Estado espanhol
Podemos, Izquierda Unida e a utopia de reformar o capitalismo
06/12/2014
O programa econômico do Podemos surtiu todo tipo de críticas desde o governante Partido Popular (PP) e a oposição social liberal do PSOE. Mas também deixou claras as coincidências com Izquierda Unida, com quem compartilha a visão de que é possível "democratizar" a economia capitalista. Ante este cenário, o que faz falta na esquerda espanhola é uma crítica radical ao regime político e a defesa de um programa anticapitalista.
Após meses de indefinição, há duas semanas Pablo Iglesias apresentou seu programa econômico em um documento redatado pelos economistas Vicenç Navarro e Juan Torres, com o qual pretende disputar a presidência nas eleições gerais de 2015. As propostas não tardaram em receber os ataques dos representantes da casta política, aterrorizada pelo crescimento do Podemos nas enquetes.
“Ainda que o populismo extremista se vista de seda, populismo extremista será,” declarou o secretário de organização do PSOE, César Luena. Na mesma direção atacou um funcionário do PP, Javier Arenas, para quem o programa econômico do Podemos levaria a Espanha ã “ruína econômica” e a um “desemprego terrível”.
Mas “a casta” não se põe muito de acordo em qual será o melhor ângulo da crítica. Antonio Hernando, porta-voz socialista no Congresso, preferiu atacar por outro viés, e lhe pareceu “pouco sério” que o Podemos publique a cada “três semanas” um programa com medidas diferentes. Segundo Hernando, o Podemos se apresentou ás eleições européias “com um programa, depois outro, em sua assembléia apresentaram outro, ontem outro...”, uma apreciação não muito distante da realidade.
É compreensível que os representantes políticos do “PPSOE” – como a esquerda social espanhola lhes batizou – vejam com preocupação o ascenso do Podemos. Desde a Transição foi um dos pilares do regime político instaurado em 1978 que, com os Pactos de La Moncloa e a Constituição, permitiu o retorno da Monarquia, sepultou o direito de autodeterminação das nações, consagrou a impunidade dos crimes do Franquismo e estabeleceu o atual sistema político bipartidário, baseado em uma casta política privilegiada e corrupta.
Mas as críticas dos porta-vozes do PP e do PSOE carecem de toda objetividade. Não só porque nascem do espanto de perder parte de seus privilégios, mas também porque outorgam ao Podemos e seu programa econômico mais conteúdo “rupturista” do que realmente tem.
O tronco comum de Podemos e Izquierda Unida
Ainda que nem tudo sejam críticas. Também há grandes coincidências com outros partidos, como Izquierda Unida (IU). Assim o reconheceu Gaspar Llamazares, quadro histórico da ala direita de IU, emocionado com o fato de que o programa econômico do Podemos “coincida 95%” com as propostas que IU leva “defendendo sozinho há tantos anos”.
Ainda mais representativa é a leitura do deputado de IU Alberto Garzón, um jovem economista proveniente do 15M e promessa de renovação nas fileiras do alquebrado partido dirigido por Cayo Lara. Para Garzón, o programa de Podemos inclui muitas das propostas que defende IU. E mais, ele mesmo escreveu três livros com os economistas de Podemos Vicenç Navarro e Juan Torres.
Com efeito, as propostas apresentadas no documento “Um projeto econômico para as pessoas” são apoiadas nas que apareceram no livro “Há Alternativas”, um ensaio publicado em 2011 pelos três economistas, no qual propõem 115 medidas a adotar de forma urgente na Espanha, que em sua maioria estão reproduzidas no programa econômico de Podemos.
São propostas que se podem sintetizar em alguns eixos fundamentais (aumento do gasto público, perseguição da evasão fiscal, financiamento público frente os bancos privados, geração de crédito para desenvolver a economia, reestruturação ordenada da dívida), que de conjunto constituem um programa neodesenvolvimentista, de corte socialdemocrata, como seus mesmos autores reconhecem.
Assim, tanto o programa econômico do Podemos como o de IU, talhados sobre a mesma madeira reformista, propõem-se o objetivo utópico (e ao mesmo tempo reacionário) de humanizar e “democratizar” o capitalismo imperialista espanhol, seguindo a fábula de que é possível desenvolver uma economia “que contribua para o bem comum” sem superar as margens do próprio sistema capitalista, nem enfrentar as corporações e os grandes empresários. Ao contrário, consideram que são aliados fundamentais com os quais sentar-se a debater como “reposicionar a economia espanhola no mercado internacional”.
Lembranças da Transição
As coincidências entre o Podemos e IU, não obstante, não implicam uma absoluta identidade. Iglesias e os seus renegam explicitamente a ideologia de “esquerda” e consideram superada a luta de classes e o período histórico que deu origem ás “hipóteses insurrecionais”, enquanto IU segue mantendo simbolicamente – ainda que cada vez menos – um discurso que apela ã classe trabalhadora e, para os dias de festa, inclusive ã “revolução”.
