Bálcãs
A "independência" de Kosovo e o jogo das grandes potências.
10/03/2008
A declaração unilateral de independência de Kosovo, proclamada pelo parlamento e pelo governo do ministro Hashim Thaci (fundador do ELK, hoje transformado em Partido Democrático do Kosovo), no último 17 de fevereiro, longe de realizar as aspirações da população albanesa kosovar, tem sido uma ação coordenada com os Estados Unidos e a maioria das potências da União Européia - França, Alemanha e Inglaterra -, cujo resultado não pode ser outro que uma independência fictícia deste pequeno estado, que continuará sob supervisão internacional e com uma soberania nacional praticamente inexistente. Isso se soma aos esmagadores índices de pobreza, desemprego e decomposição de sua elite governante, que o faz completamente dependente da ajuda internacional.
Os Estados Unidos e seus aliados utilizam a fictícia independência kosovar para pôr limites na Rússia como ator de peso geopolítico a nível regional, com a intenção estratégica de debilitar sua capacidade de manobra e incorporá-la num papel subordinado na ordem mundial. O que hoje está sendo celebrado como o nascimento de um novo estado não é outra coisa senão o estabelecimento de outro semi-protetorado europeu e ianque nos Bálcãs.
A promoção por parte dos EUA e seus aliados europeus da independência de Kosovo não tem nada a ver com o respeito ao direito de autodeterminação nem com um ressarcimento diante da opressão sofrida pelos albano-kosovares pelo outrora homem forte dos Bálcãs, Slodoban Milosevic. Pelo contrário, é uma tentativa deliberada destas potências imperialistas de aumentar a pressão sobre a Rússia. O apoio de países como a Alemanha ou a França, tradicionalmente mais atentos ás reclamações do Kremlin, a esta decisão norteamericana deram um duro golpe na diplomacia russa.
Por sua vez, os argumentos de Rússia, Sérvia, China, Estado Espanhol e outros países que se opuseram a esta “independência”, são também reacionários, baseados na negação ao direito a autodeterminação nacional das minorias nacionais oprimidas. Rússia e Sérvia argumentam que a “independência” foi resolvida sem a aprovação do Conselho de Segurança da ONU e violando as resoluções sancionadas pela ONU que deram fim ã guerra da OTAN contra Sérvia em 1999. Efetivamente, a resolução 1244 de 10 de junho de 1999 ordenava a retirada das forças da ex-Iugoslávia e a transferência do controle de Kosovo para o Conselho de Segurança da ONU - do qual a Rússia é membro permanente - e a sua missão militar, a KFOR. Dita resolução não fazia menção ã independência e estava baseada no princípio geral de “facilitar um processo político destinado a determinar o futuro status de Kosovo” e uma “solução política para a crise de Kosovo”. Seu preâmbulo se referia especificamente ã “integridade territorial” da Iugoslávia e o artigo 10 autorizava somente “uma autonomia substancial dentro da República Federal da Iugoslávia”. Ou seja, um acordo completamente reacionário no qual a “autonomia” de Kosovo consistia em transformar-se em um protetorado da OTAN, uma vez que condicionava seu direito de independência a um acordo com seus opressores. Por sua vez, esta presença permanente de tropas imperialistas na região significava uma pressão permanente para forçar a Sérvia a alinhar-se com a UE. No entanto, desde a queda de Milosevic em 2000, na qual o financiamento e os contatos da embaixada dos EUA desempenharam um papel de primeira ordem em sua instrumentação, desde a presidência de Bush o imperialismo estadounidense vem impulsionando a política de uma declaração de independência formal que coloque Kosovo como um protetorado sob sua influência. Em junho passado, quando Bush visitou a Albânia e foi aclamado como um herói, se comprometeu a dar uma rápida solução a esta questão nos meses seguintes do que restava de sua presidência. A decisão dos EUA e seus aliados de implementar sem o aval do Conselho de Segurança o plano de “independência” que havia sido desenhado pelo emissário da ONU ã região, o ex-presidente finlandês, Martti Ahtissari, pode ter conseqüências inesperadas. Ainda que digam que Kosovo constitui um “caso excepcional” e “não constitui um precedente”, o certo é que tem sido colocado em questão um princípio que foi central para o status quo europeu: que as potências externas não podem redefinir as fronteiras e que os movimentos secessionistas não podem criar novas nações unilateralmente. Portanto, a criação deste precedente pode ter enormes conseqüências e repercussões na Europa e mais além dela mesma. Enquanto EUA, posando de “defensor da independência kosovar” (como fez em seu momento no Iraque com os Curdos e Xiitas), tratará de utilizar este feito para ganhar apoio entre minorias nacionais de países com os quais possa ter rivalidade, todos os estados com problemas “nacionais” temem serem afetados por esse cenário. Daí a hostilidade não somente da Rússia, que vê sua influência nos Bálcãs se debilitar, mas também da China, que teme que seja utilizada como bandeira para fomentar processos similares independentistas ou separatistas em Taiwan, Tibet ou na província de maioria muçulmana de Xinjiang. Na Europa, apesar do apoio das principais potencias ã proclamação de independência de Kosovo, esta decisão não tem conseguido um apoio unânime voltando a dividir a UE. Em particular se opõe uma série de países encabeçados pelo imperialismo do Estado Espanhol, que teme que isso aprofunde o nacionalismo Basco e Catalào, ou estados como Eslováquia e Romênia que têm importantes comunidades de húngaros concentradas em determinadas áreas; sem falar em Chipre, apoiado pela Grécia, cuja região turca - hoje sob um governo separado - poderia proclamar formalmente sua independência.
