A crise social e as eleições nos Estados Unidos
Um sombrio pano de fundo
11/11/2008
Nestas eleições presidenciais as porcentagens dos candidatos não são os únicos números a se levar em conta. As cifras da enorme crise saltam aos olhos. Desemprego, pobreza, desaceleração da economia, e queda das vendas, entre outros, completam o complicado cenário político ao final dos oitos anos de governo republicano.
Dias atrás se tornaram públicas as cifras que tornam cada vez mais evidente a enorme crise social no coração dos Estados Unidos. O último informe do desemprego só confirma a realidade que a classe trabalhadora norte-americana vem sofrendo: 6,1% estão desempregados, e a cifra sobre para 11,9% se considera-se os sub-empregados (a porcentagem mais alta nos últimos 14 anos). Já existem mais de 10 milhões de desempregados, cerca de 25% a mais que no início do ano (40% a mais que em março de 2007). E são um total de 17 milhões se são levados em consideração os que estão “desanimados” e não buscam trabalho ou trabalham meio-período (por que não encontram trabalho de tempo integral). O panorama não é alentador: estima-se que para cada posto de trabalho que se cria, há quase 3 novos desempregados (cifras do Economic Policy Institute e do censo oficial). Os prognósticos apontam que o desemprego neste ano chegará a 7% segundo os cálculos mais “otimistas” e 9% segundo os mais pessimistas.
Já ninguém mais hesita em falar de recessão, e não é para menos: os últimos dados demonstram que a economia se contraiu cerca de 0,3% no semestre passado, o consumo - que representa 2/3 da atividade econômica do país - caiu 3,1% (anúncio do Departamento de Comércio dos EUA). O desemprego se soma ao endividamento masivo das famílias trabalhadoras, as mais golpeadas pela crise do mercado hipotecário. A metade do ano cerca de 1 em cada 416 dos lares havia recebido uma notificação de execução hipotecária, em setembro 265.968 hipotecas foram executadas ( e se calcula que 2 milhões de moradias compradas com crédito subprime terão a mesma sorte). O resultado, além das enormes perdas econômicas, se traduz na aterrorizante imagem das “cidades-acampamento” que se acumulam ao redor das grandes cidades, como Los Angeles e San Francisco.
E ainda que, todavia, se trate de um fenômeno restrito, já são a marca registrada da decadência social que se vive no interior do país mais rico do mundo, junto com o aumento de vales-refeição ( a quantidade de pessoas que dependem deste tipo de ajuda estatal subiu para 28 milhões de pessoas). Cada vez são mais os que não podem pagar as cotas que representam em muitos casos mais da metade de suas rendas. O salário real médio caiu cerca de 1,6% durante o último ano, em conseqüência do estancamento salarial, do aumento de preços e do endividamento. A realidade não é melhor para aqueles que já não trabalham, já que a crise financeira representou uma perda de 2 bilhões de dólares em aposentadorias (que como no regime da AFJP em nosso país cotizavam na bolsa).
As principias automotrizes, o coração - doente - da indústria, anunciaram importantes quedas em suas vendas. Chrysler, Ford e General Motors declararam que suas vendas caíram cerca de 35%, 30% e 45% respectivamente. As “Três Grandes”, como são conhecidas essas empresas, fizeram um pedido de auxílio (apoiado por 6 governadores, encabeçados pelo do Michigan - lar das fábricas) para que o governo as resgate tal como fez com os bancos. Inclusive, Chrysler e General Motors estão negociando uma fusão para evitar a bancarrota que, em caso de se concretizar, poderia significar a demissão de ao menos 50.000 trabalhadores já que a patronal diz não poder costear os gastos de mão-de-obra.
O impacto da crise é uma ferida profunda no já castigado bolso dos trabalhadores e dos setores médios empobrecidos: antes da crise mais de 51 milhões viviam na pobreza, 50 milhões não tinham assistência médica, e 35 milhões passavam fome.
