O Haiti e a política regional do governo Lula
No jogo entre EUA e Brasil quem paga é o povo haitiano
26/02/2010
Lula entra no último ano de seu mandato fazendo tudo o que está em seu alcance para se firmar como o governo que colocou o Brasil como ator importante na arena internacional, e como potência regional na América Latina em particular. Para responder a este objetivo, Lula se monta em sua alta popularidade no plano interno, nos índices de relativo crescimento econômico motorizados pelo aquecimento da demanda por commodities brasileiras por parte da China, em uma ampla política assistencialista para os setores mais pobres (programa Bolsa Família), aumento do salário mínimo, mantendo uma ampla rede de crédito que facilita o consumo popular e capitalizando a seu favor sua política externa no embate eleitoral aberto. Como parte desta política, Lula acaba de anunciar uma nova rodada de viagens pela região do Caribe, incluindo uma visita ao Haiti prevista para acontecer em 25 de fevereiro. O pretexto é a realização da reunião do Grupo do Rio em Cancun, que acontecerá dias antes e deverá reunir os principais governos latino-americanos, e que passará a presidência rotativa do grupo ao presidente chileno eleito, o direitista e candidato da burguesia chilena, Sebastian Piñera.
A ida de Lula ao Haiti se dá pouco mais de um mês depois do terremoto que deixou centenas de milhares de mortos, um número incontável de feridos e desabrigados, e que escancarou aos olhos do mundo inteiro o resultado de dezenas de anos de saque imperialista promovido sobretudo, pelos Estados Unidos, e mais recentemente, agravados pela assassina ocupação comandada por Lula com as tropas da Minustah, que desde 2004 oprime, estupra e assassina o povo haitiano. Com a ida de Lula ao Haiti, o presidente petista busca firmar sua posição mediante a ocupação do país pelas tropas norte-americanas, que já contam com um efetivo de 16 mil soldados no país, sendo uma demonstração clara de uma política de intervenção mais direta por parte do imperialismo norte-americano chefiado pelo presidente “Nobel da Paz”, Barack Obama. Este é mais um capítulo da farsa “humanitária” de Lula e do imperialismo no Haiti, e das contradições abertas pela maior intervenção do amo imperialista na América Latina para a política lulista de se alçar como mediador regional e garantir um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Presença direta do imperialismo na América Latina condiciona a política lulista regional
O terrível terremoto que devastou o Haiti em janeiro transformou o país em palco das disputas internacionais pelo controle do seu destino. O governo lulista ensaiou declarações de repúdio ã crescente presença norte-americana, e agora que esta já se impôs, segue atuando como braço direito do imperialismo. Mas as rixas abertas no Haiti podem anunciar as disputas e forcejos para negociar em melhores condições que sejam recorrentes em todo o próximo período. Sem exagerar o papel de Lula e o grau a que estaria disposto a se enfrentar com o amo imperialista, é preciso avaliar os efeitos da maior presença imperialista na América Latina.
Após os anos de governo Bush, responsável pelo aumento do sentimento anti norte-americano na América Latina, vemos Obama apoiando-se nas ilusões que desperta, atuando para reconquistar o espaço perdido na região, pela via de uma política de aumento da presença imperialista direta. A primeira ação neste sentido foi a instauração das bases militares da Colômbia. Agora, Barack Obama se aproveita da legitimidade que a tragédia sofrida pelo povo haitiano lhe dá para em nome de uma pretensa ajuda humanitária, comandar uma ocupação imperialista direta no Haiti, reforçando sua presença na região, e utilizando-a como disciplinador a Cuba.
Esta política de Barack Obama tem trazido contradições para as aspirações de Lula, que almejando atuar cumprindo os desígnios do amo imperialista, buscava ao mesmo tempo se firmar como protagonista em todos os temas de importância geopolítica na região, uma espécie de aparente “sócio menor” do imperialismo para os temas latino-americanos. Isso porque Lula e a burguesia brasileira, como subservientes ao imperialismo ao qual são ligados por “mil e um” laços de vassalagem, não buscam obviamente enfrentamentos com os EUA. Entretanto, o fato do imperialismo de Barack Obama ter uma política mais diretamente protagonista na América Latina impõe limites ás pretensões lulistas, de emergir como o grande negociador latino-americano.
Isso se demonstrou anteriormente na crise aberta com o golpe direitista em Honduras que depôs Manuel Zelaya, quando ficou evidenciado que o imperialismo norte-americano sustentou o governo golpista, e as eleições fraudulentas que levaram recentemente ao poder o governo de Porfirio Lobo. Lula buscou aproveitar a brecha aberta pela declaração da maioria dos governos latino-americanos contra o golpe, e asilou Manuel Zelaya até poucos dias atrás na embaixada brasileira no país. Entretanto, demonstrou sua total impotência mediante o imperialismo, que conseguiu impor sua política de apoio ã agenda golpista. Tudo o que restou deste, que foi o ponto máximo de questionamento ã política do imperialismo por parte do governo brasileiro até o momento, é uma negativa em convidar o governo de Honduras para a participação da reunião do Grupo do Rio em Cancun. Isso demonstra os imensos limites da política externa e do “protagonismo” regional de Lula, determinados pelo caráter submisso do seu governo e da burguesia brasileira ao imperialismo.
