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Debate

As confusões da LIT sobre a Líbia

28/03/2011

A três semanas da insurreição em Benghazi, que deu início a uma estendida rebelião popular contra o regime de Muammar el-Kadafi na Líbia, os sangrentos combates entre as forças governamentais e a oposição seguem em escalada, em que as duas forças existentes (não necessariamente no sentido de classe) se engajam ferozmente pelas posições geográficas mais estratégicas dentro do país, abrindo passo a um processo de guerra civil entre frações com resultado ainda indeterminado.

Nestes combates se enfrentam as forças que permanecem leais a Kadafi, principalmente o aparato de segurança do estado, setores do exército e mercenários trazidos dos países adjacentes, e as milícias da oposição, compostas por setores do exército que desertaram e se passaram para o lado da rebelião e, principalmente, por dezenas de milhares de jovens pobres e de classe média, que voluntariamente e de maneira espontânea se unem para a defesa das cidades ante o avanço das tropas oficialistas. A existência destas milícias irregulares atesta que, apesar dos esforços do Conselho Nacional de Transição com sede em Benghazi – que atua como governo provisório da oposição – não pode levar adiante sua política de desarmar a população (enquanto Kadafi abre as portas dos arsenais de armas em Trípoli para que todos aqueles que queiram “salvar a Líbia”, isto é, ele mesmo e sua posição privilegiada no regime, possam lutar com menos freios!). Ainda assim, o Conselho Nacional “opositor”, composto de diversos elementos do antigo regime de Kadafi e por todo tipo de forças reacionárias – como o ex-ministro da Justiça, Mustafa Abdel Jalil, nasseristas e até jihadistas islà¢micos – que tem suas forças regulares disciplinadas e dirigidas pelos ex-oficiais do regime, se nega a coordenar relativamente as diversas frentes em que os rebeldes mostram vigor suficiente para rechaçar a contra-ofensiva de Kadafi, como em Zawiya (a 50km a oeste de Trípoli), e Ras Lanuf, cidade petroleira crucial no meio do país, a leste da capital.

A ausência de uma articulação conjunta entre as cidades tomadas entre êxitos episódicos e reveses parciais por parte dos rebeldes, ausência essa garantida pelo “governo provisório” da oposição, facilita a reorganização interna das forças de Kadafi e desvela a contra-tendência mais débil deste processo, apesar de seu grau de radicalidade: a direção política do processo está hegemonizada por setores de “notáveis”, que incluem as classes médias ilustradas, empresários e elementos que desertaram que procuram outro regime mais confiável para assegurar os interesses imperialistas. Estes setores dirigentes – que não aparecem nas notícias dos furibundos e sangrentos combates pelos postos avançados dos rebeldes – se ocupam em mendigar a intervenção militar da UE – setores do Conselho pedem a intervenção militar da OTAN mediante uma zona de exclusão aérea e bombardeios seletivos – e do imperialismo norte-americano, seu reconhecimento por parte da comunidade dos piratas internacionais, negociatas de anistia a respeito de Kadafi: uma política que consiste em evitar uma revolução social que liquide todos os privilégios de classe que os capitalistas líbios e estrangeiros – proprietários das petroleiras – gozam impunemente sob o regime de Kadafi.

Essa atitude de mobilizar as forças populares de maneira controlada e negociar saídas conjuntas com o imperialismo – o que rendeu ao Conselho Nacional o aval de “interlocutor político válido” por parte do primeiro ministro britânico David Cameron e de Sarkozy, que apontou que neste caso da Líbia poderia prescindir-se do aval do Conselho de Segurança da ONU para uma intervenção militar, o que causa contradições importantes dentro da UE – é a expressão diplomática dos verdadeiros interesses dessa “oposição” burguesa: manter o enclave de Benghazi ás custas das vidas do povo líbio e tentar salvaguardar o resgate da burguesia líbia em choque, abrindo com seu despreparo a via para os duros castigos do tenor desse massacre, Kadafi.

O ferro do processo de guerra civil na Líbia está incandescente e afeta com contundência a débil nível de recuperação econômica das potências imperialistas européias afetadas pela crise econômica mundial em curso – com peso na Espanha – o que, através do aumento dos preços do petróleo no mercado internacional, regenera as tendências de desequilíbrios externos entre as potências.

