Economia mundial
A economia mundial frente a uma crise de divida
20/05/2011
A dívida norte-americana
Pela primeira vez na história, a agência qualificadora Standar & Poor’s passou de estável ã negativa a perspectiva de qualificação da dívida norte-americana posto que “duvida da capacidade da classe política estadunidense de enfrentar o déficit orçamentário”. O economista chefe do FMI, Olivier Blanchard, declarou que os Estados Unidos não têm um plano crível para reduzir o déficit fiscal.
O índice de riscos país manejado pelo JP Morgan Chase se baseia na qualificação de risco zero para os Bônus do Tesouro norte-americano e a partir dali considera a sobretaxa que devem pagar os bônus de qualquer outro país. Graças a este suposto risco “nulo” vinculado a qualificação da sua dívida, os Estados Unidos pode financiar seus déficits mediante a colocação de Bônus do Tesouro e deter sua dívida porque o mundo tem uma grande demanda destes bônus que representam, ao menos em termos relativos, um ativo seguro. Como o interesse dos títulos se calcula em função direta ao risco, os Bônus do Tesouro pagam um interesse muito baixo. Embora seja altamente improvável uma suspensão de pagamentos por parte dos Estados Unidos porque é quem emite os dólares que continua sendo a moeda de reserva mundial, não é menos certo que as medidas de relaxamento quantitativas e de baixas taxas de juros incentivam um processo continuo de desvalorização do dólar que opera como mecanismo encoberto de default. Isto significa que em termos reais todos os detentores de dívida em dólares sofrem descontos de fato, ainda quando em termos nominais não estejam diante a ameaça de deixar de cobrar nem de cobrar menos. Atualmente, dos aproximadamente 9 trilhões em obrigações e Bônus de Tesouro emitidos pela Reserva Federal, 60% está nas mãos de fundos soberanos e do próprio FED enquanto que investidores privados possuem somente 40%. Como o Tesouro dos Estados Unidos emite os títulos e a FED os compra mediante a emissão de dólares, cerca de 70% desses títulos foram adquiridos pela própria FED [1]. A China, por exemplo, coloca a maior parte de sua crescente acumulação de divisas em Bônus do Tesouro norte-americano. Embora o gigante asiático esteja diversificando sua carteira de bônus tanto para obter um rendimento maior como para prevenir explosões em determinadas regiões do planeta funcionais a seus interesses comerciais e está incrementando seus investimentos no exterior como mostram os exemplos do Brasil, Argentina, Espanha e Portugal, existem poucos mercados alternativos para investimentos rentáveis. É por isso que China que possui cerca de 1,15 trilhões de dólares em Bônus do Tesouro continua destinando a maior parte do aumento de suas reservas a esse ativo. Isto significa que a mais-valia produzida pela China (ou melhor dizendo pelos operários chineses), se encontra frente a escassas possibilidades de acumulação e a forma de “preservá-lo” consiste em depositá-lo em papéis que são em grande parte produto de uma manobra contável dos Estados Unidos. Na medida em que o dólar se desvaloriza, como capital permanece preso a um processo persistente de perda de valor. Mas uma diminuição efetiva da nota da dívida dos Estados Unidos, implicaria uma queda no preço dos bônus em termos nominais e um aumento do risco que supõe possuí-los. Este é um dos temores da China que se intensificou com os anúncios do S&P e que levou a solicitar aos EUA “medidas responsáveis” sobre sua dívida. O “aperto” em duas pontas tanto do S&P como do FMI parece ser mais uma “pressão-colaboração” com as atuais necessidades de Obama e dos democratas de reduzir a enorme carga da dívida pública e o déficit fiscal mediante mediadas de ajuste, contra seu discurso, no contexto de um período eleitoral. Por sua vez, a política da S&P como também de PIMCO, o maior fundo de investimento do mundo que anunciou uma drástica redução de sua exposição aos bônus do governo norte-americano, está orientado a influir sobre a política monetária norte-americana. PIMCO busca forçar uma queda no preço dos títulos e um aumento do rendimento para retomar uma posição compradora realizando espetaculares lucros. Logo que o Estado os salvou da bancarrota, o capital financeiro pressiona por ajuste e ataca seus próprios salvadores.