Quem paga pelas disputas regionais: o povo haitiano que sofre com a ocupação
No que diz respeito ao Haiti, a visita de Lula atende, portanto, a uma tentativa de marcar posição, após a ida à quele país do ex-presidente norte-americano Bill Clinton - que vale mencionar foi recebido por protestos e imenso repúdio por parte do povo haitiano -, e que está chefiando a campanha imperialista ao lado de ninguém menos que George W Bush. Para isso, Lula está elaborando um plano conjunto com o presidente direitista chileno Sebastian Piñera um plano para a “reconstrução” da sede civil de Porto Príncipe, a ser apresentado na visita ao Haiti. O plano de reconstrução da casa do governo, apesar de não ter nenhum papel efetivo, busca ter o efeito simbólico de vender a idéia de que Lula estaria atuando para o restabelecimento do governo local, comandado pelo fantoche René Preval, apresentando-se como uma ação velada contra a política de permanência indefinida dos EUA no país. Isso viria ao encontro das declarações de Celso Amorim, de que após a crise aberta pelo terremoto a MINUSTAH deveria ser a única força ocupante do Haiti. Lula anunciaria ainda uma “Bolsa Haiti”, medidas não especificadas pelo governo brasileiro, mas que envolveria projetos para ampliar a participação na “reconstrução” do Haiti.
Por trás da demagogia, o que se demonstra é que a política concreta de Lula no Haiti é simplesmente o contrário de promover a independência do povo haitiano. Em primeiro lugar, por que a resposta que o governo Lula vem dando ã presença norte-americana no país foi nada menos que incrementar ainda mais a presença do exército brasileiro que ocupa o país com a MINUSTAH, promovendo assassinatos, estupros e abusos diversos, já relatados por diversas organizações. Desde o terremoto, o governo brasileiro anunciou o envio de mais 2600 efetivos militares, que ao invés de atuarem como a “ajuda humanitária” que a mídia quer nos fazer crer, aumentam a miséria e o sofrimento do povo haitiano, produto de sua ação policialesca e opressora em nome de salvaguardar a propriedade privada, enquanto a imensa maioria da população continua passando fome. Assim, a “insatisfação” de Lula com a presença dos EUA no país é resultante não de uma preocupação com o povo haitiano, mas de sua tentativa de demonstrar que no quesito opressão e assassinato as tropas brasileiras não devem nada ás imperialistas, e que seu governo é completamente capaz de levar adiante a ocupação criminosa no Haiti, tal como os EUA fazem no Afeganistão ou no Iraque.
Lula e os comandantes da MINUSTAH lamentaram que os efeitos do terremoto tenham lançado por terra as conquistas “pacificadoras” da ocupação que chefiam desde 2004. O “ótimo trabalho” que o governo brasileiro ã frente da MINUSTAH vinha fazendo no Haiti. Podemos citar como exemplos deste “ótimo trabalho” a ação de 6 de julho de 2005 quando o ataque da MINUSTAH contra a população consumiu 22.000 cartuchos [1] de munição, deixando o saldo de 23 haitianos mortos, ¾ compostos por mulheres e crianças. Ou a de 22 de dezembro de 2005 na qual morrem 30 pessoas – mais uma vez, com maioria de mulheres e crianças. Ou ainda a de 1° de abril de 2007, quando nova incursão em Cité Soleil mata 3 crianças. Ou mesmo os inúmeros relatos de estupro e exploração sexual de mulheres e crianças pelas tropas da MINUSTAH. E a lista poderia seguir indefinidamente.
É uma necessidade urgente e imediata que todos os que querem de fato defender o povo haitiano devem se colocar pela retirada imediata das tropas imperialistas, e das tropas da MINUSTAH, chefiada pelo governo brasileiro. A política de opor a “ocupação ruim do imperialismo” e a “ocupação humanitária” de Lula é uma falácia que deve ser desmascarada com toda força por todos os que queiram de fato impulsionar uma campanha séria em defesa do povo haitiano. A reivindicação de retirada das tropas do governo Lula deve ser levantada tão decididamente quanto a luta para que as tropas norte-americanas saiam imediatamente do Haiti.
Os haitianos que sofrem na pele a cada dia a opressão, os efeitos da política assassina a que estão submetidos, e as humilhações de terem seu país ocupado, sabem que não há ocupação boa. Esperamos que Lula seja recebido com o mesmo repúdio manifestado pelos haitianos ã MINUSTAH e ás tropas brasileiras. Que as cenas dos mais de 10.000 haitianos que marcharam contra a ocupação em 2008, e que quase ninguém conhece [2], voltem a se repetir.
NOTASADICIONALES
[1] Brasil no Haiti: O Desastre da MINUSTAH, de Marcelo Carreiro em www.tempopresente.org
[2] Desde o começo da ocupação em 2004 uma série de massacres ocorreu no bairro pobre de Cité Soleil desferidos pelas tropas brasileiras. Após o que ficou conhecido como o massacre de número 12 Cité Soleil em 2008, ocorrem manifestações de até 10.000 pessoas pedindo a saída das tropas internacionais. A organização de monitoramento de mídia e censura Project Censored elege o massacre a “12° História mais Censurada de 2008”.