Lições do levante popular no Equador
21/09/2005
A queda de Lucio Gutiérrez no Equador, posto em xeque por um levante popular em abril passado, deixa importantes lições para os trabalhadores e o povo do Equador e de toda a região. Não somente porque demonstra que as tendências ã ação direta das massas no subcontinente continuam abertas (e isso se reafirmou com as jornadas revolucionárias na Bolívia um mês depois), mas também porque estabelece claramente os limites que encontram os governos que assumem com um discurso “reformista” e acabam aplicando os mesmos planos neoliberais que seus antecessores.
O fracasso de uma experiência frentepopulista
A história recente do Equador contabiliza um total de 3 presidentes derrubados nos últimos 8 anos. No entanto a queda de Gutiérrez guarda uma diferença com relação ás de Abdalá Bucaram em1997 e de Jamil Mahuad em 2000[1]. No caso de Gutiérrez, trata-se da queda de um dos primeiros governos que, frente ao desgaste e ã erosão da democracia burguesa e de seus regimes, assumem um caráter “reformista” e “frentepopulista”, para terminar aplicando uma política abertamente neoliberal.
O papel cumprido por Lucio Gutiérrez durante a queda de Mahuad em 2000, como cabeça visível de um setor das FFAA que empalmou com o levante indígena, camponês e popular, lhe deu um grande prestígio entre as massas equatorianas[2]. Se postulando como o “salvador da pátria”, Gutiérrez adquiriu um discurso populista e colocou de pé uma coalizão de caráter frentepopulista, junto com a CONATE, seu braço político Pachakutik e o MPD (Movimento Popular Democrático, de tendência maoísta), com a qual chegou ao poder no começo de 2003.
A ascensão de Gutiérrez, apoiado nesta coalizão, juntamente com seu discurso reformista, foi em seu momento uma novidade para a América Latina, o que suscitou o entusiasmo de setores importantes do movimento de massas e o apoio de vários intelectuais “progressistas” da região.
No entanto, seu rápido giro ã direita e a aplicação a todo custo dos planos neoliberais terminaram desgastando sua popularidade e provocando sua queda, o que demonstra e dá sinais da debilidade deste tipo de governos, que assumem sob o rótulo de “reformistas” para tentar dar uma saída de contenção e desvio frente ás recorrentes crises nos regimes do subcontinente.
Com diferenças e matizes, um processo similar é o que expressam o governo de Lula no Brasil e a Frente Ampla no Uruguai ou o discurso que ensaiam Evo Morales na Bolívia ou o FSLN na Nicarágua.
O mito do “militar patriota”
Com a queda de Lucio, cai também um mito bastante estendido na região e que se pôde ver recentemente no desesperado chamado que Jaime Solares, o líder da COB na Bolívia, fez há umas semanas, quando em meio ã crise nesse país, defendeu a necessidade de um “Governo Cívico-Militar” encabeçado por um “militar patriota.
O coronel Lucio Gutiérrez, que assentou grande parte do poder governamental nas Forças Armadas equatorianas, não só não foi nenhum “patriota”, como alegavam os populistas da região, como seu governo foi um dos mais abertamente pró- imperialistas de toda a América Latina nos últimos anos.
Desde que chegou ao poder, em janeiro de 2003, garantiu como nenhum antes o pagamento da dívida externa, destinando cerca de 70% da renda petroleira para este fim e cortando, por intermédio de altos chefes militares que colocou em postos chave do governo, as cotas orçamentárias de todas as áreas sociais.
Tentando manter em perfil bonapartista, o que foi enfraquecendo sua própria legitimidade, Gutiérrez se apoiou por um lado nas Forças Armadas e por outro em um complexo sistema de alianças que lhe permitiu manter sua política neoliberal. Sem a maioria própria no congresso, renunciou a seu acordo original com Pachakutik, apenas 7 meses depois de ter assumido, expulsando seus ministros do governo [3] e fechou um acordo com o centro-direitista Partido Social Cristão (PSC) para votar os planos do FMI no parlamento, permitir o estabelecimento de tropas norte-americanas na base de Manta e manter a dolarização da economia impondo um ataque monumental ao salário dos trabalhadores, institucionalizando a perda sofrida pela inflação do período anterior [4]
Sua imagem abatida , que começou a se desprestigiar frente ao movimento de massas, se somou ã multiplicação de fortes tensões entre os distintos setores da burguesia, como produto dos efeitos causados pela dolarização, da repartição da renda petroleira e da assinatura do Tratado de Livre Comércio que Gutiérrez estava negociando com os EUA. Estas rusgas entre os distintos setores da burguesia se converteram em um importante elemento de instabilidade para seu governo.