Acerca deste processo vivo, com profundos elementos de decomposição do Estado, em que não está claro que setores da burguesia tomaram armas contra outros, como se dá a formação dos regimentos irregulares por fora das mãos do Conselho Nacional, há muitas hipóteses a serem levantadas pelos revolucionários. Sendo o processo mais agudo da primavera árabe, temos de nos debruçar sobre suas incógnitas assim como os “think tanks” imperialistas fazem diariamente. Queremos apontar algumas nuances deste importante processo partindo de uma polêmica com a visão da LIT, que em seu último artigo sobre o desenvolvimento do processo revolucionário aberto na Líbia, pela mão de Gabriel Massa, monta sua apreciação dos acontecimentos com graves inconsistências e desvios teórico-programáticos para fora da história dos debates do marxismo, um abandono da necessidade de uma política independente dos trabalhadores que faz com a LIT defenda num primeiro momento a capitulação aos setores burgueses “de oposição”, e “depois” da queda de Kadafi, sua diferenciação com eles.

“Duplo poder” ou diluição indiferenciada da classe operária na guerra civil?

Para responder corretamente aos acontecimentos com uma tática definida, é preciso compreendê-los corretamente. Tanto maior a responsabilidade dos revolucionários em refletir as ligações históricas desses acontecimentos nos marcos de sua significação política, isto é, de classe e sua relação com o imperialismo. O grau de radicalidade espontânea e desordenada tem sua contra-cara na grande debilidade de não se guiar como um levante autenticamente anti-imperialista – a batalha pela emancipação nacional e pela revolução agrária passa pela eliminação da ingerência estrangeira no país – o que deriva da ausência de protagonismo da classe operária como direção do processo revolucionário.

É certo que, diferentemente da Tunísia e do Egito, onde o exército se manteve enquanto garantidor da estabilidade, preservando sua boa localização entre as massas para desempenhar um papel na transição ordenada burguesa (processos ainda em aberto), na Líbia as forças armadas já aparecem divididas, posto que setores inteiros desertaram para unir-se ã rebelião. Esse processo de guerra civil, insurreição como negação de um poder, não leva por si a uma situação de duplo poder. Quanto mais a uma “insurreição popular com elementos avançados de duplo poder com zonas libertadas”, como diz a LIT.

Lênin, explicando a dualidade de poderes criada pela derrubada revolucionária do czarismo na Rússia em fevereiro de 1917, explica: “Em que consiste a dualidade de poderes? Em que ao lado do Governo Provisório, o governo da burguesia, se formou outro governo, ainda fraco, embrionário, mas indubitavelmente existente de fato e em desenvolvimento: os soviets de deputados operários e soldados. Qual é a composição de classe deste outro governo? O proletariado e os camponeses (vestidos com a farda de soldados). Qual o caráter político deste governo? É uma ditadura revolucionária, isto é, um poder que se apóia diretamente na conquista revolucionária, na iniciativa imediata das massas populares vinda de baixo, e não na lei promulgada por um poder de Estado centralizado”.

Que há de conquista revolucionária consumada neste processo ainda aberto, que possui importantes limites, já que a ausência de direções operárias revolucionárias abre brecha para que o regime de Kadafi possa ser derrubado pelo imperialismo europeu? Qual a composição de classe que fundamenta o antagonismo destes supostos “dois” poderes? Qual o caráter político deste “governo” de oposição ã Kadafi, sendo que a própria LIT admite que setores burgueses (parte da burguesia nacional que certamente teve e mantém laços profundos com o regime de Kadafi e o imperialismo) participam da liderança “opositora”? Não é possível caracterizar de duplo poder uma luta entre o regime de Kadafi e uma mescla indefinida de setores populares e operários insurretos com a burguesia (com hegemonia desta) pela maior parte da pilhagem dos negócios de Estado. A LIT não se detém sobre estes importantes aspectos.

O poder de Estado, antes dominado pelo antigo regime pró-imperialista, não foi posicionado numa situação de instabilidade por organismos representantes de todas as forças revolucionárias do país, varrido da ingerência de elementos reacionários do regime, encabeçada pelo proletariado independente. A ausência das massas armadas auto-organizadas e a existência de coação exterior sobre o povo – as milícias contra-revolucionárias kadafistas armadas – eis em que consiste um dos pilares da questão.

