Bolivia: O "capitalismo andino" de Evo Morales
Um projeto que não responde ás aspirações populares
14/02/2006
Um projeto que não responde ás aspirações populares
Por: Eduardo Molina
Fonte: La Verdad Obrera N° 179
Evo Morales assumiu a presidência no dia 22 de janeiro em meio a enormes expectativas populares, refletidas na multidão que assistiu aos atos centrais (cerimônia indígena em Tiwanaku, festa popular). A importante presença de presidentes (Lula, Chávez, Kirchner, Lagos, etc.) e delegações estrangeiras, entre as quais se destacou Tomas Shanon, Subsecretário de Assuntos Latino-americanos do governo dos Estados Unidos e o Príncipe de Astúrias representando o Estado espanhol, referendou o apoio internacional.
Milhões de trabalhadores, camponeses, indígenas e setores da classe média outorgaram um contundente triunfo eleitoral ao MAS com a esperança de que esse nacionalize o gás e cumpra suas demandas.Mas o MAS não se colocam para dirigir um processo de genuínas transformações revolucionárias, e sim de um governo de mudanças limitadas em uma democracia reformada, “sem exclusões” e colaborando com os empresários e as trans-nacionais “que acatem as leis bolivianas”.
Por isso, além das promessas e dos gestos simbólicos, o conteúdo fundamental do clima de grande “festa democrática” e de “unidade nacional” foi convocar ã “moderação”, ã “paz social” (nas palavras de um sacerdote aymara em Tiwanaku, “à harmonia”), no que insistem desde Evo Morales e a cúpula do MAS, até os meios de comunicação, os empresários e a “comunidade internacional”, para conter e postergar as grandes expectativas de mudança popular.
O discurso de Evo e o programa do MAS
Em seu primeiro discurso como presidente, Evo Morales reiterou as propostas do programa do MAS. Foi um discurso crítico na forma, reivindicando aos povos indígenas e aos movimentos originários, prometendo um “governo das maiorias” e uma “revolução democrática e cultural”. Evo atacou o neoliberalismo, a seus velhos representantes e a corrupção, incluindo expressões nacionalistas, mas o conteúdo foi muito moderado e conciliador. Evo convocou o apoio na “mudança na democracia” ã oposição e ã “comunidade internacional”. Apelou aos empresários e agroindustriais, propôs aos EUA um pacto para combater o narcotráfico e insinuou a discussão da ALCA; ao mesmo tempo que levantou algumas reformas parciais, de caráter bem mais simbólico, como os cortes no salário presidencial e as dietas parlamentares e medidas de “corrupção 0”.
Quanto ã Constituinte, Evo propôs que se reúna no dia 6 de agosto “para refundar o país”, “unir aos bolivianos respeitando a diversidade” e “conseguir um novo pacto social” quer dizer, buscando o “consenso” com “cívicos” e empresários no marco das reacionárias instituições atuais; algo oposto ao legítimo desejo popular de debater todos os problemas nacionais em uma assembléia livre e soberana. Evo não detalhou sua política para os hidrocarbonetos, mas insistiu que a Bolívia “precisa de sócios, e não donos” apelando para novas inversões. O que o MAS denomina de “nacionalização”, nada mais é que uma renegociação de contratos com as petroleiras, aumento de impostos e um maior investimento estatal recompondo o YPFB. Quanto ás “capitalizações” o MAS aceita a “segurança jurídica”, comprometendo em relação aa privatização de serviços e de empresas públicas.
Evo falou de distribuição de terras, mas garantiu que não tocará nas grandes propriedades “produtivas” do Oriente, sem as quais não dá para satisfazer as necessidades de milhares de famílias camponesas e nem recuperar o território que reivindicam os povos originários. Em suma, nada de ruptura com as transnacionais nem com os grandes empresários, nem uma verdadeira reforma agrária, e sim uma conciliação e colaboração com o grande capital nacional e estrangeiro marcada na utopia proposta de desenvolver o “capitalismo andino”, aplicando um programa levemente nacional-desenvolvimentista que não oferece mais do que falsas soluções aos grandes problemas nacionais e ás demandas operárias, camponesas e populares.
