Argentina
O movimento operário precarizado na vanguarda da luta de classes
30/04/2006
Por: Facundo Aguirre
O governo de Néstor Kirchner parece gozar de uma situação econômica extraordinária e grande popularidade. Os últimos dados econômicos indicam que "a produção industrial aumentou 7,2% em março em relação ao ano anterior, levando 40 meses consecutivos de recuperação inicial e de crescimento posterior" (Clarín 20/04). Por outro lado, a imagem presidencial tem altíssimos índices de aprovação. Sem oposição, havendo superado a ameaça de um pico inflacionário mediante o acordo com pecuaristas e supermercadistas no tocante dos preços, enquanto os sindicatos impõem limites aos aumentos salariais de 19%, o kirchnerismo navega tranqüilo nas águas do poder.
Porém, uma série de lutas operárias dos setores mais precarizados da força de trabalho que vem se travando na Argentina, incitam os sinais de alerta da preocupação oficial. Em primeira instância, foi o estalar do conflito dos petroleiros e operários da construção de Las Heras, Santa Cruz, a província presidencial. Uma greve com piquetes dirigida por um corpo de delegados de base, foi ameaçada pela detenção de seu dirigente Mario Navarro, o que provocou uma revolta popular que liberou a Navarro com o saldo de um policial morto. A resposta oficial foi a ocupação militar de Las Heras e das plantas petroleiras, a detenção de 19 trabalhadores (hoje se mantém 7 detidos e processados acusados do homicídio do policial morto).A direção sindical dos petroleiros - engajada no kirchnerismo- deu as costas a este conflito. A crise desatou uma dura interna kirchnerista que custou o posto do governador de Santa Cruz, Sergio Acevedo e o reconhecimento público da coerção ilegal de Kirchner protagonizada contra os detidos.
Outro conflito que tomou grande repercussão pública foi o dos empregados das empresas terceirizadas do metrô de Buenos Aires, que pediam por sua participação no convênio coletivo da Unión Tranviario Automotor (UTA) que entre os dias 11 e12 impediram o tráfego, ocupando as entradas das estações subterrâneas. Na mesma quarta-feira, as forças policiais, por ordem direta do ministro do interior Aníbal Fernández, desalojaram as ocupações nas estações Primera Junta, Federico Lacroze e Once. O corpo de delegados do metrô, uma direção antiburocrática porém moderada, levantou a paralisação em troca de uma promessa de negociação.
Ocorreram vários casos parecidos, ainda que de menor repercussão pública, como os contratistas da Telecom e da Telefônica, entre outros, ã revelia de una nova realidade na luta de classes argentina, onde se germinam os primeiros passos de um novo movimento operário, precarizado e desprovido de direitos em seus ambientes de trabalho.
O trabalho precário
A existência de uma enorme força de trabalho precária é constitutiva da situação atual da classe operária argentina. Fazem parte dela "46% (mais de 5 milhões) dos assalariados, entre eles os trabalhadores imigrantes bolivianos da indústria têxtil expostos ao trabalho forçado (...). Também são precárias as condições de trabalho dos "terceirizados", produto de fraude trabalhista, cujas empresas pagam salários ainda mais baixos" (La Verdad Obrera 185 20/04). Acrescentemos a essa cifra os trabalhadores desempregados.
A segmentação da força de trabalho é resultado direto das políticas flexibilizadoras aplicadas na década de 90 e sua conseqüência é uma fragmentação interna no proletariado que se expressa na desigualdade das condições de trabalho e das remunerações salariais. Atualmente os sindicatos estão levando a cabo negociações salariais, todavia este setor trabalhista é excluído das negociações coletivas, que para alguns analistas, "só incluem uma fração do conjunto dos assalariados empregados, 2.402.088 sobre um total de 10.948.395, ou seja, apenas 21,9%" (La Verdad Obrera 185 20/04).
Governo, sindicatos e precariedade
Kirchner procura fortalecer os sindicatos como mecanismos de contenção, para evitar desbordes nas demandas salariais como em 2005. Assim o dirigente da Confederación General del Trabajo (CGT) o caminhoneiro Hugo Moyano se apresentou como aliado estratégico do kirchnerismo. Juntos negociaram os aumentos salariais estipulados em 19% para os caminhoneiros. Empregados do Comercio, UPCN, bancários, acordaram salários respeitando os topes. Esta realidade permite ao governo contar com a passividade dos sindicatos que contém a faixa salarial dos trabalhadores, esquecendo o papel que cumpriram como protagonistas das fortes disputas salariais de 2005. A maioria dos operários precarizados fica de fora, sendo que a precarização se trata de um dos principais eixos das atuais lutas operárias.