Um forte desafio dos EUA e da UE contra a Rússia
A declaração de independência de Kosovo e seu reconhecimento internacional colocam um desafio fundamental a Moscou. É que se o presidente russo, Vladimir Putin, aceita este retrocesso sem uma resposta significativa, põe em risco oito anos de consolidação de seu poder e leva a debilitar severamente a influencia russa em sua periferia. Não nos esqueçamos que o ascenso de Putin em 1999, depois da humilhante capitulação russa na Guerra dos Bálcãs frente ã OTAN, foi uma expressão de cansaço de importantes setores do establishment de segurança nacional frente ás oscilações e ã debilidade de administração de Boris Yeltsin diante do constante avanço do poder ocidental. Durante anos na presidência, mediante uma política bonapartista e apoiando-se no esmagamento dos chechenos (com o consentimento das potências imperialistas a todo tipo de crimes), Putin tem restaurado o poder do estado e construiu uma imagem interna de “líder poderoso” com a qual tem tratado de convencer os russos, e os habitantes dos estados vizinhos, que o ressurgir da Rússia como potência era inevitável.
Mas se Putin retrocede em Kosovo, isso pode debilitar sua autoridade dentro da Rússia. Tenhamos em conta que a fonte de poder dentro de seu círculo interno está baseada mais no temor pelas conseqüências do descenso que em suas capacidades. Já Igor Sechin, um dos dois homens mais próximos de seu entorno, tem sido relegado frente a Dmitri Medveded, o chefe da empresa de gás mais importante do mundo, Gazprom, como na opção de Putin para sucedê-lo ã presidência.
A fração de Sechin está composta fundamentalmente pelos chamados siloviki - membros do pessoal de inteligência e do aparato de segurança - nos quais se apoiou fundamentalmente Putin no começo de sua ascensão ao poder. Seu domínio poderia se ver ameaçado se a debilidade exposta pela seção de Kosovo se combina com as já intensas lutas internas de clàs no Kremlin. Porém mais grave para os interesses do nascente estado capitalista russo é que os aliados do Kremlin poderiam ver a incapacidade de Moscou em defender a Sérvia como uma mostra de debilidade internacional da Rússia. Para eles, a Rússia haveria abandonado a Sérvia duas vezes: uma na guerra de 1999; outra, agora. A OTAN e a União Européia tem absorvido - ou pelo menos determinado o futuro de - toda Europa Central, os países bálticos e os Bálcãs. Caso mude a percepção do ressurgir do poder russo, muitos poderiam buscar um novo lugar com a OTAN ou a EU. Os efeitos de tal perspectiva se sentiriam especialmente na periferia russa, onde Moscou esteve tratando de recuperar parte do terreno perdido com a débâcle da ex-URSS. Em particular, isso teria especial impacto na Ucrânia, onde a influencia das potências imperialistas ocidentais já está começando a tomar a forma de um acordo de livre comércio com a EU, como demonstra o início de negociações neste sentido desde 18 de fevereiro.