A negação da LIT da política de independência de classe sob a aparência de defesa dos interesses da classe trabalhadora

Este déficit não resolvido na caracterização do suposto “duplo poder” na Líbia tem ressonâncias na forma como a LIT defende que a ditadura de Kadafi deva ser derrubada. Gabriel Massa escreve: “Neste processo, acontece uma unidade de ação muito ampla (?) contra a ditadura, da qual participam trabalhadores, setores populares e, inclusive, com a adesão de setores burgueses, mais oficiais e tropas desertoras das forças armadas, e agora se agregam, também, altos funcionários do regime. Está claro (!) que é necessária a mais ampla unidade de ação com todos os setores, inclusive os burgueses descolados do regime, para acabar com esta ditadura genocida entrincheirada.” [grifo nosso] [1].

Aqui os princípios irredutíveis do marxismo revolucionário simplesmente se dissolvem em uma hipótese estratégica bem clara, oriunda da tradição dos companheiros morenistas da LIT/PSTU. A mais completa independência de classe do proletariado em relação a seus irreconciliáveis inimigos de classe é rifada num argumento que nivela a participação de trabalhadores, setores populares (quais setores?) e dos próprios burgueses numa grande massa de atuação abstrata. Não há sequer uma ponderação sobre qual o grau de intervenção independente da classe operária e do povo pobre auto-organizados na direção do processo político, antes de se entregar aos caprichos da burguesia o destino da batalha contra a ditadura de seu representante.

Nessa discussão, que vai desnaturando a revolução sem qualquer paralelo com a tradição marxista, a LIT chega ã fórmula: “Isto não significa, no entanto, que todos os que participam da luta tenham os mesmos interesses ou pensem nas mesmas medidas para quando, depois da queda de Kadafi, se tenha que construir o novo poder para a nova Líbia. Para defender seus interesses, os trabalhadores necessitam de uma organização independente dos burgueses de sua própria direção.”

Sem hegemonia operária desde já, não são possíveis as tarefas democráticas nem revolucionárias

Para além dos distintos níveis de desacordo político e diplomático das alas burguesas com o imperialismo, sobre com que meio se implementarão as mudanças e sobre quem as fará, não deixam de estar por dentro de seus interesses comuns de classe capitalista: estão de acordo em prevenir a classe trabalhadora de intervir no processo revolucionário aberto de maneira independente, prontos para aceitar qualquer tipo de brutalidade para fazê-lo.

Segundo o El Pais (2/3), não há dúvida sobre a qual dos bandos os gerentes da Agoco – filial da petroleira estatal líbia, National Oil Company – aderiram. “Os sorrisos nos rostos dos gestores são expressivos. Anseiam que a revolta triunfe e que se constitua o quanto antes uma nova autoridade [...] porque o levante de 17 de fevereiro contra o ditador provocou uma redução drástica da produção de petróleo, as exportações estão quase paralisadas e não entra um euro no país.” Os temores do imperialismo e da submissa burguesia magrebina passam pela possibilidade de desestabilização do mapa regional, a partir dos levantes que tombaram ou golpearam governos comprometidos com interesses imperialistas, e de maneira alguma com a melhoria das condições de vida das massas líbias. Como fazer a “mais ampla unidade de ação” com uma classe de interesses irreconciliavelmente antagônicos e que, se triunfa esta “aliança mais ampla”, não se resolverão as necessidades mais sentidas do povo líbio, já que a ditadura de Kadafi é a expressão política de sua submissão ao imperialismo?

Desde os primórdios da construção da concepção materialista da história, com ênfase no papel criador da violência revolucionária do proletariado como setor independente que deve conduzir de maneira consciente e preparada a luta pelo advento de uma nova ordem social, desde Marx e Engels – fundadores do socialismo científico – a orientação geral da mais completa independência da classe trabalhadora em relação a seus inimigos de classe era a premissa fundante para a luta revolucionária. Trotsky, seguindo a concepção do marxismo revolucionário, desenvolveu este ponto na teoria da revolução permanente colocando que sem hegemonia da classe trabalhadora, a realização das tarefas democráticas não chegam nem a projetar-se de forma superadora. A revolução não resolverá os problemas “burgueses” que se apresentam ante ela senão levando o proletariado ao poder – desenvolvimento inseparável da independência de classe.

