Marx em seu famoso texto, O 18 de Brumário de Luis Bonaparte, resgatando e avançando de Hegel, tornou célebre a sentença segundo a qual todos os fatos e personagens de relevância histórica se manifestariam duas vezes. “A primeira como tragédia e a segunda como farsa”, tirando as conclusões que Hegel em sua formulação teórica anterior não poderia chegar. Estamos nesse momento diante de uma tentativa de repetição de um fato histórico, que já na primeira vez irrompeu como farsa. E agora “renasce”, portanto, duplamente farsesco, ainda que com outra roupagem. Trata-se dos novos bombardeios protagonizados pelo imperialismo norte-americano contra o Iraque, e desde a madrugada de 23 de setembro, na Síria. Enquanto essas linhas são elaboradas Obama ruma para a Assembleia Geral da ONU, na qual tentará buscar legitimidade ao ataque ã Síria. Tal movimento busca o objetivo de impor um fato consumado, na medida em que a Síria, diferentemente do Iraque, capitaliza as tensões entre os Estados Unidos e a Rússia, que já havia declarado ser contrária a qualquer ofensiva sobre o país governado por Bashar Al Assad.
Na “primeira farsa” com a guerra do Iraque de 2003, sob o comando de Bush filho, Dick Cheney e Condoleeza Rice, adota-se a estratégia de utilizar as guerras “contra o terror” como instrumento na tentativa de contrapor o processo de decadência do imperialismo norte-americano. Entretanto, naquela ocasião seus resultados estavam levando justamente ao efeito oposto. O governo de Bush terminou deslegitimado, e numa grande crise interna, que se aprofundou a partir do questionamento geral dos propósitos da guerra do Iraque. Dá-se lugar ao primeiro presidente negro da história, Barack Obama, eleito a partir de uma campanha cujo eixo foi a promessa de uma nova política internacional, expressada no primeiro discurso feito no Cairo já como presidente dos EUA, e na declaração de retirada imediata das tropas no Iraque. Porém, ironicamente agora é o mesmo Obama o responsável pelo retorno ao Iraque.
Se na virada do século os atentados de 11 de Setembro funcionaram como o argumento legitimador para colocar em marcha a doutrina neoconservadora, definida pela tentativa de instituir através de ofensivas preventivas e unilaterais “um novo século norte-americano”, agora a justificativa atende pelo nome de ISIS ou Estado Islà¢mico. O Estado Islà¢mico é uma organização sunita descendente da Al Qaeda. Adota, portanto métodos reacionários, e terroristas, não apenas contra os estrangeiros, mas contra o próprio povo dos países em que age. Mas não só isso. É decorrência direta da estratégia – ou de sua falha – dos Estados Unidos para impor seus interesses sobre a região. Novamente o imperialismo norte-americano torna o solo fértil para a ascensão desse tipo de aberração.
Os resultados da política norte-americana de “divide e reinarás”, levada adiante durante toda a ocupação do Iraque, até a retirada das tropas em dezembro de 2011, foi responsável por aprofundar as tensões entre sunitas e xiitas, e deixaria profundas marcas no país. Uma delas é justamente o Estado Islà¢mico. O financiamento e a criação de forças desse tipo pelos Estados Unidos é um elemento constante em toda a história recente. Na década de 1980 a própria Al Qaeda havia sido financiada para barrar o avanço da URSS sobre o Afeganistão. Mas a política norte-americana desde a ocupação do Iraque de impor um governo xiita, em detrimento dos sunitas, afogando assim as tendências a uma luta popular unificada contra a ocupação imperialista, exacerbou as tensões sectárias. E o despojo dos sunitas não foi apenas político, como também econômico. Como assinala o analista do Counterpunch, Garikai Chengu: “A ocupação norte-americana causou grande desemprego em áreas sunitas, com o fechamento de fábricas e outros ramos importantes da economia. (...) Sob o novo regime xiita apoiado pelos Estados Unidos, a classe trabalhadora de origem sunita perdeu milhares de empregos. Ao contrário dos afrikaners brancos na África do Sul, que foram autorizados a manter sua riqueza após a mudança de regime, a burguesia sunita foi sistematicamente despojada de seus bens e perdeu sua influência política. Ao invés de promover a integração religiosa e de unidade, a política americana no Iraque exacerbou as divisões sectárias e criou um terreno fértil para o descontentamento sunita, aproveitada pela Al Qaeda ”.
