Economia
Se aprofunda a crise financeira nos Estados Unidos
05/08/2008
Em 13/7, antes de abrirem os mercados, a Reserva Federal (FED, em inglês) e o Departamento do Tesouro dos EUA anunciaram medidas para salvar da falência as empresas hipotecárias estadunidenses Fannie Mae e Freddie Mac. É a segunda vez em um ano que esses dramáticos anúncios são feitos num domingo, um fenômeno reservado para os países semi-coloniais, mas não para a primeira potência capitalista mundial. Isto só mostra a gravidade da situação e que as condições financeiras estão muito piores do que estavam no começo de março de 2008. Isso mostra também o fim da idéia de que com o resgate do banco de investimentos Bear Stearns o pior da crise já havia passado.
Um plano de resgate excepcional
O FED disse que ambas as empresas poderiam receber empréstimos de emergência em sua carteira de desconto. Para eles, o banco da Reserva Federal de Nova Iorque já conta com a autorização para proporcionar, em caso de emergência, capital adicional ás duas empresas. Se as duas empresas aceitassem o crédito, teriam que lhe aplicar um tipo de juro de 2,25%, o mesmo que se concede a bancos comerciais e grandes empresas de Wall Street. O plano proposto pelo FED prevê, além disso, que o banco central estadunidense seja consultado no caso de qualquer novo marco regulador que poderia impulsionar o Congresso e que afete a Fannie Mae e a Freddie Mac.
Por sua vez, o Tesouro disse que elevaria temporariamente o limite de sua linha crédito para Fannie Mae e Freddie Mac, duas companhias privadas de financiamento hipotecário patrocinadas pelo governo, e que poderia, se fosse necessário, comprar parcelas acionárias de ambas empresas. Simultaneamente, e enquanto toda a atenção estava centrada em Fannie Mãe e Freddie Mac, a IndyMac Bank, uma importante hipotecária com sede na Califórnia, passou a ser controlada pelas autoridades federais. Esta firma contava com ativos por um valor de 32 bilhões de dólares e custará ã Corporação Federal de Seguros de Depósitos (FDIC) entre 4.000 e 8.000 bilhões de dólares, sendo que somente esta operação já abarca 10% de seus fundos. Sua débâcle, a mais importante hipotecária que entrou em colapso desde o colapso da bolha imobiliária em 2007, é uma mostra da profundidade da crise imobiliária e financeira, convertendo-se no terceiro fracasso mais importante da história dos EUA depois da queda do Continental Illinois em 1984 e da American Saving and Loan Association of Stockton em 1988.
Entretanto, as medidas excepcionais da FED e do Tesouro dos EUA não conseguiram acalmar os mercados, que vêem se aproximar uma série de bancarrotas de centenas de pequenos bancos, dezenas de grandes bancos regionais ou nacionais (como IndyMac) e o início de falência de alguns dos grandes bancos considerados grandes demais para cair como Bear Stearns em março, mas cujos resgates serão extremamente custosos. Esta perspectiva, na terça-feira (12/7), levou o dólar a seu piso mais baixo em relação ao euro.
O coração do sistema hipotecário norte-americano
Se a crise começou pela firmas e as hipotecas subprimes, a crise de Fanny Mae e Freddy Mac afeta ao coração do sistema hipotecário norte-americano.
A Associação Federal de Hipotecas Nacionais (ou Fanny Mae) e a Corporação Federal de Empréstimos Hipotecários para a Moradia (Freddy Mac) possuem ou garantem entre ambas a metade do mercado estadounidense para a compra de moradia e 75% das hipotecas sobre as casas familiares (Single-Family). Praticamente todas as empresas imobiliárias dependem destas duas companhias em algum sentido, quase todos os bancos de Wall Street fazem negócios com elas, e investidores de todo o mundo possuem uma porção considerável dos 5,2 bilhões de dólares em títulos de dívidas respaldados por estes dois gigantes. Na América do Norte há apenas um devedor maior: o Tesouro dos EUA. Se estas duas companhias perderem totalmente a confiança dos investidores significaria um golpe fatal para o já debilitado mercado imobiliário estadunidense. Sua função principal é comprar os empréstimos hipotecários dos bancos para revendê-los depois aos investidores, aportando o capital que os bancos empregam para conceder novos empréstimos, a essência do mercado imobiliário. Ainda que por seu tamanho e papel crucial para a economia norte-americana é impensável que as autoridades dos EUA deixem as coisas chegarem a tal extremo, a baixa das ações das companhias - que estão caindo da mesma forma e rapidez que as ações de World Com e Enron diante do colapso da bolha da informática oito anos atrás - levaram alguns investidores a receber mais por assumir estes empréstimos. Poderia chegar a um ponto em que tanto Fannie como Freddie terminem pagando aos bancos mais dinheiro do que recebem dos investidores. Isto já aconteceu antes: o aumento dos tipos de juros na década de 1980 provocou que Fannie Mae perdesse até um milhão de dólares por dia.