Os anúncios de Bernanke e o estado da economia
Contudo, os recentes anúncios do presidente da FED, de que pelo menos até setembro manterá os baixíssimos níveis atuais das taxas de juros e que o programa de emissão monetária continuará até sua finalização (ainda que em princípio não estaria na agenda um QE3), são provas da grande dependência do Estado de “saúde” da economia norte-americana dos programas de assistência estatal e da desvalorização do dólar. Os anúncios foram acompanhados da revisão da baixa dos prognósticos de crescimento da economia norte-americana do 3,4/3,9% para o ano corrente ao 3,1/3,3% no melhor dos cenários [2]. O encarecimento da energia e dos alimentos assim como o aumento do preço das matérias primas são fatores centrais que estão afetando tanto o consumo [3] que representa o 70% do PIB norte-americano, como o investimento das empresas. O que acontece é que os Estados Unidos estão sofrendo pela via de uma incipiente estagflação [4], as conseqüências das massivas injeções monetárias conhecidas como QE2. Se inicialmente o relaxamente qualitativo fortaleceu a economia norte-americana permitindo-lhe uma persistente desvalorização do dólar melhorando sua balança comercial, inundando o mundo de dólares e impulsionando a revalorização das moedas dos países receptores, por sua vez, estas massas de capital líquido em um contexto de insegurança geral e escassas oportunidades de investimentos, desenvolverão novas bolhas nos mercados futuramente. Este é o caso dos alimentos, do petróleo, do ouro e das matérias primas em geral. As pressões inflacionárias resultantes atuaram como estopim da convulsiva situação do Norte da África, mas lentamente estão também minando as bases da recuperação da economia norte-americana. O aumento da inflação está provocando a elevação do déficit comercial que se combina com a depressão do mercado imobiliário, a redução do gasto público, a desaceleração do consumo e do investimento. Nos Estados Unidos convergem uma lenta mais persistente inflação que se elevou uns 3,8% no trimestre representando a maior alta desde o terceiro trimestre de 2008 quando estourou a crise econômica mundial, com tendências de desaceleração da economia.
Esta situação de incipiente estagflação se produz ao mesmo tempo em que o problema da dívida aparece como mais agudo e que tanto Democratas, como Republicanos, agências qualificadoras e fundos de investimentos assinalam que o nível de déficit fiscal se torna insustentável.
A grande contradição consiste em uma espécie de beco sem saída para o Estado Maior norte-americano: uma retirada das medidas de estímulo resultaria em uma recaída na recessão e um aumento da luta de classes, sua continuidade pode induzir a médio prazo a uma explosão de uma série de bolhas, entre elas a da dívida, uma desvalorização severa dos Bônus do Tesouro e a incapacidade dos Estados Unidos de seguir adquirindo dívida.
Europa: entre a reestruturação e o default
A recente crise política de Portugal que acabou solicitando um resgate a União Européia que atingiria 78 bilhões de euros, desmascarou novamente a severa crise econômica que atravessa a zona. Nas recentes eleições parlamentares da Finlà¢ndia, a muito boa eleição do europeu cético e xenófobo Timo Soini, mostra a possibilidade de que o parlamento não aprove o resgate a Portugal, com o qual o mecanismo de “salvamento” poderia ficar bloqueado. Ainda que como é muito provável, isto finalmente aconteça, demonstra um elemento crítico que piora a situação. Ao mesmo tempo se desenvolvem uma série de rumores e negações ao redor da “oportunidade” de uma reestruturação da dívida grega que implicaria uma queda de aproximadamente uns 40%. Mas como conseqüência que apesar dos duríssimos ajustes aos quais foi submetida a economia grega em troca do “resgate”, sua dívida é ostensivamente impagável. Como conseqüência da recessão o déficit triplicou 10,5% do PIB e segundo se calcula, a dívida pública alcançará 160% no próximo ano, o desemprego encontra-se em 15% e a contração da economia prognosticada para 2011 é de 3% representando um terceiro ano consecutivo de recessão. A Grécia está voltando ã situação inicial quando teve que ser “resgatada”. Se a Grécia não consegue retirar sua dívida, vai entrar em cessação de pagamentos questão que colocaria novamente em perigo o conjunto da zona européia. O ministro alemão de finanças, Wolfgang Schäuble, declarou que a Grécia deveria tomar medidas adicionais, entre as quais poderia se incluir a reestruturação