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Interna do PJ e luta de classes: O velho e o novo na Argentina

21/09/2005

Dois registros diferenciados da realidade argentina concentram hoje a atenção pública: a crise do peronismo; e a conflitividade laboral e social na qual se destaca a recomposição do movimento operário. Ambos sucessos expressam a continuidade da crise orgânica. São a manifestação da crise de representação que atravessa a política burguesa e da mudança na correlação de forças na luta de classes e entre as frações políticas que disputam as frações do poder.

Luta de frações

A luta interna entre o presidente Néstor Kirchner e Eduardo Duhalde (ex-presidente e chefe territorial do peronismo bonaerense) dividiu o Partido Justicialista na província mais povoada e de maior concentração operária e de pobres urbanos da Argentina. Ali o embate é entre as esposas pelo cargo de senadora na eleições de outubro: Cristina Kirchner, nas listas da “Frente para la Victoria”, e de Hilda Chiche Duhalde pelo PJ. Este enfrentamento foi batizado pelos assessores do presidente como a mãe de todas as batalhas, e concentra a atenção eleitoral. Tendo em conta que o PJ - ainda que altamente fracionado - foi o único partido burguês que sobreviveu ao levantamento popular de 2001 como um partido da contenção social, a resolução de sua crise interna é o principal tema da política nacional. De seu resultado dependerá o futuro equilíbrio das forças políticas e vai colocar as contradições que ditam a relação entre classe operária e peronismo.

A crise de representação

Néstor Kirchner representa uma fração pequeno-burguesa que chegou ã frente do estado capitalista em aliança com o duhaldismo (uma das expressões mais rasteiras das chamadas máfias políticas e do velho regime). A política burguesa está polarizada ao redor dos interesses particulares das frações em pugna. O presidente, baseado em uma grande aprovação popular que espera traduzir em vitória eleitoral, intenta derrotar ao velho aliado para construir poder próprio. Sobre esta prioridade política se guiam os atos de governo e se define a agenda e o discurso de um tom centro-esquerdista polarizando contra um Duhalde que agrupa a direita do peronismo para defender suas posições ameaçadas. A débil e dispersa oposição burguesa contempla suas posições ameaçadas. A débil e dispersa oposição burguesa contempla a situação sem grandes possibilidades de decolar e pensando essencialmente em posicionar-se para as presidenciais em 2007.

O velho e o novo

O kirchnerismo é a facção do peronismo que melhor tem compreendido a crise dos partidos do velho regime. Tenta uma “renovação” que recicle desde dentro a velha casta política, seja mediante uma liderança “progressista” dentro do PJ ou a formação - sobre a base de uma ala do peronismo - de um novo partido de centro-esquerda. Um representante transversal - as dispersas forças e figuras centro-esquerdistas e nacionalistas não peronistas do kirchnerismo - como José Nun - Secretario de Cultura - assim o explica “Não há mais remédio a não ser construir o novo com o velho, e a partir deste ponto de vista não deu resultado suficiente uma transversalidade concebida como aliança com setores não peronistas que garantam o êxito eleitoral. (...) Frente a isto ficava, em meu juízo, apenas uma opção válida: dar uma luta frontal como a que está dando o kirchnerismo para constituir-se em maioria indiscutida no movimento peronista (...) confio fortemente, que após outubro, com um kirchnerismo firmemente estabelecido, haja uma redefinição tática e sobretudo estratégica que nos permita dois anos de governo de Kirchner que sejam francamente progressistas”. (Pagina 12 08/08/05)

Isto se traduz no fato de que o kirchnerismo é hoje um conglomerado de ex menemistas e ex duhaldistas unidos ao presidente pela corrupção clientelar e a compra de seus aliados através de fundos públicos. A transversalidade que se coloca a idéia de um Kirchner “chavista” ou progressista é hoje um completo fracasso que mostra a impotência da pequena-burguesia centro-esquerdista. Novamente foi funcional ao resgate dos partidos patronais em crise como fizeram com a UCR formando a Alianza em 1997.

O ditado crioulo de que se estão tragando alguns sapos palavras do piqueteiro transversal Luis D’Elia - é uma confissão que qualifica melhor a atitude do kirchnerismo que a máxima gramsciana com que enaltecem a opção do governo.

O “reformismo” do neoliberalismo de 3 $ a 1US$

O capital político do governo se deve essencialmente a seu discurso renovador e populista que alenta um tênue reformismo. Mas até agora tem sido o governo da grande burguesia que está tendo lucros extraordinários. Esta realidade é o que batizamos como neoliberalismo de 3 $ a 1 US$, uma combinação de benefícios extraordinários para as grandes patronais internamente, de disciplinamento externo com os EUA recordemos que junto a Lula, Kirchner sustenta militarmente a ocupação imperialista de Haiti ou fora,k garantidores da estabilidade boliviana nos últimos levantamento - e um reformismo apoiado em certas obras públicas e miseráveis aumentos salariais. O governo fixou como prioridade da política econômica o cumprimento dos pagamentos ao FMI e aos credores externos em um momento em que o superávit fiscal é de $13,1 bilhões neste ano até o presente momento (Clarín 17/08/05). Os ingressos extras do estado têm sido utilizados para o pagamento da dívida externa, a qual também cresceu em US$ 4,5 bilhões (LVO 169 11/08/05) fruto da especulação financeira. Enquanto a relação de ingressos entre os 10% mais ricos da população em relação aos 10% mais pobres é de 33 vezes (Nueva Mayoría www.nuevamayoria.com/es/).