Enquanto isso, os EUA tentam se reacomodar após 30 anos de bons negócios com Kadafi, assegurando que prestarão qualquer tipo de assistência requerida pela oposição ã Kadafi, cravejada de setores da burguesia nativa e estrangeira, principalmente do setor petrolífero (várias multinacionais do petróleo, como a Repsol, interromperam as atividades de extração na Líbia), o que revela grandes contradições, tanto na inadequação de uma intervenção, quanto na incapacidade de um imperialismo empantanado em várias frentes militares levar a cabo mais uma campanha sem ajuda de países que abriguem bases aéreas norte-americanas e levem isso com mais seriedade ã frente. No momento em que o Exército americano posiciona "forças navais e aéreas" em torno da Líbia, avaliando utilizar o poderio aéreo da OTAN para impor uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia, tentando usar esse chamado ao "requerimento de assistência logística e militar" pela "oposição" para estar mais liberado a pensar formas de garantir o controle dos poços de extração de petróleo.

Isto, com a conivência de uma oposição que declarou querer compor um Conselho Nacional "Revolucionário" com todas as cidades liberadas do controle de Kadafi para "dirigir a transição", declarando ainda que pretende "conseguir reconhecimento pela comunidade internacional" tendo seu Executivo Provisório encabeçado pelo mesmo ex-Ministro da Justiça, Mustafa Abud Ajleil (que teve seu edifício queimado durante os primeiros dias de protesto) e outros caciques da repressão ditatorial fundados nos acordos de Kadafi com o imperialismo norte-americano, políticas "anti-terrorismo" e a implementação de medidas privatizadoras do FMI.

É com essa “ampla unidade de ação com setores burgueses” que a LIT, na prática e de fato, acaba liquidando o aspecto essencial da lógica da revolução permanente de Trotsky, residindo em que as reivindicações democráticas, as reivindicações transicionais e as tarefas da revolução socialista não estão separadas por etapas históricas distintas, mas surgem imediatamente ligadas umas ás outras sob as cadeias gerais da dominação imperialista mundial. E isso desde já, não apenas “depois da queda de Kadafi”. É com esse programa que a LIT abre brechas para converter o proletariado em força auxiliar de um campo burguês contra outro campo burguês, abandonando a política de independência de classe.

Na verdade, de forma alguma a derrubada da ditadura de Kadafi significa se aproximar da burguesia “opositora” – que entrega o anel para manter os dedos – aceitar sua política ou se conciliar com a política de seus aliados. Nesta questão, assim como em todas as outras, os revolucionários permanecemos completamente no terreno da luta de classes internacional e com esse método defendemos a derrubada de Kadafi, em íntima união com a expulsão do imperialismo da região.

A “Primavera Árabe” constitui uma primeira fase de uma nova época histórica que se abre com a degradação dos pilares da podre sociedade burguesa, através do acelerador político que é a entrada em seu terceiro ano da crise econômica mundial em curso. Seus processos têm o grande mérito de encerrar a etapa em que a idéia de uma revolução, (não só as socialistas e operárias, mas quaisquer revoluções), como via de transformação subversiva da sociedade se acabou. A débil recuperação dos países capitalistas centrais está profundamente ameaçada pela crise nas bolsas de valores pelo aumento do preço do petróleo, o que frisa as tendências ã regeneração de velhas contradições, que passam a primeiro plano com o endividamento histórico dos estados nacionais, sua insolvência e as guerras monetárias como a primeira expressão da incapacidade das medidas usadas para conter a crise absorver todos os excessos que a desencadearam. Nesse contexto, os marxistas revolucionários devemos batalhar para acabar com todas as ilusões dos trabalhadores e do povo pobre numa classe dominante em decadência, a partir de agora. Só assim se estabelecerão as bases para que a classe operária e o povo pobre da cidade e do campo voltem a confiar em suas próprias forças para a construção de um partido revolucionário que acabe com o sistema de miséria e opressão do capital.

Nenhuma aliança com setores da burguesia “opositora”! A classe trabalhadora precisa já se impor uma saída independente de seus carrascos!

Não ã intervenção norte-americana e da OTAN!

Imediata convocatória da Assembléia Constituinte Revolucionária para que os trabalhadores e povo pobre da cidade e do campo decidam sobre as grandes questões nacionais e sobre as novas bases do país!

Greve geral insurrecional! Para que toda a produção petroleira seja posta a serviço dos interesses da luta do povo da Libia.

Por comitês dos trabalhadores e do povo independentes do imperialismo e qualquer fração burguesa!

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