FT-CI

Uruguai

Parlamento uruguaio impede prescrição dos crimes da ditadura

02/11/2011

por Sebastian Hesse e Karina Rojas, do Uruguai

No 27 de outubro passado o Parlamento aprovou, unicamente com os votos da governante Frente Ampla, a lei que elimina a prescrição dos crimes da ditadura que venciam em 1° de novembro, os declarando culpados de crime contra a humanidade e restaurando a pretensão punitiva do estado

A Lei oficial: seus aspectos progressivos e seus limites

Esta nova lei tem o ponto progressivo de impedir que os delitos cometidos durante o Terrorismo de Estado prescrevam, já que os considera crimes contra a humanidade. Se ajusta assim aos tratados internacionais ratificados pelo Uruguai (Pacto de San José de Costa Rica). Também lhe dá uma resolução no caso Gelman ajustando-se ã sentença da CIDH contra o estado uruguaio. Contudo, não anula especificamente a Lei de Caducidade, ainda vigente, pois deixa um vazio jurídico que seguramente será usado pelos militares para apelar sua inconstitucionalidade. Ao entrar em vigência as duas leis (a de Caducidade e essa nova) fica a critério de cada juiz (e da Suprema Corte) a decisão em cada caso particular acerca de qual das leis pode ser aplicada. Isso é um problema já que há várias provas de que a Justiça não é “independente” como se diz e que não prioriza a defesa dos direitos humanos (muitas vezes falhou contra), e se aplica todo seu rigor quando se trata dos delitos “contra a propriedade” como as ocupações a empresas e edifícios públicos, como sucedeu durante o conflito dos metalúrgicos.

Já antes de promulgar a lei, o presidente José Mujica adiantou qual era sua verdadeira intenção: lançar a bola pro Poder Judiciário num tema de tanta relevância. "Os problemas jurídicos tem várias bibliotecas" disse e acrescentou: "Alguma decisão terá que haver por parte da Suprema Corte de Justiça e estaremos ao que ela decida" [1]. Enquanto que Lucía Topolansky (do MPP, integrante da Frente Ampla e esposa de Mujica) confessou que está pensando em como sortear a mesma lei que eles votaram, e apresentará um projeto que incluirá o beneficio de prisão domiciliar aos militares com mais de 70 anos [2].

Por sua parte, os dois partidos tradicionais Nacional e Colorado – que historicamente representaram ã burguesia e o imperialismo que chamaram o golpe - e o Partido Independente, questionaram desde uma posição reacionária, a constitucionalidade da nova lei, embora tentassem não ficar como defensores explícitos dos militares. Mas esta postura coincide com os argumentos dos repressores, que já estão ameaçando com empreender juízos contra militantes de esquerda por supostos “crimes” cometidos naquela época. O Chefe do Estado Maior da Defesa José Bonilla descartou qualquer informação sobre os desaparecidos: "Aqueles que sabiam algo, podiam, a partir do 1° de novembro, com a liberdade que dá a prescrição dos delitos, aportar dados importantes… a informação não vai colaborar por medo de ser preso" [3]. Declarações estas carregadas de cinismo porque ratificam, como sempre denunciaram os organismos de direitos humanos e as vítimas, que eles contam com muitíssima informação que em todos esses anos não aportaram, nem antes, quando os defendia a Lei de Caducidade, nem o farão agora.

As primeiras demonstrações pelo fim da impunidade

Poucas horas depois de promulgada a lei se apresentaram múltiplas denuncias contra repressores, algumas das quais terminaram em processamentos (cinco pelo caso Gelman) [4]. Vinte mulheres ex presas políticas apresentaram denuncias por abusos sexuais, torturas e detenções arbitrarias, ou seja, delitos dos que nunca se havia falado. Em Salto houve seis denuncias de militantes do PCU que estiveram presos. Já somam umas 300 as denuncias realizadas. Organizações como a FEUU prestam seu apoio a familiares e ex presos para iniciar processos legais. A Faculdade de Ciências Sociais se manteve ocupada por una semana por este tema. Essas primeiras reações das vítimas, familiares, organizações sociais e de direitos humanos podem ser um importante primeiro passo na luta pela prisão desses assassinos, sabendo que será necessário organizar uma luta mais ampla, coordenar ações e convocar uma mobilização nas ruas que imponha a Justiça e a todos os partidos, incluindo a própria Frente Ampla, o castigo aos repressores.

