Argentina
A polarização política na Argentina de Cristina Kirchner, a “teoria do populismo” e a esquerda
08/04/2008
As vésperas do aniversário de 44 anos do golpe contra-revolucionário de 1964, a Folha de São Paulo, órgão geralmente associado ás alas democráticas da burguesia paulistana, publicou um editorial sobre a crise então aberta na Argentina que constitui uma peça reveladora da ideologia de certos setores “democráticos” da burguesia brasileira.
Neste artigo, que tratará brevemente da recente crise política na Argentina e das posições da esquerda local frente ã crise, nos deteremos na análise apresentada pela Folha para a crise no país vizinho, pois consideramos que do ponto de vista ideológico esta marca um curso direitista altamente revelador de algumas das tendências mais profundas da situação nacional. A chave da polêmica está no uso particular dado ã explicação da crise como sintoma do que seria o "esgotamento da política populista" do casal Néstor e Cristina Kirchner.
Uma breve introdução ã recente crise na Argentina
O início da crise está ligado ao anúncio pelo governo de Cristina Kirchner, no dia 11 de março, de um aumento importante na carga de impostos sobre os produtos agrícolas, um pacote tributário que ficou conhecido como “retenções móveis”.
Dias depois começava a paralisação agropecuária que deu origem a uma enorme crise política, produzindo um giro brusco no cenário político nacional. O auge da crise se deu após o dia 25 de março, quando um duro discurso de Cristina Kirchner provocou uma grande manifestação das classes médias urbanas na forma de um enorme “panelaço” em frente ã sede do governo, e um salto na polarização com o campo.
Como sabemos, atualmente a crise foi debelada, mediante uma política gradual do governo que já no dia 27/3 iniciou um recuo parcial, anunciando em 31/3 uma diferenciação nas medidas para amenizar o golpe sobre os pequenos produtores, ao mesmo tempo em que redobrava a campanha contra o desabastecimento de produtos básicos causado pela paralisação dos produtores rurais. O resultado foi um recuo dos impulsionadores do conflito no campo, que anunciaram no dia 2/4 uma trégua de 30 dias, ao longo dos quais buscarão uma negociação com o governo que termine definitivamente com o conflito.
De todo modo, o confronto com os latifundiários e empresários do agronegócio, os quais mobilizaram para seus fins os pequenos produtores rurais, deixará marcas profundas na administração de Cristina Kirchner, que completou recentemente seus primeiros cem dias de governo, e nesse sentido pode-se dizer que a crise política ainda não está encerrada.
A FSP: uma leitura pra lá de tendenciosa da crise
Como afirmamos, o editorial da Folha de São Paulo, publicado na sexta feira 28/03, é uma peça reveladora da ideologia de certos setores democráticos da burguesia brasileira. Apesar de curto, o texto é capaz de sintetizar um grande número de idéias-chave na construção do pensamento "democrático-conservador" que tanto caracteriza a atitude política de setores médios e grandes da patronal.
O editorial começa lembrando a experiência recente das jornadas revolucionárias de dezembro de 2001, que derrubaram o presidente Fernando De la Rúa: "com pouco menos de quatro meses de mandato... enfrenta sua primeira onda de protestos populares, os ’cacerolazos’ [panelaços], que, no passado, já derrubaram governantes". A razão desse início é clara: recordar a última irrupção do movimento de massas, brandindo assim um “fantasma” capaz de colocar a postos todos os reacionários.
A explicação para os protestos, segundo o editorialista, seria "óbvia": "o esgotamento das políticas populistas adotadas pelo casal Kirchner - o antecessor de Cristina foi seu marido, Néstor.(...) O atual ciclo de distúrbios teve início depois que o governo anunciou, há pouco mais de duas semanas, um brutal aumento dos impostos sobre exportações agrícolas.(...) Com a medida, a administração esperava arrecadar mais US$ 11 bilhões para financiar programas sociais". Ou seja, aqui estaria o "populismo" de Kirchner, que no plano fiscal e tributário se reverteria em uma carga "brutal" sobre os pobres latifundiários, para financiar o vilào da história: os "programas sociais".