A diferença entre as empresas e os trabalhadores e setores populares é que as primeiras recebem a ajuda do governo (que desembolsa o dinheiro arrecadado dos impostos pagos pelo povo trabalhador) e os segundos são abandonados ã sua própria sorte.
Polarização social
A incerteza econômica alimentou o descontentamento popular com o governo de Bush e as cicatrizes mais escabrosas deixadas por seu legado. Isso terminou se expressando no dia 04 de novembro no amplo triunfo de Barack Obama (ampliando o rechaço que significou o triunfo dos democratas nas eleições parlamentares de 2006). As imagens das pessoas esperando o discurso de Obama são a mostra das enormes expectativas que o futuro governo democrata gera, canalizando o descontentamento.
Mas apesar deste amplo processo, se expressaram também importantes setores reacionários que na falta de uma melhor alternativa se alinharam detrás da fórmula republicana de McCain-Palin. Estes setores, a quem Bush deve sua reeleição em 2004, representam as tendências mais conservadoras que existem dentro da sociedade, e se expressaram ao redor de temas sociais relevantes nos EUA, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o direito das mulheres ao aborto, o estudo de células tronco e outros. Estes setores representaram os 46% do “voto popular” em favor de McCain.
Estes setores são também os que, amparados na propaganda anti-imigrante e anti-latinos dos últimos anos, buscam a deportação massiva ou a perseguição de trabalhadores imigrantes sem documentos para “limpar” os EUA e salvaguardar os autênticos “valores americanos”. Cabe recordar que o debate sobre a reforma migratória de 2006 que motorizou a inédita mobilização de trabalhadores imigrantes de 1 de maio deste ano reavivou também as tendências racistas no interior da sociedade norte-americana.
Prova disso é a hostilidade com a comunidade latina e negra, e pior ainda o aumento dos crimes motivados pelo ódio racial. Durante os 8 anos de governo republicano, as organizações neo-nazis, racistas e antiimigrantes cresceram de 600 a quase 900. Durante o segundo governo de Bush, só os crimes racistas contra os latinos cresceram 40% (de 425 em 2003, a quase 600 em 2007, segundo Soulthern Poverty Law Center).
Mas este não é mais que uma expressão extremamente reacionária da perseguição e hostilidade em nível estatal que os latinos em geral e os imigrantes em particular sofrem cotidianamente. Só em 2007, 35000 pessoas foram presas (o dobro que em 2006) nas temidas delegacias da polícia imigratória (ICE) que faz incursões nos locais de trabalho, bairros e até nas escolas para deter meninos e meninas. Cada busca pode terminar com 300 até 1200 detidos, uma parte importante dos quais são deportados, obrigados a abandonar familiares e amigos.
Em um nível mais profundo, o que está se explicitando nestes últimos anos é uma grande polarização social, que a crise econômica não fará mais que aprofundar. E neste sentudi as conseqüências da crise com as quais o governo de Obama terá que lidar se mesclarão tanto com as expectativas, como com a resistência dos setores mais conservadores.
Esta crise pode motorizar a mobilização e a luta dos trabalhadores, mas ao mesmo tempo pode alentar tendências reacionárias dos setores que foram a base social dos anos neoliberais, que resistirão ã queda em seu padrão de vida. Já começamos a ver aqueles que acusam Obama de querer “redistribuir a riqueza” (ante o anúncio de um suposto plano para alívio impositivo dos setores empobrecidos) e “roubar dos ricos para dar aos pobres”. Esta resistência que se expressa de forma política e como reação cultural adquiria formas mais extremas do que as que hoje conhecemos.
A única força capaz de enfrentar a barbárie e a degradação que o capitalismo prepara é a classe social mais poderosa, os mais de 150 milhões de trabalhadores e trabalhadoras. Neste caminho, a classe operária dos EUA terá não só que se libertar da enorme trava da burocracia sindical pró-patronal, e ainda unir-se aos setores mais explorados, mulheres, jovens, latinos e afro-americanos, e ao conjunto de oprimidos e explorados dentro e fora dos EUA, cuja mobilização fortalece a sua luta.