Por último, há que ressaltar a existência sob este governo do maior número de presos políticos desde a restauração democrática de 1983, o que desmente o verniz democrático de um presidente que se jacta de sua política de direitos humanos.

O verdadeiramente novo na situação argentina deve ser buscado na luta de classes, na qual se está produzindo mudanças profundas de consciência e organização. A crise de representação atua sobre este registro da realidade debilitando a capacidade das instituições do regime e das direções sindicais tradicionais para conter um processo social que destaca a recomposição da classe operária. Um importante analista do mundo sindical, Julio Godio, assinala a projeção política dos atuais conflitos “Os conflitos políticos sindicais caminham em paralelo à luta interna com o peronismo, o que denota uma inédita separação entre sindicatos peronistas e governo peronista. Em um país como a Argentina era inevitável que a situação gerasse muita inquietude e mal-estar, que poderia ter diversas manifestações políticas” (Pagina 12 08/08/05).
A greve de funcionários do Hospital Garrahan, na cidade de Buenos Aires, concentra a atenção pública e é a primeira grande luta de importância contra o governo. Um jornalista amigo do kirchnerismo explica a posição oficial assinalando que “o Governo é arisco para negociar. Interpreta que está frente a um ‘caso exemplar’ que um acordo triunfal para a comissão interna teria um fenomenal efeito cascata”. (Pagina 12 14/08/05). O fundo desta preocupação oficial é uma recomposição das lutas operárias por salários e reivindicações postergadas de diversas camadas dos trabalhadores. No primeiro semestre de 2005 - tomado até o mês de julho - sucederam-se 437 conflitos laborais e 119 cortes de ruas mensais. Muito mais que em 2004, que em todo este período presenciou 249 enfrentamentos sindicais e 98 cortes de rua (Nueva Mayoría www.nuevamayoria.com/es/). Recentemente se somaram à luta dos docentes e estudantes universitários contra a Lei de Educação superior vigente e pela exigência de melhores salários. Também os movimentos de desempregados têm voltado a se mobilizar chamando a atenção midiática. A resposta oficial tem sido uma brutal campanha contra a “ultra-esquerda e o trotskismo” .

Pressão da base e democracia assembleísta

Neste fenômeno se combinam distintos tipos de lutas: além daquelas dirigidas pelos sindicatos - com grande pressão das bases - as mais dinâmicas e combativas surgem por baixo e contra a vontade dos dirigentes sindicais, na maioria dos casos destacando novos ativistas e dirigentes combativos e a soberania da assembléia de base na tomada de decisões. Ali onde se impõe esta dinâmica se começa uma pugna pelo controle dos lugares de trabalho. Os setores mais avançados do processo de novas direções e ativistas foram os que no mês de abril convocaram o primeiro Encontro das organizações operárias e ativistas combativos entre os quais figuravam os ceramistas neuquinos de Zanon, do metrô, Hospital Garrahan, aeronáuticos, etc.

O surgimento de uma direção sindical combativa e da democracia de base, preocupa o governo, as patronais e a burocracia sindical. Temem que a crise de representação que também afeta os sindicatos dê lugar ao surgimento de setores combativos e independentes do peronismo. Por isto é que o claro objetivo de “evitar desgarramentos” da base que se impôs como novo secretário geral da CGT o caminhoneiro Hugo Moyano.

O novo e o velho. Luta de classes e luta política

O registro diferenciado entre luta de classes e lutas políticas, a separação que assinala Godio, pode ser interpretada de maneira mais mediada mas sua realidade é uma das características novas do processo político. A burocracia sindical está dividida por discussões particulares e muito pouco pela interna do PJ. Enquanto, em paralelo, um processo de politização e reflexão acompanha a experiência do movimento operário. A subjetividade mais geral dos trabalhadores pode qualificar-se de reformista, já que prima o caráter reivindicativo e até corporativo de suas demandas e as ilusões nas mudanças desde cima.

Apesar de no imediato os trabalhadores provavelmente votarem nas listas do kirchnerismo ou do PJ duhaldista, as lealdades da classe operária com o peronismo é cada vez menor e sua crise atual - junto ã persistência da atividade operária - ameaçam relaxar os mecanismos clássicos de contenção e projetam um cenário no qual o surgimento de novas forças políticas ou correlações partidárias, podem abrir brechas para lutar pela independência política dos trabalhadores.

O chamado do PTS nesta situação é para impulsionar o combate por um Partido dos Trabalhadores baseado nos sindicatos recuperados da burocracia e nas organizações operárias combativas, dotado de um programa revolucionário e socialista. É uma política que na presente etapa ergue uma ponte entre os marxistas e as grandes massas da classe operária que se colocou em movimento, mas que ainda se mantém cativos da política burguesa. Aposta a resolver a questão estratégica da independência política de classe e da recuperação dos sindicatos para preparar politicamente os trabalhadores frente a futuras crises que estão por vir

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