Expressão da débâcle do mercado hipotecário
A sorte de Fannie e Freddie, assim como a débâcle de IndyMac Bank é expressão da profundidade da crise do mercado imobiliário norte-americano.
O número de penhoras de bens forçadas que expulsam as pessoas de suas moradias foram nesse período 57% superior ao do ano passado (e subiu também o número de imóveis que foram retidos por bancos e financeiras hipotecárias: 129%). Sabendo que os preços continuam caindo, muitos edifícios não conseguem vender-se sem visíveis perdas, ou praticamente carentes de valor, também para os bancos. Já se prevê a próxima onda de desvalorizações e perdas constatadas. Até o começo de 2009, os preços imobiliários em regiões urbanas centrais, como Los Angeles, São Francisco ou Miami - segundo distintos prognósticos - continuará caindo entre 40 e 50%.
Na Costa Oeste, assim como no país, há hoje mais casas vazias do que nunca, furtivamente abandonadas pelos proprietários que não podem continuar pagando suas hipotecas. Afeta particularmente as centenas de milhares nas ricas regiões da Califórnia ou Flórida, e em bairros que até pouco estavam entre os melhores cotados. Trechos inteiros de ruas residenciais da América do Norte parecem agora cenários de filme, e não restaram mais do que lembranças dos antigos habitantes que, protegidos pela noite e pela neblina, abandonaram seus lares levando apenas o que cabia no carro. Muitos, muitíssimos, não podem permitir-se pagar um apartamento, e não estamos falando de uma "casa nova". Os de maior sorte se abrigam com seus parentes. Para outros o próprio carro se converteu em sua casa, somente localizáveis através do celular. A amigos e a parentes, nem palavra do lugar em que se está. Na Califórnia, Arizona ou Flórida tem aparecido uma nova categoria de "sem-teto". Os jornais noticiam a existência de pensionistas que vivem em seus carros de classe média na rua, ou gente visivelmente mais jovem que tem um trabalho regular, mas que não pode permitir-se ter uma casa. Na fila estacionam suas moradias móveis juntos ás calçadas das periferias e bairros residenciais de zonas burguesas, despertando a queixa dos habitantes, para quem esta nova vizinhança dos sem tetos "itinerantes" atentam contra o valor de suas casas, a imagem de suas ruas e a reputação de seu bairro.
A pressão deflacionária
A débâcle de IndyMac Bank não é caso isolado. Como disse um respeitado agente de investimentos: "O sistema financeiro está numa encruzilhada. Aos atuais preços de mercado, o sistema permanece descapitalizado apesar da injeção de 350.000 milhões de dólares nos doze meses passados. Mais ainda, dado o colapso dos preços das ações, um número crescente de instituições, incluindo gigantes como Freddie Mac e Fannie Mae, as agências hipotecárias, são essencialmente incapazes de conseguir capital sem a ajuda governamental. Quanto mais tempo prevalecer esta situação, maior o risco d o sistema financeiro enfrentar dificuldades em conseguir outros financiamentos críticos para suas operações de dia a dia. Isto aceleraria a venda forçada de seus ativos em mercados carentes de liquidez, conduzindo a outro passo atrás em um já vicioso espiral negativo [1].