Frente a essa situação, Gutiérrez girou ainda mais ã direita, terminando por fechar um acordo com o PRE do ex-presidente Abdalá Bucaram permitindo o regresso ao país [5] deste personagem odiado pelo povo equatoriano, o que não fez mais que acelerar seu desgaste e propiciar sua queda. Como vemos, o Coronel Lucio Gutiérrez não foi nenhum “militar patriota” nem “nacionalista”, muito pelo contrário. Os chamados e apelos aos trabalhadores frente ã eventual repressão do exército, em última instância, preparam o caminho para o estabelecimento de saídas como as desta “frente-popular a la equatoriana” cujas conseqüências como acabamos de ver tem um efeito nefasto para os trabalhadores e as massas da região.
O levante popular e as direções
Diferentemente dos levantes anteriores contra Bucaram e Mahuad, que tiveram um forte conteúdo indígena e camponês concentrados, seguindo as direções desse setor como a CANAIE e a FENOCIN; a “revolta dos foragidos”, como se chamou o levante popular que tirou Gutiérrez, concentrado essencialmente em Quito, teve uma importante composição da classe média, junto a setores pobres urbanos.
Estas mobilizações não coincidiram com um novo levante indígena nem tampouco com uma greve geral por responsabilidade das direções destes setores que, uma semana antes da queda de Gutiérrez, tendo chamado distintas ações como as greves e a tomada de edifícios públicos, as terminaram levantando frente ã possibilidade de um transbordamento das ações dos trabalhadores e camponeses. À traição aberta destas direções soma-se o descrédito da principal central indígena que é a CONAIE, que logo depois de participar, por meio do Pachakutik, do governo de Lucio Gutiérrez, ficou deslegitimada frente a sua base que praticamente não responde aos chamados que faz a Confederação.
Isto impediu a coordenação dos distintos atores sociais e deu ao movimento um caráter muito mais espontâneo do que os levantes anteriores.
Esta espontaneidade e a falta de direção permitiu ao movimento avançar no questionamento dos distintos partidos do regime, incluindo a Esquerda Democrática (ID), cujo dirigente Paco Moncayo [6] governa a capital do país e que se projetava como uma nova mediação frente ao desgaste dos partidos tradicionais e de Gutiérrez. A demanda de “que se vayan todos” começou a questionar o conjunto das instituições do regime e tornou insustentável a permanência de Gutiérrez no poder, abrindo o caminho para sua queda.
No entanto, esta mesma espontaneidade e a falta da entrada em cena dos trabalhadores com seus métodos como a greve geral, o que teria permitido realmente colocar em xeque as classes dominantes e seus partidos políticos, assim como a falta de coordenação e de formas democráticas de auto-organização durante o momento mais agudo da crise, impediu que fossem varridas todas as velhas e deslegitimadas instituições.
Isto permitiu ã burguesia tentar uma saída com a subida do vice-presidente Alfredo Palacio que tem bases precárias e que, mesmo conseguindo descomprimir momentaneamente a situação, deve lidar com um sistema de partidos e um regime completamente degradados e seu governo é extremamente frágil.
O governo de Palacio entre as aspirações populares e a pressão imperialista
Apesar do discurso de “mudança” que Palacio manteve durante as primeiras semanas depois da queda de Gutiérrez, seu governo não parece ter muita margem de manobra, aprisionando entre as aspirações populares e a pressão dos EUA que não estão dispostos a perder um aliado chave na região como se converteu o Equador sob o governo de Lucio Gutiérrez.
Somente um questionamento tímido aos organismos de crédito internacional e uma morna aproximação do governo de Chávez, que incluía a emissão de uS$ 300 milhões em títulos para serem comprados pela Venezuela, foram suficientes para que os EUA interviessem sobre a política equatoriana, forçando a renúncia do ministro da economia Rafael Correa, acusado de tentar colocar em marcha uma política “antinorte-americana”.
