Venezuela: Lei de terras
O que são as "expropriações" de terras de Chávez?
03/04/2007
Esta semana teve eco mais uma vez o anúncio do presidente Hugo Chávez sobre a intervenção simultânea a 16 grandes propriedades (grandes fazendas) na Venezuela, que abarcam 300.796 hectares aptos para a produção agropecuária, e se espera a intervenção a mais 10 propriedades nos próximos meses. Mas há muito de show midiático nessa medida, que usou do Exército Nacional frente a suposição de que poderia existir alguma resistência ã ocupação. Na verdade, o conjunto de propriedades rurais sob intervenção não são terras de propriedade privada, mas que na prática pertencem ao Estado, mantidas por setores privados sem poder mostrar a titularidade das mesmas. E, de acordo com a Lei de Terras e Desenvolvimento Agrário, as mesmas podem ser "resgatadas", já que contempla a lei "da não propriedade e que sejam terrenos baldios da Nação e que estejam totalmente não cultivadas e improdutivas". É importante destacar que a intervenção nestas terras se realiza logo ao final de um processo de negociação, que implica as respectivas notificações e as alegações por parte dos supostos proprietários. Como afirmou Chávez e o próprio ministro de Agricultura e Terras, Elías Jaua, não se trata de expropriações, mas sim de terras que ainda eram propriedades do Estado e que até agora vinham sendo exploradas por supostos donos privados (Agência Bolivariana de Notícias, 27/03). Por isso o mesmo Chávez esclareceu que "quem tiver terras (fazendas) produtivas não deve ter nenhum temor" (Alô Presidente, 25/03). Da mesma maneira, o presidente da Comissão de Desenvolvimento Econômico da Assembléia Nacional, afirmou que "aqueles que alegam propriedade de determinadas extensões de terra na Venezuela devem comprovar juridicamente”, ao mesmo tempo que esclareceu que “o Estado não afetará sítios que estejam produtivos, mas sim aqueles onde existem extensões ociosas" (ABN 27/03). Não é coincidência que a Confederação Nacional de Agricultores e Pecuaristas (Confagan) e a Federação Bolivariana de Pecuaristas e Produtores (Fegaven), apoiaram as medidas do governo nacional.
A golpista Fedecâmaras rechaçou as intervenções ás terras, os representantes de altos setores de latifundiários como os agrupados na Federação Nacional de Pecuaristas (Fedenaga), e a Federação de Produtores Agropecuários (Fedeagro), que se limitaram a apenas rechaçar a utilização do Exército na execução das medidas. É que na verdade não foram tornadas públicas as negociações prévias realizadas nem pelo governo nem pelos supostos proprietários das terras, sobre os quais ronda um certo hermetismo; o próprio Chávez deixava entrever o dia anterior ã execução da intervenção: se trataria do famoso método CHAZ já aplicado na famosa fazenda La Marqueseña [[A proposta que faz o Presidente se embasa no acordo realizado na Marqueseña, do latifundiário Azpúrua, popularizado pelo mesmo Chávez como o "método Chaz" pelas letras iniciais da palavra Chávez e Azpúrua. Neste caso, como o proprietário não está em condições de apresentar a titularidade da terra, "cede" em torno de 7.000 hectares deixando ao governo 1.500 de sua propriedade, podendo ser indenizado pelas restantes, além de obter créditos para pôr as mesmas a produzir. ] ].
Neste sentido é que as críticas se limitam somente ao show midiático do governo com o uso da Força Armada (FAN), já que como ambos representantes das câmaras agropecuárias afirmam "não se justifica a utilização da FAN para chegar ás fazendas, porque todos os trâmites foram feitos diante do INTI e a maioria dessas propriedades já haviam sido negociadas com o governo" (O Nacional, 27/03). Até mesmo os diários da direita venezuelana estão de acordo com esta suposta "guerra contra o latifúndio", em avançar contra quem possui exageradas extensões de terras ociosas: "ninguém se opõe a isso, e muito menos se se garante um pagamento justo e legal. Ninguém se opõe a que o governo chegue a um acordo para readquirir terras que não se usam e que podem ser reorientadas a outras pretensões de cultivos" (Editorial de O Nacional, 27/03). Mas a medida obedece também ã forte pressão que está sofrendo o governo de Chávez frente a importante escassez de produtos derivados do campo, e que a cada dia se encarecem mais. Nos oito anos de "Revolução Bolivariana" não se tentou satisfazer as necessidades mais imediatas da população na área de alimentação, sendo que mais de 70% do consumo de alimentos é importado, estando longe de qualquer "soberania alimentícia" que prega Chávez. A maioria das terras que está sob intervenção será destinada ã criação de gado de duplo propósito (carne e leite) com a "ajuda" de grandes empresários da indústria agropecuária argentina, como o produtor de soja Gustavo Grobocopatel ou a Câmara Argentina de Fabricantes de Maquinaria Agrícola.