Nesse contexto é que se dá a segunda ofensiva norte-americana contra o Iraque e a Síria no século XXI, agora amplamente apoiada pela França, ao contrário da guerra deflagrada em 2003. Dessa forma, Obama, eleito sob a promessa de sair do Iraque, é o responsável agora a retornar a atacar o país justamente tendo como pano de fundo o desgaste de sua figura e baixa da confiança popular em seu governo. Pesquisas recentes apontam que o índice de confiança dos norte-americanos em seu governo é comparável ao de Nixon em 1974. Assim, a farsa se repete, mas agora ainda mais débil. Tal como Bush filho, Obama agora lança uma ofensiva ao Iraque, pois teme ter sua fraqueza ainda mais exposta, gerando por sua vez, ainda mais fraqueza, numa cadeia sem fim determinado. Por enquanto as cenas grotescas das decapitações de ocidentais realizadas pelo Estado Islà¢mico estão dando legitimidade para a intervenção imperialista, mas ninguém acredita que isso durará por muito tempo. A própria noção de que seria possível conquistar algum resultado significativo numa incursão militar exclusivamente aérea, sem ter nenhuma estratégia alternativa delineada para o Oriente Médio tende ao fracasso. Ocupar novamente o Iraque também tenderia a um insucesso, tanto que tal possibilidade, defendida pelo chefe do Estado Maior Conjunto, Martin Dempsey, foi negada por ora por Obama, pois exacerbaria, num nível superior ao consenso imediato gerado aos ataques, as imensas tensões regionais de uma situação extremamente fluida, sobretudo, com a continuidade da guerra civil síria. Manter tropas de ocupação no Iraque e na Síria, tão pouco tempo depois dos desastres comandados por Bush filho, não é um panorama alentador, podendo ser uma nova caixa de Pandora. Isso porque os custos políticos e materiais de uma tentativa desse tipo muito provavelmente poderiam alimentar uma mudança mais rápida da opinião pública norte-americana. Desde George W. Bush declarou a "Guerra ao Terror", em outubro de 2001, que custou ao contribuinte americano aproximadamente 6,6 trilhões de dólares e milhares de mortos. Enquanto isso, as guerras arrecadaram bilhões de dólares para a elite militar de Washington, o que gerou ainda mais desgaste para o governo, quando veio ã tona que cerca de setenta empresas ganharam até US$ 27 bilhões em contratos de trabalho no pós-guerra no Iraque e no Afeganistão. Soma-se a isso a hipocrisia do imperialismo norte-americano, que em algum momento virá a tona. Tal como na guerra do Iraque de 2003, quando passado o pavor gerado pelos ataques do 11 de Setembro, vieram a tona todas as mentiras forjadas para ir ã guerra, e mais, a incoerência das “ameaças globais” escolhidas a dedo como alvo. Assim, a falácia de Obama de justificar a incursão militar sob o pretexto de que estaria atuando para proteger a vida de cristãos e yazidis perseguidos pelo Estado Islà¢mico, tampouco parece ser capaz de ter vida longa. Basta ter acesso a alguns dados, para constatar que as zona de Erbil, capital da região autonôma curda é onde justamente se encontram 0,6% das reservas de petrólero do planeta, e 90% das reservas de gás do Iraque, sendo a localidade onde atuam os monopólios Exxon Mobil e Chevron.
E de novo não apenas isso. Mas como a política norte-americana para a região configura-se como uma miríade de contradições, já que seus próprios aliados estariam indissociavelmente ligados ã criação de aberrações, como o Estado Islà¢mico. De acordo com Robert Fisk, “Obama tampouco condena seu aliado, a Arábia Saudita, cujos salafistas são a inspiração e a fonte de arrecadação de fundos para as milicias sunitas do Iraque e da Síria, como foram anteriormente para os talebães do Afeganistão. O muro entre os sauditas e os monstros que criam – e que os Estados Unidos agora bombardeiam – deve ser mantido tão alto, como invisível. Essa é a medida da dissimulação estadonidense nesse último ato de duplicidade. Obama está bombardeando os amigos de seus aliados sauditas, e inimigos do regime de Assad na Síria ”.
Agora os bombardeios norte-americanos sobre a Síria, ao lado das aeronaves da Arábia Saudita, Bahrein, EAU e Jordânia, tensiona a situação já que Bashar Al Assad, que outrora havia declarado estar disposto a colaborar com o imperialismo contra o Estado Islà¢mico, desaprovou os ataques. Entretanto, Assad atua de modo a aproveitar a situação. Se por um lado “desaprova” a ofensiva imperialista, por outro segue declarando que apoiará o governo iraquiano contra o ISIS. A Síria que está mergulhada numa guerra civil, com o ISIS tendo emergido como parte do leque opositor a Bashar Al-Assad, os sunitas compõem 60% da população. A miséria e sofrimento no qual o país está mergulhado, aliadas ã ausência de uma alternativa progressista, baseada nos trabalhadores e no povo, capaz de imprimir uma dinâmica de luta de libertação de massas contra Bashar Al-Assad faz com que não se possa descartar um avanço do ISIS no próximo período. Diferentemente do que opinam setores inclusive da esquerda, o que está em curso na Síria não é uma revolução, mas uma guerra civil cada vez mais labiríntica, mas cujo impacto repercutirá diretamente no Iraque. E a resposta que o imperialismo norte-americano dará tampouco parece ser facilmente elaborada. Para complicar o cenário, a Rússia já declarou ser contrária a qualquer ofensiva norte-americana sobre a Síria. Muitas variáveis para Obama calcular no complicado tabuleiro da geopolítica regional.
Garikai Chengu em seu artigo já citado analisa como o reavivamento da “guerra ao terror” visa não apenas o Iraque, ou ainda ã Síria, cujo respaldo para uma ofensiva aí será pleiteada na Assembleia Geral da ONU, mas é um movimento contra o Irã. Porém: “A última vez que o Irã invadiu outra nação foi em 1738. Desde a sua independência em 1776, os EUA se empenharam em mais de 53 invasões militares e expedições. Apesar do que a mídia ocidental quer nos fazer crer, o Irã não é uma ameaça ã segurança regional, Washington é. (...) A chamada "Guerra ao Terror" deve ser vista como o que realmente é: um pretexto para a manutenção de um aparato militar norte-americano de perigosamente grandes dimensões. (...) O terror é a Guerra ao Terror ”. Isso se provou em 2003, e se provará rapidamente nos dias presentes. Por isso, reafirmamos que das mãos dos imperialismos, e de seus aliados locais, só podem vir saídas mais reacionárias. A conclusão única que se pode ter é, portanto, rechaçar esses ataques do imperialismo ã Síria e ao Iraque.
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