Palacio não questionou as bases da dolarização e parece estar mais inclinado aos ditames norte-americanos do que ás legítimas aspirações populares. Depois de uma reunião com Kristie Kenney, a embaixadora dos EUA, o novo presidente baixou o tom de algumas declarações que fez durante seus primeiros dias de governo e reafirmou seu compromisso com as negociações do TLC e o convênio que mantêm com o Exército norte-americano na Base de Manta. Por sua vez, se negou a fechar uma data para o chamado a uma Assembléia Constituinte e somente afirmou a possibilidade de chamar um plebiscito, mas sem um prazo certo.
Nas últimas semanas uma greve geral encabeçada por trabalhadores petroleiros dos estados Amazônicos de Sucumbíos e de Orellana, foi duramente reprimida e seus dirigentes foram perseguidos e presos pelo governo de Palacio. Os trabalhadores, que mantiveram ocupados os poços de toda a região mais importante do país, pediam a anulação dos contratos com a petroleira norte-americana Occidental (OXY) e a canadense Encana, além de uma melhor divisão da renda petroleira, obras de infra-estrutura e emprego.
A oposição de Palacio ás demandas dos trabalhadores e a dura repressão que desatou sobre estes, mostrou que a política de seu governo é um engano ás aspirações populares, começando a gerar mal estar entre as massas equatorianas.
O governo de Palacio vem demonstrando que não pensa realizar nenhuma mudança séria sobre a política de seu antecessor e que vai frustrar cada uma das reivindicações populares pelas quais caiu Gutiérrez. Para acabar definitivamente com esta política e evitar novos enganos, é necessário que os trabalhadores equatorianos, começando pelos petroleiros que vem levando adiante uma heróica luta, tomem em suas mãos e façam suas as demandas populares para poder hegemonizar uma aliança com a grande massa de camponeses e indígenas explorados (que foram os sujeitos centrais dos levantes anteriores), os estudantes e os pobres da cidade, já que esta é a única via para lutar conseqüentemente contra o imperialismo e pela expropriação radical da grande propriedade agrária, garantir plenos direitos de auto-determinação aos povos indígenas e assegurar a libertação nacional.
É fundamental que sejam os trabalhadores, camponeses pobres e indígenas equatorianos que dêem sua própria saída, colocando de pé formas democráticas de auto-organização, desenvolvendo-as na perspectiva de preparar o surgimento de organismos superiores de frente única das massas para a luta, que sejam a base de um verdadeiro poder operário, camponês e popular.
Se faz mais urgente do que nunca a necessidade de colocar de pé um partido operário revolucionário que lute consequentemente por um governo das organizações dos trabalhadores, indígenas e camponeses pobres que comece a sentar as bases de uma nova sociedade.
[1] Abdalá Bucaram, dirigente do Partido Roldosista Equatoriano (PRE) e ex-presidente do Equador, caiu em fevereiro de 1997 em meio ás multitudinárias mobilizações nas ruas, as greves e a tomada de prédios públicos. Para evitar uma derrubada revolucionária do presidente com as massas nas ruas, o parlamento em uma sessão extraordinária e maratônica declarou vaga a presidência da república, alegando a “incapacidade mental de Bucaram” para exercer este cargo. Jamil Mahuad caiu em janeiro de 2000, depois de anunciar um plano de dolarização da economia em meio a um levante indígena e camponês que confluiu com uma sublevação militar.
[2] Como Coronel das Forças Armadas, Gutiérrez dirigiu o setor sublevado do Exército que, junto com a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) estabeleceu uma “junta de salvação nacional” para governar o país, que terminou depois de algumas poucas horas entregando o poder ao vice-presidente Gustavo Noboa.
[3] Enquanto rompia o acordo com Pachakutik, Gutiérrez manteve uma política de cooptação sobre os dirigentes indígenas e inclusive criou sua própria central camponesa (se apoiando em um setor evangélico) dirigida com métodos claramente clientelistas.
[4] Hoje 60% da população vive com menos de um dólar por dia.
[5] Depois de sua queda em 1997, Bucaram se refugiou no Panamá, onde permaneceu exilado até abril deste ano quando o acordo com Gutiérrez lhe permitiu voltar ao país.
[6] Paco Moncayo, ex-general do Exército, se converteu em uma figura reconhecida por sua participação na guerra entre o Equador e o Peru em meados dos anos 1990. Depois da queda de Mahuad, começou uma carreira política, que ã frente do partido Esquerda Democrática lhe permitiria ganhar as eleições para prefeito de Quito.