Editorial | Palavra Operária
Primeiras expressões dos limites do “modelo” brasileiro
31/05/2013
Por Val Lisboa
Repetindo o discurso de governo desde o período de Lula, a presidente Dilma Rousseff, em discurso no 1° de Maio, declarou que “o Brasil avançou muito nos últimos anos” e alcançou “recordes sucessivos no emprego, na valorização do salário e nas conquistas sociais dos trabalhadores”. Pelos cálculos oficiais desde 2003 – posse de Lula – foram criados 19 milhões de empregos, alcançando 48 milhões de empregos formais (carteira assinada), e o salário mínimo – que baliza, por baixo, a renda do trabalho – aumentou 182,5% (R$ 240,00, em 2003; R$ 678,00, em janeiro de 2013). Segundo o Dieese, 45,5 milhões de pessoas têm salários ou benefícios referenciados no mínimo, enquanto para este instituto o salário mínimo, para cumprir o que diz a Constituição, deveria ser R$ 2.674,88.
Estas são as bases – além do Bolsa Família – para o otimismo nacional e a popularidade dos governos de Lula e de Dilma. Porém, como mostra dos efeitos da crise capitalista mundial, no próprio 1° de Maio o tema mais ouvido era a “volta da inflação”, que havia chegado 6,59%, ultrapassando as “metas” previstas. A presidente disse que não iria “nunca descuidar do controle da inflação”. O presidente da Força Sindical, Paulinho Pereira (deputado do partido patronal PDT e aliado ex-aliado histórico dos tucanos e de Collor), em sua nova investida “opositora” ao lado do governador de Pernambuco Eduardo Campos (PSB), chegou a falar da necessidade de um “gatilho” que reajustasse os salários a partir de um determinado índice inflacionário. Esta proposta foi alvo de imenso tiroteio que unificou todos os partidos, desde o PT, Dilma e até a oposição burguesa, com Aécio Neves se abraçando com Dilma e a patronal, incluindo a CUT e a CTB. Essa foi uma mostra incontestável de que os burocratas sindicais dessas centrais, o PT e o PCdoB se aliam ao governo Dilma em defesa dos lucros capitalistas ás custas do arrocho dos salários.
Já neste ano a retração da economia e a inflação atingem a renda do trabalhador. Em 2013 o reajuste foi de 8,83%, abaixo dos 14,1% de 2012. Como o reajuste do salário mínimo é definido pela soma do PIB (Produto Interno Bruto) do ano antepassado (2010) mais a inflação do ano anterior (2011), o resultado foi que os que ganham salário mínimo tiveram perdas salariais, já que a inflação corrente está comendo o ganho salarial. Por exemplo, em abril o Dieese calculou o mínimo em R$ 2.892,47, 8,13% acima do previsto para janeiro. Em todos os salários dá-se o mesmo, perde-se renda ao receber a inflação passada enquanto os preços atuais se elevam. Os patrões, óbvio, elevam seus lucros ás custas do salário rebaixado e do aumento dos preços.
Ainda que não se possa confiar minimamente num burocrata sindical patronal como Paulinho, “sem querer” ele colocou em pauta uma questão fundamental para a defesa dos trabalhadores e seus salários diante da perspectiva de elevação da inflação e do arrocho salarial: gatilho salarial, ou, como dizemos os trotskistas, escala móvel de salários, isto é, se os preços (lucro patronal) aumentam, os salários devem acompanhar para que não sejamos nós, os trabalhadores, a pagar o custo da crise que os capitalistas criam. E o salário mínimo justo para sustentar uma família de dois adultos e duas crianças deveria ser o calculado pelo Dieese (3,4 vezes maior que o atual), o que demonstra como os capitalistas lucram ás custas do suor dos trabalhadores.
