A chegada do Syriza ao governo da Grécia, junto ao meteórico ascenso eleitoral do Podemos no Estado Espanhol, tem gerado grandes expectativas em milhões de trabalhadores e setores populares que buscam terminar com as políticas de cortes e ajustes nos países do sul da Europa. São novos fenômenos políticas reformistas que não se viam há algumas décadas no velho continente.
As causas profundas desta nova situação se encontram na crise econômica, com suas graves consequências sociais, na crise política dos regimes bipartidaristas e no desenvolvimento de um forte ciclo de mobilização social que foi insuficiente até agora em derrotar as políticas dos governos e a Troika. O descontentamento se canalizou pela via eleitoral, com o ascenso do Syriza e do Podemos como contrapartida da crise da social-democracia, que nas décadas anteriores se tornou abertamente "social liberal" e constitui um elemento chave para compreender a mudança no tabuleiro político.
Grécia, de "governo de esquerda" a governo "anti-austeridade"
Desde 2012, as projeções eleitorais do Syriza cresceram de modo inversamente proporcional ã radicalidade de seu programa. O líder do Syriza, Alexis Tsipras, foi suavizando suas propostas apresentadas em reuniões com membros de instituições financeiras e de outros governos. Depois do triunfo, Tsipras formou um governo de coalizão com ANEL (Gregos Independentes), um partido nacionalista de direita, xenófobo e pró-burguês, outorgando-lhe nada menos que o estratégico ministério da Defesa, máximo controle civil das forças armadas da Grécia. Uma resolução que marcou "o fim simbólico da ideia de um governo de esquerda anti-austeridade", como mantido por Sthatis Kouvelakis, integrante da "Plataforma de Esquerda" do Syriza.
Um argumento que se brandiu para justificar a decisão do Syriza foi que se deslocou o eixo "esquerda/direita" para uma confrontação "dura" entre austeridade/anti-austeridade. Mas esta afirmação, além de justificar uma opção política totalmente conservadora, mostra-se errônea, se analisado o conteúdo real da política do governo.
Como reconhece Kouvelakis, Syriza não só "moderou" seu discurso no que tange a "dimensão de classe" (no qual nunca foi muito radical), senão no que diz respeito também em relação ã Troika, ã questão da dívida e ã austeridade. Passou de defender uma "auditoria da dívida" e "deixar de pagar sua parte ilegítima" para sustentar um pagamento parcial, uma reestruturação e finalmente um refinanciamento, com prazos mais largos e bem atados ao crescimento. Isto é, uma política de "honrar os compromissos" contraídos e não apresentar medidas "unilaterais" frente aos "sócios" europeus.
O resultado preliminar das negociações entre o governo grego e o Eurogrupo, no qual a Grécia vacilou na defesa de quase todos os pontos de sua agenda inicial para alcançar uma extensão do resgate, é uma viva mostra desta dinâmica J [1]. Como disse em um artigo demolidor o histórico militante comunista grego, Manoris Glezos, atualmente eurodeputado do Syriza: "Mudar o nome da Troika por ’instituições’; memorando por ’acordo’ e o dos credores por ’sócios’, não muda em nada a situação anterior.
O espectro do eurocomunismo e o renascimento social-democrata
A chegada do Syriza ao governo e o emergir do Podemos tem reaberto debates estratégicos na esquerda europeia. É possível que uma coalizão de esquerda chegue pela via parlamentar ao governo e inicie um processo de transformações sociais que permitam uma "via democrática ao socialismo"? Esta questão marcou o debate estratégico com o eurocomunismo europeu há quase meio século.
O eurocomunismo não foi uma corrente homogênea de doutrinas e programas, mas uma reorientação dos principais partidos comunistas europeus desde meados dos anos 70 para se adequar ás condições da democracia burguesa. Ao mesmo tempo que se distanciavam da burocracia de Moscou, cercando-se da doutrina de "defesa dos DDHH", impulsionada por Washington, postulavam uma "via democrática ao socialismo".
Em 1977 se organizou um encontro em Madri entre os comunistas italianos, franceses e espanhóis, que deu forma a este novo eurocomunismo. No caso da Grécia, houve um pouco antes a cisão entre o KKE (PC) pró Moscou e o KKE "do interior", em 1968 como reação frente ã Primavera de Praga. Este giro foi atacado, pela direita, como uma operação de "camuflagem" orquestrada desde Moscou; e pela esquerda, como um renunciamento a estratégia insurrecional e uma conversão ao credo histórico da socialdemocracia.
"Não pode haver nenhum conflito entre eurocomunismo e social-democracia em um terreno ideológico (...) o que se denomina vulgarmente ’eurocomunismo’ se propõe a transformar a sociedade capitalista, não administrá-la; elaborar uma alternativa socialista ao sistema de capital monopolista de Estado, não integrar-se neste e ser uma variante do governo", escrevia em 1977 Santiago Carrillo, um dos máximo referentes do eurocomunismo. [2]
Mas a impostura do discurso eurocomunista se viu na prática. Os partidos eurocomunistas atuaram como artífices da recomposição das "democracias ocidentais" e fiador de sua estabilidade. O caso italiano foi paradigmático, com o "compromisso histórico" de Enrico Berlinger com os empresários, a Democracia Cristiana e o Partido Socialista para fortalecer a democracia capitalista italiana frente ás tentativas "totalitárias". Enquanto no caso espanhol, Santiago Carrilo dirigiu a política da "ruptura democrática" durante a Transição, que em função de "conquistar a democracia", aceitou a Constituição de 78, o retorno da monarquia, as bases norte-americanas na península e os pactos da Moncloa.
