Kirchner deixou uma crise política
Aonde vai o governo de Cristina?
28/10/2010
Detrás das cínicas condolências de seus mais decididos opositores, e inclusive de dirigentes do espectro do próprio peronismo “amigo”, estão em curso as encarniçadas disputas pelo poder. Para além da presente comoção e aparente “unidade nacional”, a súbita morte de Néstor Kirchner abriu uma crise política que prepara maiores enfrentamentos e polarização entre os bandos capitalistas que disputam a cena nacional argentina. De um lado, a burocracia sindical da CGT que vem de receber o repúdio popular pelo assassinato de Mariano Ferreyra, se postula para seguir sendo o principal sustentador do governo de Cristina Kirchner, buscando em troca disso, impunidade sob seu amparo. Do outro, o setor opositor que no recente colóquio da IDEA havia reunido o establishment burguês debatendo uma saída ao que eles mesmos denominaram um “fim de ciclo”, pressionará para condicionar o governo com suas demandas orientadas pelos empresários da soja e dos grandes industriais.
Apenas algumas horas depois da morte de Kirchner no jornal La Nación o analista Rosendo Fraga escreveu como porta-voz do establishment uma espécie de ultimato ao governo que se encontrava em choque. Basicamente exigindo a separação da presidenta de Moyano, que na realidade significa sob este nome, a exigência de ruptura com os sindicatos e o fim de toda concessão ao movimento operário, mesmo aos setores formais e sindicalizados. Já vínhamos vendo como a decomposição desta aliança de governo provocada pelo assassinato em Avellaneda, tentavam ser aproveitados pelos patrões e pelos meios opositores para minar as organizações sindicais, sem distinção e não só aos burocratas sindicais. Não pode haver confusão: a direita patronal e seus porta-vozes midiáticos atacam os sindicatos enquanto representam, ainda que de maneira distorcida, interesses operários. Os revolucionários lutamos para recuperar os sindicatos como ferramentas de luta de classes e não fazemos coro com o Grupo Clarín que utiliza a terceirização de massas de empregados e proíbem a organização de comissões internas em suas empresas.
Agora com a morte de Néstor Kirchner a oposição patronal pressiona para que, em sua debilidade, Cristina venha a consenso “rodeando-a de apoio” para lhe impor uma agenda comum parlamentar com o peronismo federal e a UCR. Uma primeira resposta gestual parece descartar esta variante de “unidade nacional”. A proposta de Cobos de por em marcha os preparativos para velar no Congresso os restos do ex-presidente, foi respondida com a decisão oficial de fazê-lo, pelo contrário, na Casa Rosada. Uma disputa do “lugar do poder” que simboliza a polarização que vem.
Não parece provável que se concretize o cenário que a classe dominante pretende, que desejaria uma abdicação da Cristina em favor de uma candidatura presidencial de Scioli, e detrás alinhar o peronismo federal para disputar com a fórmula radical-socialista republicana de Alfonsín e Binner; isto é, entre duas fórmulas plenamente confiáveis nas eleições de 2001.
Sendo assim, poderia Cristina dar continuidade ao projeto “kirchnerista sem Kirchner”?
A profundidade da crise política se deve, em primeiro lugar, ao vazio que deixa o homem chave – que continuando a desvalorização monetária de Duhalde que fez a “tarefa suja” – veio a comandar o “partido da contenção” frente ã irrupção de massas desatada nas jornadas revolucionárias de dezembro de 2001. Kirchner foi o armador, mais que de um partido K, de uma coalizão instável de governo, um líder que arbitrava entre a “governabilidade” que outorga o aparato do PJ, os governadores, prefeitos e os velhos dirigentes da CGT, e os organismos dos direitos humanos, artistas e intelectuais que lhe somavam a atração de setores de centro-esquerda. Ainda que a perda do líder desta coalizão os volte a mostrar unidos, esta ordem tende a explodir com o recente assassinato das gangues comandadas pela União Ferroviária. De fundo, se demonstra como uma hipocrisia a idéia que Cristina Kirchner havia transmitido ã juventude kirchnerista no ato de Luna Park (estádio na Argentina) sobre a possibilidade de uma convivência “democrática” entre direita e esquerda peronista que reparara o enfrentamento dos anos 70. Pelo brutal crime desta direita peronista contra um militante trotskista, e pelas promíscuas fotos em festas comuns entre os ministros e porta-vozes da centro-esquerda K com os membros da gangue da burocracia sindical. A tentativa oficial de remendar esta aliança em crise, utilizando politicamente a morte de Néstro Kirchner ante a que todos voltam a se unir para “aprofundar o modelo” e seguir seu “legado” detrás de Cristina, não pode se não estiver baseada em um pacto de impunidade para os autores, sobretudo intelectuais, da emboscada e do assassinato de Mariano Ferreyra.
O governo Cristina Kirchner se mostra débil apesar da presidenta ficar como a sucessora “natural” e, de certa forma, beneficiada pela imagem, favorecida após a morte de Néstor Kirchner. Sobre a base da candidatura de Cristina em 2011 a saída do kirchnerismo para “salvar o modelo” parece estar em mãos dos governadores e prefeitos peronistas, o outro poder real que vinha apagado. A última má notícia para o ex-presidente foi a decisão do governador oficialista Urtubey de Salta de adiantar a derrota em seu próprio terreno. Mesmo assim, as tensões que vem se expressando entre os Kirchner, o governador Scioli e Moyano como chefe do Partido Justicialista de Buenos Aires, cada um com sua própria política dentro da aliança oficialista, acabam de ter novos capítulos. No dia anterior ã morte do ex-presidente Moyano não pode obter quórum no Conselho Justicialista de Buenos Aires que preside, devido ao esvaziamento da reunião que lhe fizeram os prefeitos da região metropolitana e os próprios homens de Néstor Kirchner. A morte de quem arbirava, sem muito êxito, entre as distintas frações em disputa, irá impor uma renegociação entre eles.
A “continuidade do projeto” que muitos jurarão ante o caixão do ex-presidente, ainda que se expresse detrás da tentativa de reeleição de Cristina, está agora dominada por um peso qualitativamente maior dos governadores “feudais” do interior e dos prefeitos direitistas, isto é, mais condicionada pela vontade do velho aparato do PJ.
Como dissemos na declaração que publicamos horas após a morte de Kirchner todas as alternativas apresentadas para fechar a crise política dos de cima são contrárias aos interesses dos trabalhadores que devem organizar sua própria saída independente de todos os bandos capitalistas.