O otimismo popular começa a se abalar
Num governo que teve como estratégia estimular e garantir o consumo como motor da economia, as tendências de elevação da inflação e desaceleração econômica, com seus efeitos no crédito (mais rigor na concessão de empréstimos e juros em perspectiva de alta), queda da renda e previsão de baixa no emprego tendem a gerar desconfiança e perda de otimismo. Os trabalhadores com menores salários gastam quase 1/3 da renda em alimentação, já tendo que recorrer a cartões de crédito para suas compras básicas. É o que denuncia notícia no site Globo.com: “Cada vez mais brasileiros estão se endividando pra fazer a compra de supermercado. [...] A alta dos alimentos no primeiro trimestre do ano fez com que um número maior de pessoas preferisse parcelar as compras no cartão. Foi a primeira vez que isso aconteceu nos últimos sete anos.” Mesmo que Dilma e o governo alardeiem a criação de empregos não podem esconder que a tendência tem sido de queda nos últimos 6 trimestres. “Na comparação com março de 2012, contudo, o nível de emprego na indústria caiu 0,6%. Com esse resultado, o emprego industrial acumula recuo de 1% no primeiro trimestre e baixa de 1,4% em 12 meses até março.” Mesmo onde o governo conta com altíssima popularidade os índices de emprego se mostram preocupantes. “Na análise por regiões, o emprego na indústria caiu em nove dos 14 locais pesquisados em março ante um ano antes. O principal impacto negativo sobre a média global foi observado na região Nordeste (-3,7%). Isso porque, nessa localidade, houve perda de emprego em 12 dos 18 setores investigados na região.” [Valor.com]
No dia 18 de maio, um sábado, em 12 estados vimos uma verdadeira “corrida aos bancos”, com mais de 900 mil pessoas ocupando agências da Caixa para sacar seus benefícios do Bolsa Família, retirando no fim de semana mais de 152 milhões de reais. O governo diz que investiga de onde partiu as informações de que o benefício seria cortado, o que teria causado o alvoroço. Este benefício, que é a “menina dos olhos” dos governos petistas, desde Lula, favorece cerca de 50 milhões de pessoas que recebem entre R$ 32 e R$ 306, de acordo com a renda mensal da família. Com este plano Lula assentou apoio popular expressivo que sustentou seu governo desde o início, principalmente nas regiões mais pobres do país. Daí que, diante dessa situação, o governo tenha feito de tudo para garantir os pagamentos, inclusive adiantando o recebível do próximo mês. Era fundamental, para o governo, preservar a “credibilidade” neste plano, já que a rebelião nesses estados mostrou que esse povo não confia “até a morte” no governo e encara esses benefícios como conquistas (pequenas, porém, conquistas) que não entregarão facilmente.
Contudo, nesses três pilares da popularidade do governo (consumo, emprego e Bolsa Família) o que temos visto é justamente elementos de desconfiança e perda de otimismo. Isso mesmo quando a crise econômica (Grande Recessão que atinge Europa, Japão e EUA, e retração econômica na China) ainda não “golpeou” fortemente as portas do país, e o governo Dilma já “trabalha” com vistas a sua reeleição em 2014, o que exigirá fazer malabarismos para não deixar que a deterioração das condições econômicas (queda das exportações, déficit comercial e das contas correntes, inflação, juros, desvalorização do Real, planos de austeridade etc.) gere descontentamento operário e popular e dissidências políticas que ameacem a estabilidade política atual. De um lado, a desconfiança popular que começa a dar seus sinais mostra que o governo não conta com “fé cega” para iludir os trabalhadores e as massas por muito tempo. De outro, traz à luz uma disposição, entre os trabalhadores e as massas, de defender o que arrancou nesses anos e não permitir que facilmente os governos e a patronal lancem sobre suas costas o fardo da crise econômica, aumentando o arrocho salarial, as demissões e a miséria. Pode parecer pouco, mas já são novos ventos que anunciam “tempos quentes” – lutas operárias e populares em defesa dos salários, empregos e conquistas.
Greves mostram tendência de recomposição das forças dos trabalhadores
Considerando esses “novos ventos”, encontramos uma tendência do aumento do número de greves e grevistas. Ainda que sejam greves defensivas – para manter conquistas, reajustes ou exigir pagamento de salários atrasados –, os números divulgados pelo Dieese demonstram, nesses últimos anos, uma recomposição objetiva dos trabalhadores – a geração de empregos, mesmo precários, fortaleceu relativamente a classe operária em número e concentração. Os trabalhadores, confiantes em manter o emprego (ou conseguir outro logo), se lançam para defender melhores condições de trabalho, reposição salarial acima da inflação etc. Quando a patronal precariza o trabalho ao ponto de dar calote nos salários e direitos, os trabalhadores se encorajam e saem à luta, mesmo em fábricas pequenas ou sem organização sindical efetiva. Estudo do Dieese divulgado em maio registra 873 greves em 2012, confirmando “a tendência de aumento do número de greves verificada a partir de 2008.” A destacar “o número de greves realizadas pelos trabalhadores da esfera privada (461)”, superando as da esfera pública (409). Do total anual 53% das greves foram nas empresas privadas, sendo 330 no setor industrial.
São greves curtas, que se resolvem rapidamente, já que a patronal quer evitar maiores prejuízos diante de uma economia desacelerada, mas que ainda permite vendas. Cerca de 60% das greves durou menos de cinco dias, com 30% se resolvendo no primeiro dia. Ou seja, são pequenos exercícios para os trabalhadores, permitindo-lhes acreditar em suas próprias forças e métodos de luta coletiva, e experiências iniciais contra a patronal e mesmo com os burocratas sindicais. Lembrando os ensinamentos de Lenin, "a greve ensina os operários a compreenderem onde repousa a força dos patrões e a sua, ensina a pensarem não só em seu patrão e em seus companheiros mais próximos, mas em todos os patrões, em toda a classe capitalista e em toda a classe operária. Quando um patrão que acumulou milhões ás custas do trabalho de várias gerações de operários não concede o mais modesto aumento de salário, e inclusive tenta reduzi-lo ainda mais, e, no caso de os operários oferecerem resistência, põe na rua milhares de famílias, então os operários veem com clareza que toda a classe capitalista é inimiga de toda a classe operária e que os operários só podem confiar em si mesmos e em sua união."