Por sua vez, a percepção da degradação da influência da Rússia pode influir uma renovação das tentativas de outros estados de desestabilizar a periferia russa. A OTAN e a EU poderiam redobrar seus esforços na Ucrânia, Bieolorussia, Moldavia e no Cáucaso, assim como estados claramente hostis hoje ã Rússia como a Polônia, Romênia ou os países bálticos que tratariam de socavar a influência russa sobre suas fronteiras. Neste sentido, a decisão de Geórgia e Ucrânia de deixar de falar de sua eventual incorporação na OTAN, depois de veladas ameaças ã primeira - um eventual apoio russo ã independência de Abjazia -, e os termos finalmente generosos do acordo gasífero com Kiev com relação ã segunda, parecem uma primeira resposta preventiva do Kremlin a esta possibilidade dinâmica.
Fora as tropas e bases imperialistas! Abaixo ã ingerência neocolonialista dos EUA e da UE! Por uma Federação voluntária de Repúblicas Socialista nos Bálcãs!
A independência de Kosovo é fictícia que inclui a supervisão internacional, um limite a suas forças armadas e a proibição de se unirem a outros estados como a Albânia. Na realidade a independência é a cobertura “legal” de um protetorado estabelecido pelas potencias ocidentais. Isso o revela a presença de 2000 policiais, juizes, carcereiros e oficiais de alfândega enviados pela UE que vão fundamentalmente administrar a província com o apoio de 1000 funcionários locais. Por sua vez, esta missão, chamada Eulex e que vai ser dirigida pelo general francês, Yves de Kermabon (que tem vários anos de intervenções militares na África e nos Bálcãs), vai ser apoiada por cerca de 16000 soldados da OTAN que já estão em Kosovo. Os EUA têm instalado em sua zona de ocupação a imensa base militar de Camp Bondsteel, uma verdadeira fortaleza armada de onde controlam todo o Bálcãs. Entretanto, o protetorado kosovar não é outra coisa senão um novo passo na semicolonização dos Bálcãs por parte das potências imperialistas, em particular da UE. A ultima peça desta recolonização imperialista seria a própria integração de Sérvia ã UE. Este estado se encontra hoje dividido entre dois setores, ambos opostos ã independência de Kosovo: por um lado, os que se opõe a esta proclamação, mas não querem abrir uma brecha com a UE sobre este tema e os que vêem a UE e os EUA como uma ameaça fundamental ã soberania sérvia. A sociedade sérvia se encontra polarizada entre ambas posições.
O destino trágico dos Balcãs, depois das guerras que o carcomeram durante os ano 1990 e hoje com grande parte do território sob a ocupação das forças militares imperialistas, demonstra que o direito a auto-determinação nacional na época imperialista só pode ser levado até o final pelo proletariado.
A políticas do FMI na Iugoslávia levaram, nos anos 1980 a uma dívida externa de mais de 20 milhões de dólares. A burocracia restauracionista criou mecanismos de confisco e empobrecimento das massas para cumprir os compromissos externos. A resistência operária (no ano 1988 a classe operária iugoslava chegou a realizar 2000 greves contra o governo) foi desviada pela burocracia com o recurso nacionalista chauvinista. Já em 1987 Milosevic, apenas havia chegado ao governo da Federação Iugoslava, começou a atacar a autonomia de Kosovo. Em 1989, novamente o povo de Kosovo se levantou contra o chauvinismo grão-servio sustentado por Milosevic, em uma verdadeira insurreição que contou com um forte protagonismo dos operários mineiros. Por trás de sua derrota, Milosevic anulou a autonomia que tinha a província e começou um instigamento maior contra seu povo, alimentando o ódio chauvinista em seu próprio país. Entre os kosovares foram se desenvolvendo crescentemente sentimentos independentistas a partir da sabotagem permanente de seus direitos nacionais e a conclusão de que estes não seriam conquistados enquanto fosse parte de Sérvia. Mais em geral, a emergência da “questão nacional” nos Bálcãs nos começos dos ’90 foi uma expressão “labiríntica” (Trotsky) que tomou a luta de classes frente ã política restauracionista da burocracia. Muitos dos eventos da luta de classes na Iugoslávia foram ao mesmo tempo ou se viram confundidos em um mesmo movimento com as reivindicações e demandas nacionais. Enquanto as massas iugoslavas, sem distinção de nacionalidade, enfrentaram até fins dos anos 1980 os lpanos “fundo-monetaristas” implementados pelo governo federal e as repúblicas, a política restauracionista impulsionada desde o governo central, controlado por