No entanto, para sustentar semelhante interpretação, o cuidadoso editorialista é obrigado a distorcer completamente o conteúdo da política tributária de Cristina Kirchner, a qual longe de qualquer aspecto "Robin Hood" está voltada a reinvestir na indústria os altíssimos ganhos do agronegócio argentino.
A FSP, em sua ânsia de prosseguir na guerra ideológica travada pela grande mídia brasileira contra os governos “pós-neoliberais” de retórica nacionalista da região (Chávez, Evo Morales, Correa), toma como verdade a hipocrisia governamental sem limites de Cristina Kirchner. Assim, trata como uma política “populista” de incentivo aos “programas sociais”, uma orientação bem distinta, levada a cabo por CK. A realidade argentina mostra isso de maneira contundente: os bilhões de dólares arrecadados pelo Estado desde que os Kirchner assumiram não foram para garantir leite e alimentos para as milhões de crianças que estão abaixo da linha da pobreza, nem em geral para atender os anseios dos trabalhadores e do povo pobre argentino. Ao contrário, esses bilhões de dólares foram dedicados ao pagamento da dívida externa, para financiar os negócios escusos entre os governos provinciais e municipais e seus “empresários amigos”, para aumentar através de subsídios, isenções e investimentos diretos os lucros dos grandes industriais e empresários dos transportes, assim como, e sobretudo, foram especialmente destinados a beneficiar os grandes grupos monopólicos do agronegócio e os grandes frigoríficos exportadores. Sob os governos dos Kirchner continuou o processo de concentração da propriedade da terra, assim como a brutal exploração dos peões rurais, que em suas três quartas partes trabalham de maneira precária, sem nenhum direito trabalhista.
Porém isso tudo não interessa ao discurso da FSP. Para tratar de legitimar o protesto encabeçado pelos senhores de terras da Sociedad Rural, a Folha carrega nas tintas e desencava um linguajar típico do liberalismo mais conservador. É assim que o editorial, a pretexto de descrever a dinâmica do conflito, recupera a imagem da “derrama”: "Os agricultores reagiram ã derrama dando início a um locaute, com bloqueios rodoviários que agravaram o desabastecimento no país". Com isso, já entramos no terreno ideológico da revista Primeira Leitura (essa sim, abertamente liberal-reacionária): o imposto sobre os altos lucros do setor agroexportador é retratado como uma "derrama" - alusão direta aos impostos extorsivos exigidos pela Coroa portuguesa na fase da exploração do ouro de Minas Gerais, contra cuja cobrança se organizou a famosa “Inconfidência Mineira” de Tiradentes.
Por último, num lance importante para dar uma aparente consistência ã posição política defendida pela FSP, angariando a simpatia do setor social predominante entre seus leitores, a incorporação de setores da classe média urbana aos protestos é recebida com regozijo pelo editorialista. "A surpresa veio na noite de terça-feira, quando habitantes das cidades, num movimento em grande parte espontâneo, se aliaram aos agricultores e bateram panelas contra o governo. (...) Motivos para tanto não faltam. Bem ao estilo peronista, os Kirchner adotaram o caminho do populismo econômico". Mas em que consistiria tal "populismo econômico"? Ele explica: "Néstor Kirchner congelou preços e tarifas e despejou dinheiro para o consumo na forma de aumentos para o funcionalismo público e programas sociais" [os grifos são nossos].
Fica então claro contra o que e contra quem está voltado de fato o sutil editorial: na forma do “combate ao populismo”, um combate ás necessidades e reivindicações dos trabalhadores e do povo pobre, os quais o governo, demagogicamente, pretende representar.
Como se vê, o que a FSP demonstra é seu alinhamento mais tacanho com as posições do latifúndio e das classes médias antipopulistas - aquele setor social que se costuma chamar nos nossos países vizinhos de “gorila”, e que no Brasil poderia ser identificado com o velho ranço “udenista” (em alusão ã velha UDN da agitação a favor do golpe militar) da época do varguismo, e que hoje se manifesta por diversas vezes na oposição da direita burguesa a Lula, e isso por mais esforços que este faça para se afastar de qualquer veleidade “populista”.
