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Podemos: ser ou não ser de ‘esquerdas’

25/09/2014

Podemos: ser ou não ser de ‘esquerdas’

Ken Loach, porta-voz do partido Left Unity (“Unidade da esquerda”), aproveitou a reunião para fazer uma proposta ao Podemos de “trabalhar em comum”. Porém, foi amavelmente rechaçada por Errijón, dizendo que “Podemos não é uma coalizão de grupos de esquerdas e, se me apertam, tampouco é um partido de esquerdas”.

A afirmação “apressada” de Errejón, que mereceu o título da crônica escrita por Alejandra Ríos para Izquierda Diario, de Londres, suscitou acalorados debates no Twitter. Entretanto, esta definição não é nova.

Infinitas vezes os principais líderes de Podemos (como Pablo Iglesias, Juan Carlos Monedero ou o próprio Errejón) afirmaram publicamente que “Podemos não é de esquerdas nem de direitas”. Um axioma que contrasta com a sensibilidade um amplo setor de trabalhadores, jovens, ativistas políticos e sociais que se reconhecem parte de uma tradição de esquerda e encontram seus fundamentos na própria história da luta de classes no Estado espanhol desde a Guerra Civil espanhola até a luta contra o franquismo e os duros anos da chamada Transição democrática.

É certo que grande parte da esquerda tradicional espanhola se encontra em crise. Em particular Izquierda Unida [IU], desprestigiada por sua participação em governos de “austeridade” (como em Andaluzia, com o PSOE), enlaçada ao cordão umbilical da burocracia sindical da CCOO e paralisada pelas lutas internas, para não nos referirmos ao papel do PCE – seu núcleo central – como partícipe principal da gestão do regime de 1978. Mas essa crise da esquerda tradicional não significa que se deve “jogar a criança com a água suja do banho”.

O surgimento de Podemos, sustentado na aguda crise do regime político espanhol e na persistência da indignação social, virou a mesa da política. Sua projeção eleitoral é uma clara mostra disso.

Programaticamente não existem diferenças substanciais entre Podemos e Izquierda Unida. Ambos se propõem o objetivo de “regenerar a democracia” (capitalista), defendem um programa econômico neokeynesiano e se concentram na ação parlamentar acima da mobilização. Ainda que haja diferenças entre eles. Com uma estratégia igualmente moderada, muitos setores da IU mantêm um discurso no qual a classe trabalhadora tem importância e se propõem honestamente uma “perspectiva rupturista”, quando isso sequer aparece no discurso dos líderes de Podemos.

Existem aqueles que dizem que, na verdade, o discurso moderado dos líderes de Podemos seria uma espécie de “jogo de cena” para não espantar novos eleitores diante dos ataques feitos pela direita. Reconheça-se que os representantes do “Tea Party ibérico” atacam descaradamente Podemos com invenções insólitas. No entanto, uma visão tão maquiavélica dos porta-vozes de Podemos mostra-se ao menos ingênua. Sem dúvida Pablo Iglesias e os representantes de Podemos cuidam-se para “não espantar” quaisquer possíveis eleitores seus. Porém, não porque escondam na manga uma alternativa de esquerda. É sua estratégia política.

Estratégias velhas e novas

Para os expoentes de Podemos a necessidade de “recuperar a democracia”, combinando “representação” e “participação” cidadão, caminha ao lado do abandono dos “dogmas da velha esquerda” e das “certezas sobre o mundo do trabalho, os partidos e os sindicatos”. O político se transforma numa esfera absolutamente autônoma das relações sociais de produção existentes, negando toda centralidade da propriedade privada e da exploração do trabalho assalariado. A cidadania se transforma, assim, no “novo sujeito” da política e novo eixo da confrontação política, o antagonismo entre a “casta” e os “cidadãos”.

Apesar da retórica do “novo e do velho”, essas propostas remetem ã “velha” tradição reformista e parlamentarista assentada numa assombrosa ilusão nas possibilidades oferecidas pela democracia liberal. Se existe algo de “jogo de cena” no discurso dos dirigentes de Podemos nada indica que seja para camuflar uma perspectiva de ruptura com o status quo.

Tomemos um exemplo. Pablo Iglesias popularizou a denúncia da “casta política”, uma noção correta para denominar os representantes políticos do poder econômico e financeiro, sua corrupções generalizadas etc. Porém, a casta é expressão política de poderes reais, isto é, o Estado capitalista moderno e as classes exploradoras. Por isso fica estranho que esta denúncia da “casta” seja acompanhada por um louvor aos empresários, como fez Carolina Bescansa, um de seus porta-vozes, quando afirmou recentemente que a maioria dos empresários está “contra a corrupção” e a favor da “recuperação da democracia e da soberania”, já que majoritariamente são “empresários dignos e decentes”.

