Opinião
O que foi feito na África do Sul?
10/12/2013
Leticia Parks é estudante de Letras da USP
Sobre a morte de Mandela e aquelas mortes das quais não ouvimos falar
“O que nós fizemos? Nossa sina é ser negro? Nossa sina é a verdade Eles estão nos matando Os Boer são cachorros Os Boer tem que morrer Deixe a África retornar”
Senzeni Na?, música popular de protesto contra o Apartheid
No último dia 5 foi noticiado em todas as mídias a morte de Nelson Mandela. Diz-se que seu funeral será o maior evento público já realizado em toda a África, comparável apenas com o funeral do papa João Paulo II e de Winston Churchill. Tal referência se deve, certamente, ao papel chave que Mandela assumiu na luta contra o Apartheid na África do Sul. Tal papel, distante de ser decisivo para a vitória da luta contra o Apartheid, foi fundamental para calar as massas negras mais revoltosas e convencê-las de uma transição “pacífica” ã democracia.
O surgimento do Apartheid e as primeiras lutas de resistência No pós segunda guerra mundial, as consequências políticas e econômicas de uma Europa destruída eram profundamente ameaçadoras para o poder da burguesia inglesa presente na África do Sul. Vendo a formação de organizações políticas comunistas e de trabalhadores no país e o aprofundamento do questionamento sobre a segregação racial, os africâner (brancos da África do Sul) se unificam no processo eleitoral ao ultra conservador Partido Reunido Nacional (PRN). Conseguem maioria dos votos em uma eleição da qual foram vetados os votos de nativos africanos, e tinham como carro chefe da campanha o aprofundamento da segregação racial, implementado judicialmente o chamado apartheid.
O apartheid dividiu a população nos grupos raciais com hierarquia de direitos na seguinte ordem: “brancos”, “indianos”, “de cor” e “negros”. Para efetivar a divisão, o governo sul africano do PRN implementou cerca de 300 leis de segregação, tendo como principais a Lei de Registro Populacional, que obrigava cada cidadão maior de 18 anos a portar uma carteira de identidade que o identificasse por raça; a Lei de áreas de Agrupamento, que atribuía áreas específicas do país para cada raça; a Lei de Proibição dos Casamentos Mistos e a Lei de Reserva dos Benefícios Sociais, que discriminava qual localidade da cidade, bem público ou de seguridade social deveria ser dedicado ã cada raça. Tais leis diziam respeito diretamente a proteção da propriedade privada branca, garantindo o direito de repressão a cada negra ou negro que ousasse ultrapassar seus limites de terra ou da cidade, na tentativa de produzir alimento ou de perpetuar moradia. Leis de caráter cultural foram seguidas a essas, como as leis que instituíram escolas próprias para negros e as que impediam a circulação de negros em ruas ou avenidas de determinados locais a partir de algum horário específico.
A luta contra o apartheid data dos primórdios das leis, com protagonismo já naquele momento do Congresso Nacional Africano (CNA), fundado em 1912 e que contou com Mandela em suas fileiras. A tática do CNA sempre esteve ligada ao enfrentamento com as leis de segregação a partir de boicotes organizados, frequentando ou ocupando locais proibidos, forçando a entrada de crianças negras em escolas de brancos, etc. A partir da década de 1960 e especificamente em seu Congresso de 1961 decidem por armar-se e entrar em guerrilha contra o Estado Africâner, estratégia que já vêm associada a relação com os sindicatos de trabalhadores brancos e negros e com setores organizados da esquerda nacional, entretanto, a estratégia da guerrilha, assim como em outros processos políticos espalhados pelo mundo, não conseguia colocar a classe trabalhadora como centro da luta política contra o Estado burguês, colocando-a com um papel acessório à luta armada e não vendo a importância dos conselhos de fábrica, greves e ocupações como parte dos mecanismos de duplo poder que poderiam dar exemplos de um Estado dirigido pelos trabalhadores, onde o racismo e a segregação não encontrariam lugar e que terminaria por colocar a frente a estratégia de tomada do poder pelos trabalhadores, e não de enfraquecimento do Estado pela via de guerras civis internas.
A tática da Guerra Civil, a África em frangalhos e a prisão e soltura de Mandela
A partir da carta com o chamado à luta armada, publicada pelo CNA em 1961, uma série de enfrentamentos armados passaram a ocorrer por todo o país. Em um deles, em 1963, Nelson Mandela e outros militantes do CNA foram levados a prisão, todos que levaram a cabo “A Lança da Nação”, o braço armado do CNA durante os quase 30 anos que se seguiram ã carta de 1961.