Mais algumas considerações sobre a “teoria do populismo” e o golpe de 1964
A chamada "teoria do populismo", que tem entre seus principais formuladores o intelectual tucano Francisco Weffort, foi a análise por excelência dos setores "democráticos" da burguesia, agrupada ao longo dos anos 1970 na "ala esquerda" do MDB, da qual uma expressiva parcela iria fundar posteriormente o PSDB (Fernando Henrique Cardoso, José Serra, etc).
Nos limites deste artigo, poderíamos resumir essa teoria como uma interpretação do golpe militar que, se por um lado condena a intervenção política das Forças Armadas e defende o "retorno" ã institucionalidade democrática, por outro lado abarca o seguinte complexo ideológico: 1) atribui uma elevada parcela de responsabilidade do golpe a suas vítimas, isto é, ás massas e as alas burguesas alijadas do poder pelo golpe; 2) consideram que o erro fundamental cometido pelas tais alas burguesas (os "políticos populistas") estaria justamente no desprezo pela institucionalidade e o excesso de concessões ás massas, e em particular ao uso da mobilização popular como instrumento de pressão, seja diante do imperialismo, seja para paralisar a resistências das alas burguesas prejudicadas pelo atendimento a reivindicações parciais do movimento de massas (em geral, latifundiários, setores da burguesia industrial, etc).
Nesse marco, a "política populista" estaria ligada a um passado atrasado do país, em que as instituições seriam ainda demasiado frágeis, e isso fundamentalmente porque nesse momento histórico e própria estrutura de classes ainda seria difusa e imperfeitamente diferenciada. Uma vez superado esse estágio, pelo desenvolvimento sócio-econômico do país, o "populismo" se esgotaria, dando lugar ou bem a uma ditadura militar sangrenta (caso do regime inaugurado em 1964) ou a um regime democrático que necessariamente deveria se apoiar no compromisso democrático de todos os "atores políticos". Ou seja, todas as classes, e em particular seus representantes políticos, devem aceitar as "regras do jogo" e salvaguardar a "governabilidade".
Essa fundamentação teórica teve um grande papel na "transição negociada" pós ditadura e na arquitetura do atual regime democrático. Em particular teve um enorme peso na cooptação e domesticação do PT - partido surgido de grandes lutas operárias independentes da burguesia - e seu grande teste ácido (após a própria conclusão pacífica da transição pactuada) foi a queda do presidente Fernando Collor em 1992, quando foi o PT quem defendeu mais ardorosamente a necessidade da conciliação nacional e da prioridade ao "compromisso democrático" (Zé Dirceu, por exemplo, chegou a achar que o próprio "impeachment" poderia ser perigoso, pois poderia liberar energias populares incapazes de ser contidas nos débeis marcos da tão restrita “democracia” então recém forjada).
De volta ã polarização atual: o exemplo oposto do oficialismo argentino e sua mitologia
Não por casualidade, o conflito atual entre o governo de Cristina Kirchner e o “campo” suscitou também na própria Argentina comparações com a polarização política da época de declínio do peronismo, e em alguns casos com os anos que antecederam o sangrento golpe militar de 1976.
Num artigo recente, Matías Maiello, do PTS argentino, mostrava como um intelectual dedicado a defender o “kirchnerismo” oficial, Nicolás Casullo, esforçou-se em apresentar o conflito das últimas semanas como um mítico enfrentamento “entre o peronismo e as privilegiadas rendas agrárias”. Casullo argumenta que para analisar a situação argentina “seria preciso retroceder ã relação do peronismo com o mundo dos latifundiários do período 1946-1955, a criação do IAPI (Instituto Argentino de Promoção do Intercâmbio) por parte de Perón para a intervenção do Estado no comércio exterior das companhias exportadoras, transferir recursos ao conjunto da sociedade, monopolizar o manejo das divisas e aplicar a paridade cambial”. Nesse marco, o peronismo, tanto o do velho Perón como o atual dos Kirchner, representaria por excelência o enfrentamento com o latifúndio e as oligarquias entreguistas, em nome do desenvolvimento industrial e nacional.