Um governo de contenção frente-populista
Assim, se pode esperar muitos gestos simbólicos, algumas reformas políticas parciais e disputas com as petroleiras, mas sem nenhuma transformação de fundo. O MAS inicia seu governo com a busca de acordos e pactos em meio a uma “lua de mel” transitória onde ainda que se produzam tensões, convergem as expectativas e ilusões populares de mudança com a “vontade negociadora” manifestada pelos empresários e as transnacionais.
Evo já aceitou continuar a privatização da jazida de ferro de El Mutún em Santa Cruz, e contemporizou com o Comitê Cívico desse departamento mostrando sua disposição em pactuar com os maiores representantes da reação. Evo e Álvaro García Linera reafirmaram a necessidade de manter a “segurança jurídica” e a “estabilidade macroeconômica” (quer dizer, as regras do jogo do mercado impostas pelo neoliberalismo), enquanto que líderes empresários como Roberto Mustafá, presidente da CEPB, se pronunciaram por um entendimento com o novo governo.
Coroando estes propósitos o gabinete ministerial que está se armando tem alguns rostos indígenas e de origem sindical mais figuras “sérias” em ministérios chave -“consultores”, “profissionais” ligados ás ONG’s-, para organizar as negociações com empresários, agroindustriais, petroleiras e a “comunidade internacional”.É que o MAS capitalizou eleitoralmente a enorme raiva e desejos de mudanças populares mas para subordiná-las ã colaboração de classes com a burguesia mediante o bloco com seus representantes políticos “progressistas”, como o MSM de Juan del Granado (o prefeito de La Paz que “co-habitou” com o MNR e aplica os planos do BID), os “pequenos empresários”, as ONG’s ligadas ã igreja e ao imperialismo europeu etc.
O triunfo eleitoral do MAS teria sido muito difícil sem os cinco anos de intensa mobilização de massas, com a “Guerra da água” de 2000 em Cochabamba, o levante insurrecional de Outubro de 2003, e as Jornadas de Junho de 2005. O MAS atuou em cada momento chave freando a mobilização de massas, sustentando a “continuidade constitucional” como em Outubro e Junho ou, apoiando Carlos Mesa durante um ano e meio. O MAS se propõe a continuar desde o governo a contenção da mobilização de massas que até agora cumpriu por baixo, bloqueando o desenvolvimento do processo revolucionário.
O significado do apoio internacional
Não é casual que a “comunidade internacional” tenha respondido favoravelmente ã “moderação” prometida pelo MAS. Os governos imperialistas da Europa receberam garantias para seus capitais na recente viagem de Evo, que reiterou ã respeito do capital estrangeiro, rechaçando qualquer expropriação e pedindo novas inversões na França (proprietária de Total e Aguas del Illimani) e a Espanha (proprietária da REPSOL, SABSA e de outras empresas na Bolívia), que enviou ao Príncipe de Astúrias como um forte gesto de apoio do Estado imperialista espanhol.
Seus “amigos internacionais” combinam “amistosas” pressões com promessas de ajuda, vendo na mudança de governo na Bolívia uma oportunidade de ampliar sua presença a custo da influencia norte-americana. Lula y Kirchner, por sua parte, contam com que Evo Morales contenha esse foco vizinho de instabilidade e convulsões revolucionárias que é a Bolívia e como advogados da Petrobrás e da REPSOL, esperam fazer maiores negócios com seu gás. Quanto aos Estados Unidos, enviou ao Subsecretario de Estado, Thomas Shannon ã La Paz em um gesto de diálogo.
Qual posição política frente ao governo de Evo?
Ainda que se apresente como um “governo popular” apoiado pelos movimentos sociais, o governo de Evo Morales e do MAS não representa os verdadeiros interesses dos trabalhadores, dos camponeses pobres, dos indígenas oprimidos. Enquanto seu programa é impotente para responder ás necessidades e demandas dos trabalhadores e camponeses e resolver as tarefas democráticas e nacionais (reforma agrária, ruptura com o imperialismo), deixa intactos e protege a propriedade e o poder econômico do grande capital nacional e estrangeiro, sob os quais se sustentam as forças da reação e do imperialismo.
