeiro-ministro. Essa extrema direita parece estar em sintonia com a opinião majoritária da sociedade israelense. A popularidade de Netanyahu que havia alcançado exorbitantes mais de 80% quando se lançou a invasão terrestre a Gaza, despencou depois do acordo. Só 38% o considera correto. Inclusive o líder do partido de esquerda Meretz responsabilizou a Netanyahu de ter permitido ao Hamas se apoderar do “triunfo quando ia a uma derrota segura”. Porém, a escala do massacre também gerou polarização: 10 mil israelenses desafiaram esse brutal giro ã direita e se manifestaram a semana passada contra a ofensiva militar.
Essa crise do governo expressa o dilema que enfrenta o Estado sionista. Enquanto que a política de Netanyahu é manter o conflito sob controle, o que leva a operações militares recorrentes (2006, 2008-2009, 2012, 2014), a oposição de extrema direita pressiona por uma espécie de “solução final”, liquidação do Hamas, e eventual expulsão da população palestina, que de todos os modos é impraticável na atual relação de forças.
Como terminar com o apartheid
Ainda que as massas palestinas em Gaza e também na Cisjordânia festejem com alívio o fim do ataque militar e se sentem com a moral que dá a resistência, seguem vivendo e sofrendo a opressão colonial do Estado de Israel, sustentado pelos Estados Unidos e as potências ocidentais. Sob o acordo de cessar-fogo, Gaza seguirá uma prisão a céu aberto, sujeita ao bloqueio econômico e a ameaça de intervenção militar na Cisjordânia. Isso é, o povo palestino continuará vivendo um regime de apartheid.
A operação Margem Protetora suscitou o imponente repúdio de centenas de milhares que se mobilizaram em todo o mundo, contra a ofensiva do Estado sionista e expôs como nunca antes a enorme hipocrisia dos Estados Unidos, da União Europeia e das Nações Unidas, que justificaram os crimes de guerra de Israel. Milhares de pessoas de origem judia disseram novamente “Não em nosso nome”. Já está claro que Israel não aceita nem sequer a “ficção de Estado palestino” e que as tendências fascistoides que surgem no seu interior são o produto de seu projeto colonial. Frente ã política racista do sionismo de defender um “Estado exclusivamente judeu”, surgem cada vez mais vozes dissonantes que chegam ã conclusão de que a alternativa a uma nova limpeza étnica e ã guerra permanente é desmantelar esse aparato estatal racista e colonialista e substituí-lo por um Estado palestino único, não racista, que respeite os direitos nacionais de árabes e judeus. Do nosso ponto de vista, esse resultado não é uma utopia, senão a única saída progressista a essa crise. Mas isso só poderá ser conseguido como subproduto de uma luta revolucionária contra as classes dominantes locais, e as potências imperialistas a quem servem, abrindo caminho para o socialismo.
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