Deixaremos a crítica a Perón para outro momento. No entanto, como aponta Matías, os anos do kirchnerismo marcaram, ao contrário do mito “nacional-desenvolvimentista”, um claro favorecimento dos setores ligados ao agronegócio e ã exportação de commodities. O governo de Néstor Kirchner (predecessor do atual de sua mulher, Cristina), longe de encarnar um peronismo enfrentado com os interesses da velha oligarquia rural, como fazem crer seus apologistas, na verdade apostou fundo no desenvolvimento da “pátria sojera”. Assim, se agora o governo de Cristina Kirchner é surpreendido por uma contra-ofensiva dos grandes latifundiários e empresários do agrobusiness, que se recusam a aceitar qualquer redução de seus lucros estratosféricos, o que nenhum apologista pode explicar é quem foi que criou o monstro, e mais ainda, quem é que o mantém bem alimentado. A resposta óbvia (o próprio kirchnerismo) desmontaria todo o argumento mitológico criado a favor do governo.
A esquerda argentina frente ã crise
Na Argentina frente ã crise e ã greve do campo houve duas posições na esquerda. De um lado, o bloco encabeçado pelo PTS e o PO junto ao MAS que chamava a não apoiar a greve do campo mas também a repudiar a o governo e levantaram uma posição independente, chamando o movimento operário a aproveitar a crise para lutar pelas suas próprias demandas, um programa que propõe a aliança dos trabalhadores das cidades com os do campo e os pequenos agricultores e que ataca os grandes monopólios capitalistas com um programa de transição para o campo. Por outro lado, o bloco formado pelo MST em apoio aos agricultores junto ao PCR, que apoiaram diretamente a greve do campo de conjunto, ambos colocados como opositores ao governo.
Uma citação ilustra bem a posição do MST argentino, abertamente ao lado dos protestos organizados pela oligarquia latifundiária: “o lugar dos pequenos e médios produtores, dos trabalhadores rurais, está na luta que se leva a cabo, porém disputando a direção aos latifundiários” [grifo nosso].
Por sua vez, o comitê de enlace FOS-IT, se por um lado coloca corretamente no texto que “Não devemos entrar na falsa opção de apoiar o governo ou os empresários do agro negócio”, por outro lado, no entanto, defende na ação que “devemos ir ás mobilizações dos pequenos-produtores, levando-lhes a nossa solidariedade e propondo-lhes ações unitárias”.
Assim, terminam defendendo a falsa opção de apoiar aos pequenos produtores em greve, os quais por sua vez levantam o programa dos empresários do agronegócio da arqui-oligárquica Sociedad Rural. Os piquetes dos agricultores e os panelaços das classes médias urbanas rechaçavam o governo, porém, com o programa dos latifundiários. Por isso, a esquerda não podia participar dessas ações. Os grupos morenistas da LIT na Argentina, representados no comitê de enlace, mesmo sendo pequenos grupos não souberam se posicionar frente ã crise. Foram novamente atrás do MST que foi junto aos maoístas do PCR, e colocaram em evidência sua inclinação a ceder aos setores de classe média, expressão da sua falta de intransigência quanto ao programa e ã estratégia da classe operária.
A analogia com a posição da LIT e do PSTU frente ao recente referendo na Venezuela, quando se alinharam ã posição dos esquálidos e do imperialismo, sempre com o surrado argumento morenista de “disputar a direção ã burguesia”, é evidente. Naquele caso, rechaçando corretamente a reforma constitucional bonapartista proposta por Chávez, a independência de classe foi sacrificada no altar do “movimento democrático” contra Chávez - curioso “movimento democrático”, encabeçado pela direita burguesa anti-chavista e por Washington. Desta vez, as ambigüidades dos representantes argentinos da LIT impedem o combate conseqüente contra a manipulação dos pequenos agricultores pela ultra-reacionária Sociedad Rural, e novamente se compromete a possibilidade de apresentar uma saída operária efetivamente independente diante da crise. Lamentavelmente, os grupos da LIT, apesar de se colocar ã esquerda do MST, não passaram a prova de manter uma clara posição de classe, que passaria por somar-se ao chamado encabeçado pelo PTS e o PO.