A greve dos Metroviários tornou público o debate pautado pela precarização. Segundo a definição de um editorialista "A greve no metrô é a prova semiplena de que como aliados Hugo Moyano e a CGT não são o suficiente para apaziguar a frente social." (Página 12 15/04). Em meio a um cenário bastante instável, com a ausência de representação sindical, os precarizados se vêem limitados por uma série de mediações. Neste sentido, o analista sindical Julio Godio, explica que "O conflito (...) com os trabalhadores de una empresa que terceiriza os serviços de segurança dos Metrôs deveria se inserir em una visão mais ampla de certo tipo de conflitos trabalhistas (...) Em todos estes conflitos existe una exasperação de setores de trabalhadores por salários e condições de trabalho. Agora bem, essa exasperação de fato não tem canalização político-institucional e resulta em greves selvagens e enfrentamentos brutais." Então recomenda aos dirigentes que "Para evitar que isto ocorra, seria necessário canalizar sistematicamente as suas demandas. (...) Deve-se regular claramente os trabalhadores de empresas terceirizadas que tem direito a sindicalização ou a participação nos grandes sindicatos." (Julio Godio Página12 13/04)
A responsabilidade dos sindicatos na situação atual dos trabalhadores, pelos compromissos da direção sindical para com o neoliberalismo desde a década passada, bem como as políticas patronais, deixam estas organizações nas mãos da burocracia, para levar adiante a tarefa de organizar e representar este setor do proletariado. Caso o ativismo der um giro ã esquerda, a única resposta possível do governo é a repressão ã vanguarda operária.
Por novas organizações de base
O despertar dos precarizados e de suas organizações de base (comissões internas e corpos de delegados) conquistados a despeito da burocracia permitem pensar a recomposição da força do movimento operário e sua unidade de baixo pra cima. Como sustentamos no La Verdad Obrera (185 20/04) "Pode-se dar os primeiros passos rumo ã unidade da classe trabalhadora em cada lugar de trabalho.
A luta dos petroleiros de Las Heras mostrou o exemplo de assembléias comunitárias e um corpo de delegados unificando os trabalhadores sob o convênio petroleiro e os terceirizados da UOCRA. Recentemente, na Linha B do metrô, ocorreram assembléias com a presença dos companheiros das empresas terceirizadas para decidir os próximos passos após a repressão do governo. Esta unidade na luta, todavia não pode ser casual, temos que prepará-la. As organizações de base dos trabalhadores, as comissões internas e os corpos de delegados, devem conceder os direitos aos companheiros terceirizados; direitos estes negados pelas patronais e pelo Ministério do Trabalho. É necessário que haja corpos de delegados internos que representem a todos”.Lutar por esta perspectiva implica também lutar contra o espírito corporativo e economicista que a burocracia semeia entre os trabalhadores sindicalizados.
A unificação das demandas e a organização democrática comum, bem como a autodefesa frente ã repressão, são as tarefas desenvolvidas para permitir que o conjunto da classe trabalhadora avance no caminho da recuperação de suas organizações nas mãos da burocracia, para realizar sua experiência com o governo para que venha a destacar uma vanguarda disposta a lutar pela independência política de classe.
Um desafio para a esquerda operária e socialista
No dia 24 de março o governo destacou a esquerda como o centro do debate, qualificando-a como uma "esquerda sinistra". Era um ataque preventivo enquanto negociava com os burocratas sindicais os salários. Temem que a esquerda consiga representar os setores avançados em luta. A emergência de uma nova camada da vanguarda operária combativa brinda a possibilidade para que a esquerda operária e socialista, que milita na luta de classes agrupe forças em torno de um programa e uma estratégia independente da burocracia sindical e do kirchnerismo. A partir do PTS há tempos que vimos nos empenhando no desenvolvimento da coordenação efetiva das lutas operárias e dos militantes em organizações democráticas, para preparar os conflitos, ampliando a solidariedade nas lutas existentes, para lutar pela recuperação das comissões internas, os delegados e as secionais sindicais, levantando um programa de luta antiburocrático, anticapitalista e antigovernista. Setores sindicalistas como os companheiros do Movimento Intersindical Classista (MIC) contrariaram esta perspectiva para não se chocar com alguns burocratas sindicais da CTA, e manter a neutralidade frente ao kirchnerismo. A mesma atitude foi encampada pela esquerda socialista partidária como o PO e o MST.
O desafio é claro: estruturar-se organicamente na classe trabalhadora para se opor ao governo que garante a continuidade do domínio imperialista e da classe capitalista, a luta pela independência política dos trabalhadores sob um programa socialista. Intervir junto aos ativistas e setores combativos nas atuais lutas e nas que estão por vir com o claro fim de nos prepararmos para pesar decisivamente quando as ilusões no reformismo light de Kirchner cederão lugar a um novo auge de lutas políticas da classe trabalhadora.