Mas, sobretudo, o que não tem o Podemos, e tem a IU, é passado, ainda que este não seja glorioso e sim todo o contrário. IU leva consigo a herança política de seu principal componente, o Partido Comunista Espanhol (PCE), e seu papel na Transição como garantidor do “controle das ruas”, para que nada impedisse os acordos com a Coroa, os franquistas reciclados e o PSOE que permitisse “o retorno da democracia”. Isto se não quisermos nos referir ao papel contrarrevolucionário desempenhado pelo PCE na própria revolução espanhola.
E se o tempo passado não foi melhor, tampouco o é no presente, em que IU é vista por amplos setores – não sem razão – como parte da casta política, participando do governo austeritário da Andaluzia com o PSOE, com dezenas de dirigentes implicados nas corruptelas de Caixa Madri e Bankia, ou sustentando uma aliança estratégica com a burocracia sindical de CCOO que deixou passar a reforma trabalhista e todos os ataques ao movimento operário nas últimas décadas.
A dura disputa interna dentro de IU por renovar sua direção, que há poucos dias teve um primeiro desenlace com o triunfo de Tania Sánchez e Mauricio Valiente nas prévias de IU Madri, é parte da tentativa de reciclagem ante os profundos sintomas de decomposição que os agarram.
Mas isto não significa que no balanço da Transição haja diferenças substanciais entre Iglesias e os porta-vozes de Podemos com o PCE e IU. Em um recente debate sobre “populismo” realizado no Fort Apache, conduzido por Pablo Iglesias, o líder do Podemos e outro de seus porta-vozes, Iñigo Errejón, defendem abertamente o papel central do PCI (Partido Comunista Italiano) para reinstaurar a democracia burguesa na Itália depois da Segunda Guerra Mundial. Este papel será a antesala do posterior giro “eurocomunista”, em que o PCI assume explicitamente as regras do jogo da democracia burguesa e sobre o qual Iglesias e Errejón se calam no debate. Uma tentativa vergonhosa de escapar ã reivindicação do outro eurocomunismo, o de Santiago Carrillo, espelho espanhol (na Transição) da “responsabilidade de estado” que mostrou o PC Italiano.
Isto não deveria surpreender ninguém. Vários dos “quadros” do núcleo duro do Podemos provêm do PCE e da IU, começando pelo próprio Iglesias ou Juan Carlos Monedero, que durante anos foi acessor de Llamazares e, segundo dizem algumas fontes, muito próximo ao núcleo mais de direita da direção de IU Madri... a mesma que acaba de ser destituída.
Sob o prisma destas experiências resulta mais simples compreender o conteúdo das consignas de marketing como “resgatar a democracia” que tanto agrada dizer aos dirigentes de Podemos e IU, entre os quais, em definitivo, há muitas mais coincidências programáticas e estratégicas do que pensam.
A necessidade de uma crítica anticapitalista
Pablo Iglesias sustenta que seu programa econômico, o mesmo que defende IU, é “realista e pragmático”. Não obstante, resulta difícil considerar realista um programa que se proponha superar a crise gerada pelos próprios capitalistas sem afetar seus interesses. Esta simples verdade, a impossibilidade de conquistar uma “economia a serviço do povo” sem enfrentar e superar o capitalismo é um dos principais debates que se colocam hoje para a esquerda espanhola.
Lamentavelmente, setores que se reivindicam anticapitalistas dentro do Podemos, como a direção de Izquierda Anticapitalista, longe de defender estas idéias se subordinaram ã estratégia e ao programa de Pablo Iglesias, assumindo quase sem críticas o programa econômico do Podemos.
Na esquerda espanhola urge desenvolver uma crítica anticapitalista radical, que mostre os limites irremediáveis de um programa de “democratização” da economia capitalista e que, por sua vez, combata a estratégia de regeneração democrática do regime político espanhol, compartilhada tanto pelo Podemos como por IU, que opõe a gestão dos recursos do estado capitalista ã mobilização das massas.
Milhares de pessoas, entre eles militantes de IU e outras organizações, cantavam nas recentes Marchas da Dignidade do 29N “Não há outra maneira, ou com a patronal ou com a classe operária”. Com toda justiça uma idéia correta. Não obstante, para que esse canto se possa transformar em uma realidade, é necessário impor um programa que partindo das demandas mais urgentes da população trabalhadora (defender o trabalho, acabar com o desemprego de milhões, moradias dignas, terminar com o assédio dos bancos, saúde e educação gratuita e de qualidade para todos, direitos democráticos, etc.) avance em questionar o poder dos bancos e dos grandes capitais multinacionais do Estado espanhol. E isso não pode ser feito nos marcos do atual regime político nem com suas regras de jogo, mas mediante uma estratégia que tenha por centro a mobilização revolucionária dos trabalhadores e a maioria do povo pobre.
Se não for assim, seja com um governo do Podemos ou uma coalizão de Podemos-IU-PSOE, ou a variante que “feche” para alcançar a maioria, os poderes reais do capitalismo espanhol conseguirão, uma vez mais, assimilar um novo pessoal político para sobreviver-se a si mesmo.