A Frente Ampla e sua responsabilidade na impunidade

Com esta lei a FA fica posicionada como um dos principais lutadores contra a impunidade, frente a um amplo setor de nossa sociedade, muitos deles jovens, que desde sempre se expressou contra os repressores (especialmente no plebiscito de 2009) e que esperavam algum tipo de ação de parte do partido de governo. Assim, a FA tenta resolver uma demanda histórica estrutural e reconquistar o prestigio perante sua base, depois de haver tido várias tentativas para lavar a cara das forças armadas (recordemos os chamados constantes de Mujica ã reconciliação e ao perdão). Mas desde a saída da ditadura e durante todos esses anos, as forças que compõem a Frente Ampla garantiram a preservação do aparato militar intacto, realizaram pactos como o do Clube Naval (e outros segredos) onde prometeram a impunidade dos militares em troca de uma transição pactuada ã democracia burguesa. Durante todos esses anos a FA se ocupou de evitar a mobilização chamando a confiar em plebiscitos e levar a um nível de desmoralização e passividade familiares, vítimas e organizações sociais. Contudo não puderam sacar-nos totalmente das ruas nem nos fazer baixar as bandeiras do Juízo e Castigo. A luta segue firme e agora temos que prossegui-la.

Novamente: sobre o papel das Forças Armadas

A ditadura cívico-militar uruguaia foi uma ofensiva da classe dominante e do imperialismo, que no marco do Plano Cóndor levaram a cabo a destruição e em alguns casos o extermínio da vanguarda de lutadores revolucionários da época e assim frear o ascenso encabeçado pela classe operária. Os mais de 5500 presos políticos foram em sua maioria operários, professores, funcionários, bancários, dirigentes sindicais e de setores que protagonizaram a resistência ã ditadura (como exemplo temos a greve geral de 14 dias). Eles constituíram o principal foco da repressão. Manter isso impune, é manter o papel reacionário que cumprem as Forças Armadas como instituição ao serviço da classe dominante e do imperialismo para reprimir toda luta social que questione o regime imperante.

Durante esses últimos anos, a FA tentou lavar a cara das forças armadas, desculpá-las de seu passado repressor e as deixando prontas para sua eventual utilização quando seja necessário. Mostras disto é a participação em “missões de paz” como no Haití onde por traz da careta “humanitária” ocupam, abusam e reprimem o povo. Ou a utilização dela para suprimir greves como vimos contra os trabalhadores de ADEOM o ano passado. Ou a repressão aos jovens da periferia com a desculpa da delinqüência.

A luta pelo Juízo e Castigo se ganha nas ruas

Até agora a quantidade de repressores julgados é irrisória: algo mais de uma dúzia do total de 400 responsáveis denunciados. Da mesma maneira na descoberta de restos dos desaparecidos: se encontrou uma ínfima minoria de um total de duzentos desaparecidos uruguaios em todo o Cone Sul [5]. Inclusive muitos destes repressores hoje continuam em atividade, por culpa da impunidade. Frente a isto, devemos organizar-nos de forma independente de todos os partidos tradicionais (inclusive da Frente Ampla) e tomar as ruas. É a única maneira de lograr o Juízo e Castigo a todos os repressores e acabar com as tentativas de nos impor o esquecimento e a reconciliação. As organizações de Direitos Humanos, o PIT-CNT, os estudantes e os setores populares devemos encarar uma profunda campanha de organização e luta para acabar com a impunidade. Exigir que se abram os arquivos da ditadura para saber quem foram os torturadores, quem estava a cargo, o que aconteceu com os nossos desaparecidos e quais foram os pactos secretos daquela época. Não podemos confiar na mesma Justiça e nas mesmas instituições que garantiram a impunidade esses anos, só a mobilização independente nas ruas poderá garantir a anulação da Lei de Caducidade e que se julgue efetivamente aos militares repressores.

Lutar pelo juízo e castigo e contra a reconciliação, é lutar pelos companheiros caídos ou que sofreram na própria carne a prisão e a tortura, é lutar por seus familiares que arrastaram por décadas a injustiça de não saber onde estão seus familiares. É lutar também pelo futuro, contra os aparatos repressivos do estado sempre dispostos a esmagar todo movimento social, é lutar por assinalar e ter bem presente na memória o verdadeiro rosto da burguesia nacional e do imperialismo, assassinos e torturadores de lutadores revolucionários e da classe trabalhadora.

[1] “Mujica promulgará lei e deixará o tema nas mãos da Suprema Corte” El País, 27/10/11.

[2] “MPP insistirá com o projeto de liberação ex militares” o Espectador, 29/10/11. Mais adiante, no mesmo artigo diz: “Para mim o mais importante é a verdade. Não tenho a cabeça de andar perseguindo a ninguém até debaixo da cama, porque o pior que pode acontecer a um ser humano não é a sentença da Justiça, mas a censura que lhe aplica a sociedade. Se eu desentranho a verdade, embora não lhe ponha castigo a esse individuo que fez algo, a sociedade e o vizinho lhe vá a censurar. Esse pensamento o comparto com o presidente, acreditamos que não é bom ter gente velha nas prisões porque quando se está ao final da vida... Todo é discutível, tenho a esperança de que nossa tentativa dê resultado”.

[3] Op. Cit. El País, 27/10/11. [4] “Cinco processados por homicídio de María Claudia García de Gelman” El País, 29/10/11.

[5] Encontraram os restos de outro companheiro no Batalhão n°14 há uns dias.

02-11-2011

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