Longe de apresentar uma perspectiva verdadeiramente democratizadora, enfrentando os poderes reais por trás da casta política, a perspectiva dos líderes de Podemos seria conquistar uma relação de forças que permita conviver e negociar com estes poderes para implementar as reformas que sejam possíveis.

Ainda que não possua experiência de governo, num dos rascunhos de documento político apresentado há pouco pela direção de Podemos para sua primeira Assembleia Cidadã neste outono, reconhece que ser “uma real referência da dicotomia ‘novo/velho’ (...) será incompatível com o menor caso de corrupção e é, até certo ponto, difícil de manter no tempo quando nossa política não seja de construção da vontade de mudança, mas se enrede na gestão, suas necessárias transações e compromissos, num momento de estreitamento da autonomia das instituições subnacionais perante o plano de ajuste”.

Esta surpreendente declaração, ainda que retirada do rascunho, indica, no entanto, uma disposição natural para os “compromissos” com setores das classes dominantes, algo que só levaria a novas frustrações.

Ilusões e mal-estares

A enorme afluência de pessoas que começaram a se organizar no Podemos demonstra que, de certo modo, começou a superar-se o momento inicial da mobilização pós-15M, onde prevaleceu uma “ilusão do social” na possibilidade de “mudar o mundo” sem intervir no terreno político. Entretanto, há o perigo de que este processo resulte numa nova ilusão, a “ilusão política” de que se pode “recuperar a democracia” nos marcos do atual sistema capitalista.

No entanto, Podemos ainda é um processo em desenvolvimento e nem todas as pessoas que participam nele têm as mesmas opiniões que seus principais dirigentes. Sem ir muito longe, os documentos apresentados pela direção de Podemos para o debate interno têm gerado múltiplas reações críticas de distintos setores da militância organizada em círculos temáticos ou territoriais em todo o Estado.

Em particular, o mal-estar das bases de Podemos manifesta-se nas críticas ao documento de princípios básicos de organização, cujo eixo fundamental pode ser resumido na substituição da militância ativa dos Círculos pela “participação cidadã” por internet e a construção de um sistema quase plebiscitário cuja quintessência é a relação entre o líder do partido e as votações por internet de qualquer pessoa que se inscreva como filiada. Ou seja, militando ou não, sendo um trabalhador que foi demitido ou o dono da empresa que o mandou para a rua, seja um integrante das forças repressivas ou uma mulher desempregada que foi despejada de sua casa.

Ser ou não ser

A distinção política entre esquerda e direita tem sentido se está ligada ã delimitação de um sistema de ideias, programas e, especialmente, estratégias. Nesse contexto, há que considerar que no interior da “esquerda” existem diferentes programas e orientações, setores moderados ou reformistas e setores que se consideram revolucionários. Contudo, a fórmula demagógica de que a “dicotomia direita e esquerda” foi superada apenas pode levar milhões de trabalhadores e jovens que veem no Podemos uma possibilidade de intervir na política a não distinguir quem são seus aliados e quem são seus inimigos.

Se fosse possível resumir, o debate de fundo que fundamenta o surgimento de Podemos é se seria possível ou não “recuperar a democracia” mantendo incólume o poder dos capitalistas. Uma verdadeira democracia somente é possível se for uma democracia que supere o capitalismo, que não apenas combine representação e participação, mas que esteja cimentada na auto-organização dos trabalhadores e na aliança com as classes populares, a única alavanca social capaz de fazer, como dizia a canção da Guerra Civil espanhola, que “o jogo vire”.

Ser ou não ser de “esquerdas” é uma questão mais profunda do que as frases feitas que estamos acostumados a ouvir. O debate não é apenas sobre “novas ou velhas formas”, mas sobre qual ideologia, programa e articulação política possibilitarão superar a crise capitalista atual. E, sobretudo, qual força social e quais alianças sociais são necessárias para isso. Porque, para ser realista, reivindicações tais como os cargos públicos devem ganhar o mesmo que um trabalhador e que sejam revogáveis, o não pagamento da dívida externa, a derrubada da reforma trabalhista ou a nacionalização dos bancos somente podem ser impostas se a força dos trabalhadores e das trabalhadoras, mediante sua mobilização, põe em xeque o poder capitalista.

* Para elaborar esta coluna tomei como referência os artigos “De la ‘ilusión social’ a la ‘ilusión política’”, de Josefina Martínez, e “La ilusión gradualista”, que escrevemos conjuntamente. Ambos foram publicados na revista Ideas de Izquierda.

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