de sua dívida. No entanto o economista chefe do Banco Central Europeu, Jurgen Stark, manifestou que “a reestruturação da dívida e de um Estado membro poderia ofuscar os efeitos que gerou Lehman”. O problema é que tanto um default como uma reestruturação gerariam uma reação em cadeia de todos os “PIGS” e o grande perigo mora em o mais temido deles: Espanha. Sua economia é maior que a soma das de Grécia, Portugal e Irlanda e seus bancos são os principais credores da dívida portuguesa. A economia do Estado Espanhol se contraiu 0,1% durante 2010 e o desemprego acaba de superar 22%, mais que o dobro da média européia. Uma queda em cadeia já seria pela via do default ou de uma série de retiradas que resultaria fatal para os países centrais da Eurozona dado que a exposição de seus bancos no sistema bancário “pobre” da Europa, é chave. O sistema bancário francês tem uma exposição ã dívida soberana dos “PIGS” de 16% de seu PIB e o sistema bancário alemão, de 15%. Se se leva em conta que o setor bancário representa aproximadamente uns 40% das economias de França e Alemanha, se conclui que um default afetaria aproximadamente uns 6,4% do PIB da França e uns 6% do PIB da Alemanha [5]. que significaria uma séria recessão dos principais países centrais da Europa e uma situação que tornaria insustentável a continuidade do euro. É por isso que na zona vem se gestando uma espécie de default não declarado. Desde maio de 2010 o Banco Central Europeu compra títulos depreciados de dívida de Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha apelando ao mecanismo denominado Bonds Purchasing Programme. Na medida em que a crise da dívida européia foi se agravando, os bancos, fundos de investimentos e financiadores privados começaram a desprender-se dos bônus pelo seu valor nominal para evitar queda dos valores como os ocorridos na UE com a crise subprime, aceitam vende-los com descontos que oscilam entre 10 e 30%. O BCE é o único comprador desses títulos chegando a “atesourar” bônus por 77.500 milhões de euros com que assume o risco de grandes perdas. A idéia do Presidente do BCE, J.C. Trichet, era transferir essa responsabilidade ao Fundo Europeu de Estabilidade Financeira. Mas despontou a crise de Portugal e a cadeia de “desgraças” que a sucedeu. O resgate a Portugal absorverá uma grande parte dos recursos do Fundo Europeu que estavam destinados a compra da dívida com o qual a estratégia de Trichet se torna inviável. Ainda que o volume da dívida grega é impossível de assumir e cedo ou tarde haverá reestruturação, tanto uma suspensão de pagamentos como uma reestruturação em quaisquer dos países em questão, “levantaria as expectativas de repetir-se em outros países”, “abriria um novo capítulo da crise financeira mundial”, e “exigiria novas injeções de capitais públicos nos bancos” [6] por isso o BCE, enquanto puder, continuará com o mecanismo de default não declarado.
Tendências
A questão das dívidas dos estados, um dos mecanismos fundamentais que evitou a recessão mundial desatada nos finais de 2008 se converteu em depressão, representa, como os elementos de crise de dívida em ambos lados do Atlà¢ntico estão colocando em evidência, um dos pilares débeis da recuperação. Por sua vez, a desigualdade nos ritmos de crescimento entre os países centrais e aqueles dependentes ou semi-coloniais, que também atuou como fator que permitiu a recuperação, produz outro fator de sérios desequilíbrios. Esta desigualdade que gerou um processo inflacionário na periferia, uma das causas dos atuais processos convulsivos no Norte da África, hoje está alimentando tendências a estagflação nos países centrais. Ambos aspectos prometem um aumento de reestruturações da dívida, possíveis defaults e novos ajustes que põe em questão a instável recuperação em curso e que muito provavelmente tenderão a unificar, ao menos em médio prazo, as tendências a um aumento da luta de classes não somente no Norte da África mas também na Europa e Estados Unidos.
[1] ‘Libre Mercado’, 14/04/2011
[2] O ritmo de crescimento reduziu de 3,1% no fim de 2010 a 1,8% durante o primeiro trimestre de 2011.
[3] Cresceu 2,7% este trimestre frente a 3,5% do trimestre precedente.
[4] Estagflação: A estagflação indica o momento ou conjuntura econômica em que, dentro de uma situação inflacionária, se produz um estancamento da economia e o ritmo da inflação não cede. Junção de ‘estagnamento’ com ‘inflação’. (Nota do Tradutor)
[5] Dados extraídos do ‘El País’, 28/04/2011
[6] ‘El País’, 28/04/2011.