Sérvia, favoreceu por sua vez que os governantes das repúblicas mais fortes economicamente, como Eslovênia e Croácia, buscassem orientar-se por si mesmas até o mercado capitalista europeu, alimentando a separação. Estes movimentos internos foram, além disso, agravados pela intervenção direta das potências imperialistas. Logo no começo, a Alemanha trabalhou explicitamente pela divisão da ex-Iugoslávia e pela incorporação da Eslovênia e Croácia, as duas repúblicas mais desenvolvidas da ex-Federação Iugoslava, em sua área de influência. Os governantes croatas recorreram à limpeza étnica durante a guerra contra os sérvios, assim como o fez Milosevic com eles. Depois, veio a guerra da Bósnia, onde a agressão Sérvia - na qual os sérvio-bosnios e o exército sérvio cometeram aberrantes crimes de guerra -, e também da Croácia, terminaram com o caráter multi-étnico de república e com sua divisão pós linhas étnicas nos reacionários acordos de Dayton em 1995, que incluiu a presença de tropas imperialistas sob a cobertura da ONU. Nestes acordos o imperialismo legitimou a participação segundo linhas étnicas da Bósnia pelas burocracias grão-sérvia e grão-croata, sobre a base da derrota do movimento nacional bósnio, que por defender seu caráter multi-étnico, constituía o único movimento nacional progressivo, pra além do caráter pró-imperialista da direção muçulmana de Izetvegovic, alimentada pelos EUA. Dayton, por sua vez, significou o reconhecimento explícito do pertencer de Kosovo ã Sérvia. O fracasso da autonomia negociada dirigida por Ibrahim Rugova, pôs em questão os próprios acordos de Dayton dando origem ã formação do Exército de Libertação de Kosovo (ELK), uma guerrilha com uma direção nacionalista que no final dos anos 1990 ganhou um crescente apoio. Mas depois do fracasso das negociações em Rambouillet, o ELK se transformou em um pilar da agressão imperialista que lançou a OTAN contra a Sérvia (que se negava a aceitar a presença de 30.000 soldados da OTAN em Kosovo). A guerra significou um salto qualitativo na neocolonização dos Bálcãs e fundamentalmente serviu para reafirmar a influência da OTAN, encabeçado pelos EUA em todo o leste e centro da Europa. Os EUA, França e Inglaterra, que no princípio sustentaram a unidade da Federação Iugoslava - contra o imperialismo alemão - como o melhor veículo de processo de restauração capitalista ordenada, foram progressivamente abandonando esse plano frente ã política de Milosevic de construir em um estado federal, mas apenas uma “Grande Sérvia”, e frente a desestabilização que isso provocava. A guerra aérea de 1999 da OTAN contra a Sérvia foi a máxima expressão desta política. Hoje toda a região dos Bálcãs se converteu em uma semicolônia da UE, ou caminham para isso. Pior ainda, Kosovo ou Bósnia são semiprotetorados diretos das potências imperialistas. Alguns kosovares, cansados de anos de opressão pela Sérvia agradecem hoje este novo status de vassalagem imperial. No domingo, 17 de fevereiro centenas de bandeiras norte-americanas rodeavam as ruas de Prístina, capital de Kosovo, como reconhecimento do papel de superioridade dos EUA na campanha de bombardeio aéreo de 1999 e posteriormente no processo para a proclamação da independência fictícia. Mas a esperança de que Kosovo resolva seus problemas de pobreza, atraso e corrupção endêmica nas mãos dos EUA e das potências imperialistas opressoras da UE antes ou depois levará a maior das desilusões, se antes a situação não se agrava com novas limpezas étnicas ou guerras internas. O caminho duro e longo ã verdadeira independência só pode passar pela retirada das tropas imperialistas e pelo fim de toda ingerência neocolonialista da UE e dos EUA. Por isso, os marxistas revolucionários da FT-CI, que na guerra de 1999 quando se enfrentou a agressão imperialista ã Sérvia defendemos o direito do povo albano kosovar na sua autodeterminação nacional, dissemos como isto não virá da mão do imperialismo. Enquanto seguimos defendendo o direito kosovar a ter seu próprio estado, dizemos com clareza que hoje a tarefa fundamental é a expulsão do imperialismo da região e que só uma Federação voluntária de Repúblicas Socialistas dos Bálcãs, onde se respeite verdadeiramente o direito de cada povo a sua própria autodeterminação, pode terminar com a fragmentação atual. A classe trabalhadora de cada estado deve enfrentar a dominação imperialista e seus governantes locais tendo como norte esta perspectiva.
Traduzido por: Felipe Lomonaco