Mas a "guerra contra o latifúndio" está longe de se tornar realidade (ver quadro). Uma grande parte das terras em mãos privadas na Venezuela tem "titularidade precária" [[Com a "precariedade" do título queremos dizer que, ou a cadeia de títulos é muito recente, ou ali o que existe são compras de bemfeitorias, atravessadas umas a outras, mas que na realidade estão em terrenos de domínio estatal. ] ], sendo produto de um verdadeiro saque territorial ao apropriar-se de domínios que de fato pertencem ao Estado, e além disso sobre a base da expulsão de camponeses de suas terras. É sobre estas terras centralmente que está atuando o governo de Chávez. Se o latifúndio é legal e se mantém produtivo, não é submetido ã Lei de Terras. Por isso é que desde o governo não se cansam de repetir: "não tem nada a temer aquele que demonstre que as terras são suas e que as mantém produtivas". Aqui é que é revelado o conteúdo real da "guerra contra o latifúndio". O próprio governo reconhece que combateu as ocupações de terras em áreas produtivas realizadas por camponeses pobres de forma independente, e onde os latifundiários são donos das terras, sendo os camponeses penalizados a não terem jamais direito a terra. Como expressamos na revista Estratégia Internacional N° 23, no fundo está o objetivo do governo de "fortalecer a produção agrícola nacional" dentro do seu projeto nacionalista burguês, não importando quem produza nem quem seja o proprietário. Como expressou Pedro Carreño, ministro de Relações Interiores e Justiça, em seu momento, dirigindo-se aos latifundiários: "a Lei de Terras lhes permitirá competir, em preço e qualidade, com os rubros importados. Os empresários contarão com um grande aliado para modernizar, tecnizar a produção, como acontecerá na Marqueseña".
A Lei de Terras da "Revolução Bolivariana"
Se entende por latifúndio a centralização das terras em poucas mãos, colocando os camponeses ã margem da atividade agropecuária, condenando-os ã miséria, ao desemprego no campo ou ã super-exploração. No entanto, a Lei de Terras da "Revolução Bolivariana" alterou essencialmente este conceito, ao estabelecer no artigo n° 7 que tal fenômeno se produz somente quando existem terras ociosas ou não cultivadas. Isso significa que empresas multinacionais como Smurft-Cartones da Venezuela, que possui aproximadamente 600.000 hectares, não são latifundiárias pois todas se encontram em produção florestal, a despeito de uma numerosa população camponesa que vive ao redor das tais propriedades em situação de extrema pobreza, por não ter terras para produzir. Da mesma maneira, a agroindústria e outras empresas multinacionais que podem fazer grandes investimentos na produção agropecuária, apropriando-se de milhares de hectares, não poderão ser consideradas latifundiárias, já que dificilmente nas suas propriedades existem terras ociosas ou não cultivadas [["Lei de Terras. Produtividade, desenvolvimento e crescimento econômico. Consignas camponesas?" Comissão jurídica PRV, agosto de 2004. ] ]. A Confederação Nacional de Agricultores e Pecuaristas (Cofagan) apóia a aplicação da Lei de Terras por considerar que "é um instrumento para a materialização da seguridade alimentícia e a democratização da terra no país". Este apoio foi manifestado para enfatizar que estão contra as ocupações feitas pelos camponeses pobres, pois a "Lei de Terras não estimula as invasões na Venezuela" [[31 de agosto de 2004. Notícias Regionais. Confagan tem mais de 1.500 organizações de base, 120 mil produtores grandes, médios e pequenos.] ]. Por sua vez os representantes da Fegaven recentemente reconheceram "os avanços importantes em vários aspectos (por parte do governo), entre eles o de segurança no campo" (Imprensa do Ministério de Agricultura e Terras, 24/03); leia-se contra as ocupações de terras.
Os camponeses continuam a sua luta por terra, mas são fortemente reprimidos. Já se reconhecem oficialmente mais de 140 camponeses assassinados desde o ano de 2001 sem que um só culpado fosse preso, quando se tem a ciência de quem são os responsáveis. Pelo contrário, muitos camponeses que tomaram terras diretamente foram violentamente desalojados mediante decisões de juízes ligados aos latifundiários, que se utilizam da polícia e da Guarda Nacional para expulsá-los, sendo perseguidos e assassinados por mercenários pagos pelos mesmos latifundiários. Recentemente foram realizadas marchas camponesas pelo direito ã terra, contra os provocadores e pela liberdade dos camponeses presos.
A Venezuela sofre uma grande crise estrutural e histórica no setor agropecuário, sendo incapaz de abastecer até mesmo a sua população, dependendo do exterior, apesar de possuir uma grande quantidade de terras aptas para a agricultura e a pecuária. No entanto não haverá "soberania alimentar" sem uma verdadeira revolução agrária que comece pela expropriação direta, e sem indenização dos grandes latifúndios produtivos ou improdutivos, repartindo a terra entre os camponeses pobres que lutam por ela, e sem um plano de grandes fazendas coletivas que, de acordo com um plano racional, organize toda a economia nacional sob um governo dos produtores diretos, um governo dos trabalhadores, dos camponeses e do povo pobre. Nada disso é implementado no "Socialismo do século XXI" de Chávez.
– Guerra contra o latifúndio?
-42.000.000 de hectares aptos para a produção pecuária e agrícola.
-80% estão ociosas e muitas delas em mãos privadas ou do Estado.
-14% da população (de um total de 26 milhões) vive em zonas rurais.
-80% da área cultivável estão em mãos dos 5% de grandes proprietários.
-6% das terras são cultivadas por 75% de camponeses ou pequenos produtores agrários.