Não pretendemos aqui debater em profundidade sobre a experiência eurocomunista. O dado que nos interessa é sua "recuperação" concernente aos novos reformismos. Recentemente, em um debate sobre o "populismo" no programa Fort Apache conduzido por Pablo Iglesias, Iñigo Errejón e o líder do Podemos fizeram uma chamativa reivindicação do eurocomunismo italiano no pós-guerra. Evitaram, não obstante, toda referência ao definir o posterior da experiência italiana e seu papel no processo revolucionário aberto com o "outono quente" de 1969. [3]
Contudo, em uma entrevista posterior com o historiador Juan Antonio Andrade, Pablo Iglesias sustenta que o PCE de Carrillo e inclusive o PSOE não teriam muita margem para fazer algo muito diferente do que fizeram durante a Transição.
Do mesmo modo, Tsipras, em mais de uma ocasião, tem se reivindicado como parte da esquerda de "Togliatti, Berlinguer e Gramsci". Sem dúvidas a acelerada moderação política de Tsipras faz uma grande homenagem a realpolitik dos primeiros, ainda que seja uma verdadeira desonra para o último.
Contudo, se em ambas formações há um retorno ao espírito eurocomunista, é ainda mais "atualizado", depois da "restauração burguesa" neoliberal e retrocesso da classe trabalhadora mundial [4] Se os eurocomunistas sustentavam há 30 anos que seguir falando de revolução com as mesmas ideias do passado já “não era revolucionário” e havia de se adequar ás condições da democracia capitalista ocidental, o novo reformismo foi reduzindo ainda mais ás "margens do possível" em seus objetivos estratégicos.
No eurocomunismo dos anos 70 operou uma redefinição de socialismo como uma ampliação e desenvolvimento da democracia burguesa, como único caminho para não cair em uma concepção "totalitária" da sociedade, mas com a promessa de uma "via democrática ao socialismo". A impostura não era gratuita; os partido comunistas em seguida dirigiam os sindicatos e teriam centenas de milhares de afiliados como base de manobra a quem "convencer".
Precisando de fortes relações orgânicas com amplos setores do movimento operário, os líderes do Syriza e Podemos caem numa sorte de impotência estratégica, sem se quer colocar o socialismo como horizonte, mas apenas o retorno ao "Estado de bem-estar". Um intento de revivência social-democrata, no que claramente não se propõe "transformar a sociedade capitalista", mas "administrá-la".
Democracia capitalista, fetichização do Estado e luta de classes
"A ‘ilusão política’ de desejar recuperar a democracia nos marcos deste sistema capitalista por meio de um ’governo decente’", dizíamos em outro artigo há alguns meses, "está baseada na premissa ilusória de um caráter ’neutro’ do Estado, como um espaço de poder vazio de conteúdo, ao que poderia outorgar-lhe um conteúdo político além dos poderes reais em que se sustenta" [5] Esta ilusão das bondades da democracia capitalista, que já fazia parte do acervo ideológico do eurocomunismo, reaparece com força na concepção dos líderes do Syriza e Podemos.
Em sua famosa polêmica com Kautsky, Lenin afirmava que "até no estado burgês mais democrático, o povo oprimido tropeça a cada passo com a flagrante contradição entre a igualdade formal, proclamada pela ’democracia’ dos capitalistas, e as milhares de limitações e subterfúgios reais que convertem aos proletários em escravos assalariados...". [6]
Ao falar em recuperar a "democracia" em geral, sem adjetivos, as direções do Syriza e Podemos dão razão aos modos liberais. Sua defesa de sistema política instalado na Europa ocidental, começando pela União Europeia, e sua utópica aspiração de "democratizar" suas reacionárias instituições pode ser um dos aspectos chave de sua recuperação do credo social-democrata. Ao reivindicar uma democracia "pura", sem classes, ou por cima destas, fazem um fetiche da democracia parlamentar e do próprio Estado capitalista atual, apresentando-o como o único espaço de ação política possível.
Há umas semanas, Chantal Mouffe - uma das referências teóricas, junto a Ernesto Laclau, dos dirigentes do Podemos - foi entrevistada por Pablo Iglesias no programa Otra vuelta de Tuerka. Ali Mouffe sintetizou o que considera mais relevante de suas teorizações em 30 anos, colocando que sua reformulação mais importante do marxismo foi a ideia de radicalizar a democracia". Mas, advertiu, isto foi mal interpretado, como que primeiro estava a democracia liberal seguida de um momento de ruptura e radicalização da democracia. Na verdade, precisou, não de um "momento de ruptura" nem muito menos de revolução, senão de alcançar transformações sociais no interior do Estado atual.