Por tudo isso, longe de brindar ao governo qualquer tipo de confiança ou apoio político, nem de aceitar a desmobilização e a “paz social”, é preciso manter plena independência das organizações sindicais e de massas governistas, sem confiar em suas promessas e mornas medidas, e sim somente nas próprias forças, organizações e métodos de luta.
As demandas legítimas dos trabalhadores e do povo, como a efetiva nacionalização do gás, a terra e o território, o trabalho e o salário, são impostergáveis. Não podemos descartar que, frente a eventuais resistências de setores imperialistas ou da direita nativa, o governo se veja obrigado a tomar alguma medida de enfrentamento real com esses setores. Caso isso aconteça, e se não mudarmos nossa caracterização de conjunto, chamaremos os trabalhadores e camponeses a apoiar essas medidas com seus próprios métodos.
No entanto, pela atuação de Evo e do MAS em todos os grandes levantes dos últimos anos e pela política conciliadora expressada naqueles dias, para impor as justas aspirações das massas exploradas será necessário fortalecer a organização e a democracia operária no interior dos sindicatos, e avançar em direção ao controle dos trabalhadores nas grandes empresas capitalizadas e na industria petroleira. Será preciso colocar de pé comitês e outros organismos de frente única das massas, para unir forças a partir da luta pelas reivindicações mais sentidas e para derrotar ã reação burguesa e imperialista nos futuros combates (retomando experiências como a da Coordenadora de Cochabamba em 2000 ou o debate sobre a Assembléia Popular em junho, no caminho de desenvolver organismos de poder operário e popular).
O movimento operário
A classe trabalhadora boliviana vem sofrendo vários anos de refluxo e de dura exploração, mas nos últimos tempos está mostrando alentadores sintomas de recuperação. Entre muitos trabalhadores existe um sentimento de que “agora teremos melhores condições para nos organizarmos e reivindicar”, é possível que o movimento operário dê novos passos em sua reorganização sindical e na luta por suas demandas. A COB e as organizações sindicais devem impulsionar uma grande campanha nacional pela sindicalização e as demandas operárias, desde a derrogação imediata do DS 21060 e sue nefasto Art. 55. de “livre contratação” e precarização do trabalho, a jornada de 8 horas e o aumento salarial.
Mas o movimento operário deve unir suas reivindicações a uma resposta de classe aos grandes problemas nacionais, se preparando assim, com sua força social, seu programa e seus métodos de luta, para dirigir a aliança operária, camponesa e popular necessária para acabar com a dominação imperialista e as classes dominantes nativas: expulsão das transnacionais, reversão das empresas capitalizadas, revolução agrária, liquidação de toda forma de opressão racista, assembléia constituinte etc.
Por uma política operária independente
Frente ao reformismo do MAS não são alternativas as políticas dos “movimentos radicais”, como a direção da COB, FEJUVE ou COR alteña, que ainda que tenham um discurso mais combativo, dão apoio mais ou menos crítico ao novo governo pois compartilham da estratégia frente-populista de colaboração de classes e não se propõe a desenvolver a mobilização e a auto-organização independente das massas.
A vanguarda operária deverá tomar em suas mãos a tarefa de construir uma alternativa de classe, para que a classe trabalhadora tenha peso [pese] na vida política nacional com sua própria voz, recolocando a luta por uma expressão política independente dos trabalhadores. Ainda que existam muitas expectativas e ilusões, tampouco há confiança cega em Evo: como dizia um trabalhador “é um governo popular, mas não é um governo dos trabalhadores”. Esse sentimento crítico entre alguns setores avançados pode facilitar a experiência política com o novo governo e o reagrupamento da vanguarda em uma esquerda operária, socialista e revolucionária, questão crucial nessa nova etapa do processo político boliviano, pois sem construir um novo partido revolucionário com influência de massas será impossível derrotar definitivamente aos exploradores e ao imperialismo.
La Paz, 21 de janeiro de 2006