Esses enfrentamentos foram levando o país ã proximidade do fracasso político e econômico visto por países africanos que passaram por processos semelhantes de enfrentamentos armados, como Moçambique e Somália. Se haviam começado com um cenário nacional e internacional de uma classe operária forte e organizada durante as décadas de 60 e 70, em 80 viram essa mesma classe definhar-se, enfraquecer-se e ser, rapidamente, jogada ã miséria social de um país destruído. Em fins de 80, com a histórica derrota dos trabalhadores da União Soviética, o peso do stalinismo passa a pesar sobre os ombros de todos os trabalhadores, pela burocratização do único Estado Operário de todo o mundo.
Nem a possibilidade de um desfecho operário e popular na África do Sul ou o cenário de catástrofe social interessavam ao imperialismo europeu, que sempre viu no país uma importante fonte de recursos naturais fundamentais a indústria internacional. Em 1990, em meio ao avanço neoliberal após a queda do muro de Berlim, Nelson Mandela é misteriosamente solto e tem como primeira Mandela, logo após sua soltura, de mãos dadas com o presidente da época, da ultra direita, defensor do apartheid atitude de liberdade “apertar a mão de Frederik Willem de Klerk, então presidente do regime de apartheid, que segregava os negros de uma maneira tão brutal que, quando começou a acabar, em 1994, havia no país 750 mil piscinas, uma para cada duas famílias brancas, ao passo que, na outra ponta, 10 milhões de famílias negras não dispunham de água potável em suas habitações” [1].
Sua postura conciliadora com o regime serviu para, rapidamente, coloca-lo como porta voz da passividade, agregando em torno de si a ala mais conservadora do CNA, que se fortaleceu com as mortes e prisões dos membros radicais do partido, como Steve Biko. Mandela serviu, naquele momento, como um silenciador das massas ainda revoltadas, que depois de décadas de luta armada, se viam cada vez mais enfraquecidas. Ao aparecer Mandela, que pegou em armas junto com eles em décadas passadas, como figura de conciliação de classe, a derrota política da classe operária e dos oprimidos sul africanos foi selada.
Qual o balanço da África do Sul pós apartheid?
O processo que deu fim ao apartheid, com a eleição de Mandela em 1994, longe de poder ser considerada uma Revolução Democrática, como setores da esquerda e do próprio movimento trotskista a nomeiam, na verdade se deu como uma contrarrevolução democrática, ou seja, a única via pela qual o Imperialismo via a possibilidade de manter sua dominação sobre o país.Em lugar de uma vitória popular contra a burguesia africâner racista e assassina, os trabalhadores sul africanos viram seu país ser redominado pela mesma burguesia, através do fantoche de Mandela que por anos os iludiu de que haviam, finalmente, conquistado o poder.
Certamente houveram concessões democráticas no sentido da luta contra o racismo e a segregação, mas para qualquer morador do país uma série de leis segregacionistas, apesar de não em papel, continuam vigentes nas escolas, ruas, avenidas e, principalmente, no sistema produtivo. Com o fim do apartheid, selou-se a ditadura sobre as terras, e as famílias bôer que ocupavam a grande maioria do território do país aprofundaram em suas terras a superexploração do trabalho, a vinda massiva de capital estrangeiro e a implementação, como nunca, dos moldes neoliberais dos anos 90. Sendo assim, no cenário internacional (que é desde onde encaramos o avanço ou retrocesso político dos países), o CNA no poder abriu o mercado sul africano ã mais dura exploração do trabalho, no marco da ofensiva contrarrevolucionária neoliberal advinda do fim da União Soviética.
Polícia sul africana assassina 36 mineiros da empresa Lonmin em repressão a dura greve de Marikana
Os grandes capitalistas do mundo seguem explorando a terra e o sangue desse povo brutalmente oprimido sob a proteção de Mandela e de todos os membros do Congresso Nacional Africano, mantendo os alicerces do apartheid, traçando de Mandela até hoje o rumo para que o CNA tivesse suas mãos sujas pelo sangue dos 36 mineiros de Marikana, assassinados em 16 de agosto de 2012 por fazerem greve contra a mineradora Lonmin.
Em meio a celebração que a burguesia e seus meios de comunicação fazem de Mandela, nós elogiamos aqueles que jamais desistiram ou entregaram sua liberdade ao capitalismo, e saudamos efusivamente a reorganização da classe operária sul africana, que depois de décadas de ilusão no CNA, passa a se reorganizar, fundar seus novos sindicatos e demonstrar que tal figuração heróica de Mandela não mais a representa.
Viva a classe operária sul africana e sua reorganização política e sindical!
Presentes os grevistas mortos pela polícia do CNA!
NOTASADICIONALES
[1] Extraído da reportagem de 06/12/2013 de Clóvis Rossi, da Folha de São Paulo, caderno “Mundo”.