"Finalmente, o que nós propúnhamos era uma radicalização da social-democracia", mas depois de 30 anos de neoliberalismo, o que está colocado é "recuperar os fundamentos da social-democracia", disse Mouffe, antes de desenvolver uma crítica aos movimentos sociais por considerar o Estado como inimigo, algo a "destruir" ou "simplesmente deixar de lado". Ao que Iglesias responde:"Seguramente o Estado é a última esperança que resta ao povo". "Sim, exatamente", confirma Mouffe. Iglesias volta a falar sobre a ideia de que Podemos e Syriza buscam entrar no Estado para transformá-lo, "sobretudo porque não há outra coisa a fazer...", e se pergunta: "Mas que outro espaço político existe além do Estado?".
O que escapa do diálogo entre Iglesias e Mouffe é que o intento de recuperar o horizonte social-democrata, fazendo do Estado um eixo de intervenção política, coloca uma série de problemas que limitam de antemão esta perspectiva: 1) que o contexto de crise capitalista estreita enormemente as margens de qualquer intento de recriação social-democrata; 2) que se coloca sem transformar radicalmente as relações de forças, dando conta por sua vez da “debilidade de origem” do novo reformismo: sua falta de ancoragem social; e 3) que tem como consequência a “passivização” dos movimento sociais e populares, alimentando a ilusão gradualista” [7] de que se pode transformar a sociedade capitalista sem enfrentar a resistência de quem a domina.
A ilusão na democracia capitalista, a fetichização do Estado e a ausência de uma dialética entre parlamentarismo e luta de classes - onde a segunda seja a determinante -, condena ao novo reformismo a impotência estratégica, ao mesmo tempo que contribui para desarmar política e organizativamente os trabalhadores e setores populares tanto para as batalhas atuais como as futuras. Porque sem pôr em movimento forças sociais e materiais que enfrentem ao establishment, que mudam a relação de forças e preparem o “momento de ruptura“, apenas rebaixam os “acordos” com os poderes reais do capitalismo para fazer “o que se pode”.
Neste sentido, há outro fetiche que deriva desta concepção de Estado e a democracia, pelo qual se nutrem os discursos dos líderes do Syriza e Podemos: o fetiche da “maioria” eleitoral. Se tivermos a maioria, então submetemos a Troika ou a “casta” por meios democráticos. Mas este raciocínio choca-se a cada passo com a realidade. Vejamos o caso da Grécia: a maioria do povo grego votou no Syriza com a promessa de que aboliria o plano de “austeridade”. Contudo, as “instituições” tem exigido ao governo de Tsipras que aceite todas suas imposições... e este vem aceitando. Uma dura demonstração de que a “maioria” eleitoral não garante o poder real.
Não é em vão reafirmar que esta dinâmica contém um duplo perigo de acabar na assimilação política dos novos reformismos por parte dos capitalismo e a desmoralização popular, uma via para abrir o caminho a outras “soluções políticas”, as provenientes da extrema direita do círculo político.
Cidadania ou classe?
Num contexto em que se combinaram a crise econômica capitalista e a crise dos regimes políticos, a maioria da classe trabalhadora e os setores populares da Grécia e o Estado Espanhol vêm sofrendo padecidamente calados, a resposta no terreno da luta de classes não foi menor, não foi dado lugar a uma resposta ao nível de ataque e, enquanto há um giro ã esquerda em setores de massas, esta não se desenvolveu numa dinâmica de radicalização política. A persistência de aparatos burocráticos nos grandes sindicatos, ainda que em profunda crise, segue operando como um fator de contenção, enquanto que a dissolução da classe trabalhadora em movimentos “cidadãos” ou “democráticos” marca um limite significativo da situação.
Na “cosmovisão” dos novos fenômenos reformistas como Syriza e Podemos, coloca-se a possibilidade de gerar transformações políticas e econômicas sem a intervenção da classe trabalhadora como sujeito político, senão mediante a formação de uma maioria de cidadadãos-eleitores. Uma visão que, na mesma medida que mostra desconfiança na potencialidade transformadora da classe trabalhadora e, consequentemente, a negação de toda possibilidade de superação do sistema capitalista, justifica a colaboração de classes com os capitalistas.
Ainda que estas estratégias se localizem em um terreno crítico, as “alas esquerdas” integrada organicamente em ambas formações (como a Plataforma de Esquerda no Syriza ou Anti-capitalistas no Podemos) não colocam uma alternativa, defendendo uma sorte de estratégia combinada de “chegar ás instituições” junto aos reformistas, uma vez que impulsionam a mobilização para “radicalizar a democracia”. Uma perspectiva em que a revolução como “momento de ruptura” desaparece, ou no melhor dos casos, se apresenta um horizonte distante que emergirá ao final de uma “longa etapa de transformações democráticas”.
Neste contexto, a luta pela conquista da independência política da classe operária, seu papel como sujeito hegemônico capaz de liderar o conjunto dos setores explorados e oprimidos, e a necessidade de avançar na construção de um partido marxista revolucionário são tarefas fundamentais que têm por diante as organizações revolucionárias da Grécia e do Estado espanhol.
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