Mas esta situação não somente se restringe ao sistema financeiro, como também abarca crescentemente o conjunto do tecido econômico dos EUA, como ilustra a delicada situação do gigante automobilística General Motors (GM), que se encontra mais perto da bancarrota que em qualquer momento desde 1920 quando quase havia quebrado. Seus bônus são considerados como lixo, suas ações estão no nível mais baixo desde 1954, suas vendas estão caindo vertiginosamente e seu management está desorientado. Até os analistas sempre otimistas de Wall Street consideram que a GM tem 75% de probabilidades de quebrar. Estamos falando da companhia considerada há pouco tempo a número um dos EUA. Em seu auge, a GM dominava 50% do mercado norte-americano; hoje é uma companhia cujo valor acionário é de 5.000 milhões de dólares com menos de um quinto do mercado automotriz norte-americano. Ainda que seja difícil de acreditar, o maior fabricante de automóveis dos EUA hoje tem um valor de mercado menor que a Mattel, uma fabricante de carros de brinquedo. A debilidade das vendas reflete um forte giro na cultura de consumo nunca antes visto na história da indústria automobilística: as grandes 4x4, grandes consumidoras de gasolina e que deixavam uma alta margem de lucros ás Três Grandes de Detroit (GM, Ford e Chrysler), em especial a GM, está se esvaindo com o aumento do combustível. O mesmo fenômeno, junto com a crise imobiliária, está liquidando o irracional e pouco produtivo desenvolvimento de grandes casas e mansões nos subúrbios dos EUA, com um alto consumo de energia para sua calefação e pelos excessivos custos do transporte - na ausência de transporte público - para mobilizar-se aos longínquos centros de trabalho, de negócios ou de produção.
Porém mais importante que o anterior, a ameaça mais duradoura para as Três Grandes de Detroit é a contradição do mercado de créditos. Muito antes que as pessoas começassem a conhecer os créditos subprime, as Três Grandes financiavam a compra de automóveis com empréstimos automotivos subprime. Com taxas de juros a nível zero, com empréstimos de duração maiores do que a vida útil do carro, foram criando uma indústria tão moldada pelas fáceis condições de crédito para sua sobrevivência que hoje se vêm numa difícil situação. Sua sorte final estará atada, pra além dos draconianos planos de demissões que se preparam, ã sorte dos mercados financeiros e do alcance da recessão e a que se detenha o espiral deflacionário que está destroçando a viabilidade deste e de outros negócios, difícil no marco da pior crise financeira desde a Grande Depressão e a pior recessão americana em décadas.
Uma pesadíssima carga para o fisco... que será paga pelos trabalhadores
As autoridades monetárias e financeiras norte-americanas estão diante de um dilema. Por um lado, não podem deixar quebrar a Fannie Mae e Freddie Mac, não somente porque isto paralisaria seu mercado hipotecário senão porque os investidores internacionais (em especial os bancos centrais russo e principalmente o chinês) estão cheios de títulos destas duas agências, e todo sinal de não apoio poderia implicar uma fuga em massa desses investimentos. Mas um resgate destas duas instituições hipotecárias significaria uma pesadíssima carga para a fiscalização: é que as fortes perdas da socialização destes dois bancos significariam a necessidade de aportar ao menos 3% do PIB estadunidense para seu resgate, em torno de 360 bilhões de dólares. No ato, as letras do Tesouro do governo dos EUA, até agora aceitas e mantidas sem vacilo em todo o mundo, se desvalorizaram terrivelmente: a próxima onda da crise financeira global estaria aberta. Daí a nova debilidade do dólar.
O plano de resgate do Tesouro de Fannie e Freddy, a "mãe de todos os resgates", é como já denunciamos com o resgate do banco de investimento Bearn Stearns mais uma mostra de que em tempos de crise os governos capitalistas não tem dúvida em acudir ao socialismo, mas para os ricos, os que têm bons contatos e para Wall Street. Uma mostra do caráter doentio do capitalismo, um sistema onde os lucros são privatizados e as perdas socializadas.
Os que pagarão a conta serão os trabalhadores que não somente agüentam um aumento das demissões mas uma crescente carga impositiva sobre seus ombros. Devemos impedi-lo.
Traduzido por Diana Assunção
NOTASADICIONALES
[1] "Financial Times 14/7, Mohamed El-Erian, co-chefe executivo e co-chefe de investimentos de Pimco, uma grande investidora norte-americana.