Essa “ginástica” será de grande valia quando a patronal e os governos se lançarem contra os trabalhadores alegando a crise econômica para descarregar contra os salários, empregos e conquistas, pois várias categorias (85% das greves no setor privado) têm imposto suas reivindicações ã patronal e até mesmo aos governos, a despeito das medidas repressivas contra o direito de greve, espionagem de sindicatos e manifestações de trabalhadores e o nefasto papel traidor das burocracias sindicais.
Os setores combativos, classistas e revolucionários devem superar a acomodação
Ao lado dessas mudanças vale levar em conta as questões democráticas que tomam enorme ressonância, denunciando o caráter degradado e antidemocrático do regime político e institucional brasileiro. Corrupção, lutas por direitos civis e democráticos – mulheres, homossexuais, prostitutas, juventude, separação da religião do Estado, combate aos obscurantistas e reacionários membros das igrejas católicas e evangélicas, apuração dos crimes da ditadura e punição aos torturadores, mandantes e colaboradores civis e militares etc. – são esferas que mostram potencialidades de abrir brechas por onde os trabalhadores e suas organizações sindicais, em unidade com os estudantes, a classe média progressista e as camadas populares oprimidas e exploradas possam dar passos concretos para fazer valer sua força social e política contra as manipulações e negociatas que os políticos patronais, os governantes e os capitalistas procurarão “conservar” os elementos reacionários nascidos da transição negociada que permitiu o fim do regime militar sem que as massas pudessem derrotar o regime com sua força independente, conquistando questões democráticas básicas como o direito ã terra aos sem terra e quilombolas, ás reivindicações indígenas, punição dos crimes da ditadura, direitos civis ás camadas oprimidas da sociedade, principalmente as mulheres, os negros e os homossexuais.
Para novos “tempos”, definidos por condições econômicas e políticas mais sincronizadas com a crise econômica mundial, devem se preparar os ativistas, militantes, correntes e partidos que se colocam no combate ã patronal, aos governos burgueses e ã burocracia sindical. Os trabalhadores ainda mantêm suas ilusões e aspirações nas perspectivas de “estabilidade” econômica e social. O descontentamento popular ainda não prima na situação política, nem na conjuntura. Porém, os tempos da crise econômica mundial podem se acelerar e trazer novos ritmos por efeito de algum choque externo ou interno (político e não apenas econômico). Os trabalhadores, apesar das ilusões, estão em melhores condições para enfrentar a patronal e os governos. A burocracia sindical é uma barreira forte mas não intransponível, pois poderá ver-se obrigada a defender-se da ferocidade patronal (a Força Sindical chamou greves portuárias, ainda que em aliança com setores patronais), o que liberará forças de combate entre os trabalhadores, que se as correntes que se reivindicam de esquerda souberem aproveitar se constituirão em alicerces de constituição de alas classistas e combativas nos sindicatos, principalmente, e movimentos sociais. A CSP-Conlutas, por exemplo, deveria preparar as bases para organizar encontros e plenárias efetivamente preparadas democraticamente, onde se defina um plano de lutas operário e popular, ou seja, sem qualquer conciliação com programas de setores patronais e exigindo que a burocracia da CUT, Força, CTB e demais centrais rompam seus laços com os governos e a patronal para unificar os sindicatos e todos os trabalhadores – efetivos, temporários, terceirizados etc. – na luta em defesa dos salários, com recomposição de acordo com o aumento do custo de vida, empregos, redução da jornada e direitos trabalhistas, sociais e civis para todos.
Este processo exigirá combinar exigências e denúncias ã burocracia sindical, mas antes de tudo uma mudança de “espírito” nos setores antigovernistas e antipatronais, se apoiando nos setores que saiam à luta, unificando as pautas e as mobilizações e atuando com o máximo de democracia operária para construir novos dirigentes operários que se coloquem ã frente das greves e ações independentes. As marchas e atos devem corresponder a um plano de ação que prepare métodos combativos – greves e piquetes combinados com assembleias soberanas (democracia operária) que imponha as decisões das bases a todos os dirigentes, impedindo acordos e negociatas (com os patrões, governos e tribunais) para desmobilizar e entregar as reivindicações mais sentidas em troca de migalhas.